Metáfora usada pelo presidente Lula repõe questão do branqueamento nas sociedades
EUCLIDES SANTOS MENDES. COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo'", argumenta o antropólogo e professor da Universidade Estadual Paulista, em Marília, Andreas Hofbauer em entrevista à Folha.Tais oposições estão na base da formação das identidades brasileiras. Por isso, "o branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcaram profundamente a história deste país", diz Hofbauer -autor de "Uma História de Branqueamento ou o Negro em Questão" (ed. Unesp).O tema, que ainda tem espaço expressivo de atuação no Brasil, veio à tona no dia 26/3, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva responsabilizou, durante a visita do premiê britânico Gordon Brown ao país, "gente branca de olhos azuis" pela crise econômica mundial.Mesmo estando embutida na fala presidencial uma ideia discriminatória, a questão mais premente a se considerar, diz Hofbauer na entrevista abaixo, está relacionada a dois fatores.O primeiro é que a crise econômica não foi necessariamente produzida no Brasil. O segundo, que a crítica de Lula se dirige aos países ricos, "que sempre pregaram medidas universalistas para o mundo inteiro, mas sempre acharam ou construíram meios de particularizar tais universalismos".
FOLHA - De onde vem a metáfora do "olho azul"?ANDREAS HOFBAUER - Desde os primórdios do cristianismo, a cor negra vinha sendo associada ao inferno, ao diabólico e, devido a uma reinterpretação de um trecho do Velho Testamento ("Gênesis" 9, 25), também ao pecado, à culpa, à imoralidade e à escravidão -o "branco" expressava o divino e a pureza da verdadeira fé.Começava-se a projetar a cor negra nos descendentes de Cam (filho de Noé), cujo filho Canaã foi condenado à eterna escravidão entre os seus irmãos.Essa história -e não, como se afirma ainda recorrentemente, um discurso racial- serviria, durante séculos, como justificativa para escravizar pessoas tidas como "negras". Ou seja, compreende-se que, aos poucos, uma percepção mais naturalizada das cores vai ganhando força mesmo dentro do discurso religioso.Assim, não é de estranhar que as pinturas e afrescos nas igrejas retratem Jesus com cabelos loiros e olhos azuis, embora essa representação dificilmente se aproxime da fisionomia real que poderia ter tido a figura histórica.Foi na época do nazismo, quando os cientistas procuravam fundamentar a existência de uma "raça ariana", que os olhos azuis, juntamente com os cabelos loiros, seriam destacados como características essenciais de uma raça humana pura.
FOLHA - Na formação do Brasil moderno, o ideal de branqueamento sempre esteve fortemente ligado à noção de superioridade racial e social. Como se formou e qual é o papel da ideologia do branqueamento na história do racismo no Brasil?HOFBAUER - O branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcaram profundamente a história deste país.Se entendermos o branqueamento numa perspectiva antropológica, ou seja, como uma construção simbólica, a ideia de transformar corpos negros em corpos brancos é apenas um aspecto de um ideário muito mais profundo e abrangente.Estabeleceu-se, no Brasil, um ideário que se tornaria hegemônico e que fundia, de um lado, o "negro" e a condição de escravo e, de outro, associava o "branco" aos ideais morais-religiosos elevados, ao status de livre e -sobretudo a partir da segunda metade do século 19- à ideia do progresso.Posteriormente, no final do século 19, parte da elite brasileira, que estava preocupada com o progresso econômico do país, (re)adaptou este ideário à nova situação para propagar e implementar projetos imigracionistas que trariam milhares de europeus brancos ao Brasil.Esse ideário seria (re)articulado uma última vez por meio de uma adaptação local de teses culturalistas, que buscavam transpor o discurso sobre a "mistura feliz" entre raças inferiores e raças superiores para o plano das culturas.Na análise de Gilberto Freyre [1900-87], a "mestiçagem" aparece como uma espécie de "ponte" que aplaina e supera os "desajustes" raciais e culturais entre negros, brancos e índios e, dessa forma, teria viabilizado a formação da "nação/cultura brasileira".Mas, por baixo do enaltecimento da miscigenação, o autor reproduziu recorrentemente o velho ideal branqueador.
FOLHA - O sr. acredita que a fala do presidente Lula teve conotação racista e improcedente? Por que Lula retomou essa polarização histórica brasileira?HOFBAUER - Em primeiro lugar eu diria que não se trata somente de uma polarização brasileira: a oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo".A afirmação do presidente causa um certo mal-estar exatamente porque remete a concepções raciais que julgamos, hoje, ultrapassadas.Ao mesmo tempo, sabemos que o fato de a ciência ter proclamado a "morte" das raças humanas não significa que a cor/raça não continue funcionando como um fator de diferenciação e de discriminação na vida real.Basta darmos uma olhada nos dados do IBGE, que revelam que a população não-branca continua discriminada em todos os quesitos socioeconômicos. Quero crer que o presidente quis, em primeiro lugar, chamar a atenção da população brasileira e dizer-lhe que a crise atual que o país enfrenta não foi produzida aqui.
São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009. Mais.
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