Taís Araújo sempre ficava triste quando recebia uma sinopse de novela e via, na descrição, que se tratava de uma mulher negra. Porque sempre acreditou que isso limitasse suas oportunidades, já que poderia fazer com que não fosse lembrada para um papel sem raça definida. Mas o convite de Manoel Carlos para que interpretasse a mocinha Helena de sua nova novela, Viver a Vida, fez com que respirasse aliviada.
Pela primeira vez, ela ganhou um papel de destaque que poderia ser preenchido por qualquer outra atriz com idade próxima da sua. "Acabou! Acho que a vitória não é uma negra protagonizando o horário nobre, mas uma mocinha que teve sua raça definida pela escolha da atriz, e não o inverso", valoriza.
A discussão sobre o fim ou não do preconceito racial na teledramaturgia nunca ganhou tanta força como agora. Só na Globo, em três dos seus quatro horários de folhetins, os telespectadores verão negros em papéis principais a partir do próximo mês. Pelo menos até que a atual temporada de Malhação termine. No seriado infanto-juvenil, Micael Borges encarna o romântico Luciano; em Cama de Gato, próxima novela das 18 horas, Camila Pitanga encarnará a determinada Rose, heroína da vez; e Taís, no ar em Viver a Vida.
Um momento histórico para muitos que batalharam, por tantos anos, por melhores oportunidades para todos. "Essa é a continuidade e a consequência de uma luta constante e antiga não só racial, mas também social. Essas novelas, sem dúvida, vão influenciar as futuras", alerta Milton Gonçalves, que inicia em novembro os trabalhos da segunda temporada de Força-Tarefa, onde interpreta o coronel Caetano.
Camila Pitanga entende bem o que Milton quer dizer com sua afirmação. A atriz não se cansa de demonstrar o quanto ficou feliz com sua escalação no posto de protagonista, mas faz questão de frisar que isso não é o mais importante na questão. "Claro que é uma vitória para os negros ver tantos exemplos de heróis. Mas o êxito não pode ser definido só no tamanho dos papéis. Isso tem de acontecer também com as pessoas que ficam menos expostas, como as da figuração", enfatiza. Um coro engrossado pelo colega Rafael Zulu, o Caco de Caras & Bocas.
"Hoje ainda não podemos dizer que isso é natural, mas é a nossa fase de conquista, de ganhar espaço em todos os aspectos", valoriza.
Sérgio Menezes, o afetado Diogo de Bela, A Feia, da Record, nunca ganhou um protagonista nos folhetins. Mas já experimentou várias vezes a satisfação de ser escalado para papéis sem raça definida. Em Celebridade, em 2003, encarnou o fotógrafo Bruno, uma escolha do próprio autor Gilberto Braga, com quem estreou na tevê, em Força de um Desejo. No ano anterior, encarnou o médico Carlos em O Beijo do Vampiro, outro personagem que não "nasceu" negro na sinopse.
E na Record, nas tramas de Gisele Joras, vem ganhando cada vez mais espaço. "Fico feliz porque consegui conquistar o respeito de muita gente nesse meio que não me vê como um ator negro, mas apenas como um ator", desabafa.
Apesar de valorizarem as escalações que independem de cor da pele, várias pessoas reconhecem que nem sempre um papel especificamente negro é dispensável. É o caso de Lázaro Ramos, que ganhou projeção nacional depois que protagonizou o longa Madame Satã, em 2002.
"Qualquer ser humano, independentemente de cor, passa por vários sentimentos", resume. Assim como Lázaro, Maria Ceiça ainda se lembra bem do tempo em que disputava papéis apenas com atrizes negras. Só não aprova tanto a ideia de que a maior parte das aparições em folhetins tenha sempre de estar condicionada à discussão sobre o preconceito racial. "Acho que de vez em quando, dependendo da história, vale. Mas a verdade é que a fase de negro coitado já passou. Meus últimos papéis fogem completamente disso", analisa ela, que encarnou recentemente a vampira boazinha Rosana em Os Mutantes.
Sem referências
Uma das grandes mudanças que o crescimento no número de papéis de peso para atores negros na televisão traz afeta diretamente o público infanto-juvenil. A maioria dos atores e atrizes que hoje servem de exemplo no ar, não teve muitas referências na época em que ainda sonhavam com a carreira artística. "A maior referência na minha geração era o Norton Nascimento, que morreu. Ele era o galã negro que só foi substituído pelo Lázaro Ramos", lembra Rafael Zulu.
Taís Araújo também sentiu falta de mais referências quando começou a carreira. Mas logo após sua primeira protagonista, aos 17 anos, em Xica da Silva, na extinta Manchete, ela é que virou motivação para várias meninas negras.
Tanto que garante ser constantemente parada nas ruas por jovens que a parabenizam e juram se espelhar nela. "Isso me dá ainda mais empenho em realizar meu trabalho. Mostra que a minha função é muito mais abrangente que o meu próprio sucesso pessoal e profissional", filosofa. Camila Pitanga concorda. "Estamos vivendo uma flexibilização dos espaços, um retrato mais próximo da realidade. Não sou só eu quem ganha, são todos os negros", destaca.
Instantâneas
# Em Caras & Bocas, Caco iria se envolver com Milena, papel de Sheron Menezes. Mas o autor decidiu apostar em um casal inicialmente inusitado e a dondoca Laís, de Fernanda Machado, que era apaixonada pelo mocinho Gabriel, de Malvino Salvador, caiu de amores pelo rapaz. "Em nenhum momento fica explícito, mas a discussão entre a família dela tem a ver com o preconceito. Racial e social", analisa Rafael Zulu, o Caco.
# Norton Nascimento estreou na tevê em 1981, na novela Os Imigrantes, da Band, mas começou a despontar quando participou da minissérie Agosto e do folhetim Fera Ferida. Em 2003, se submeteu a um transplante de coração e morreu quatro anos depois. Seu último papel foi o lutador Nocaute de Maria Esperança, no SBT.
# Lica Oliveira, que interpreta a dedicada Edith em Viver a Vida, é formada em Jornalismo. Sua monografia abordava o papel do negro no telejornalismo, já que sua única referência na época era a então repórter Glória Maria.
# Manoel Carlos prometeu um papel para Taís Araújo em 2007, durante uma premiação onde ele concorria como melhor autor por Páginas da Vida e ela como melhor atriz, por Cobras & Lagartos. "Disse que ia escrever para ela. Naquele tempo eu só não sabia que seria uma Helena", lembra o autor.
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