A pedido do sr. Andreas Hofbauer, a respeito da entrevista concedida no último domingo ao Caderno Mais, da Folha de São Paulo, intutulada: Azul profundo, postamos o seguinte:
Texto enviado pelo jornalista:
- Durante a visita oficial do premiê britânico Gordon Brown ao Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva responsabilizou (no dia 26/3) "gente branca de olhos azuis" pela crise econômica mundial: "É uma crise causada por comportamentos irracionais de gente branca de olhos azuis que antes da crise parecia que sabia tudo e agora demonstra não saber nada". O presidente disse ainda que os pobres, negros e índios, que são "vítimas da crise", não podem pagar a conta da especulação financeira. Quando o presidente se refere a "gente branca de olhos azuis", está aí embutida uma ideia discriminatória. O sr. acredita, no entanto, que a fala do presidente Lula teve conotação racista e improcedente?
Pergunta: Por que Lula retoma essa polarização histórica brasileira?
Resposta: Bom, em primeiro lugar eu diria que não se trata somente de uma polarização brasileira: a oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo" (a referência aqui são os autores pós-coloniais). A afirmação do presidente provoca. Causa um certo mal-estar exatamente porque remete a concepções raciais que nós julgamos hoje ultrapassadas. Ao mesmo tempo, sabemos que o fato de a ciência ter proclamado a "morte" das raças humanas, não significa que a cor/raça não continue funcionando como um fator de diferenciação e de discriminação na vida real. Basta darmos uma olhada nos dados do IGBE, que revelam que a população não-branca continua discriminada em todos os quesitos socioeconômicos.
Quero crer que o presidente quis, em primeiro lugar, chamar a atenção da população brasileira e dizer-lhe que a crise atual que o país enfrenta não foi produzida aqui. E entendo também que esta provocação tem ainda um outro endereço: dirigiu-se também às elites dos países ricos, que sempre pregaram medidas universalistas para o mundo inteiro e, no entanto, sempre acharam e/ou construíram meios de particularizar tais universalismos. Isto vale tanto para os missionários da época da colonização, que discursavam sobre a igualdade entre todos os seres humanos e ao mesmo tempo justificavam a escravização de povos negros, quanto para os pensadores iluministas que recorreram à idéia de raça com objetivos semelhantes. Num certo sentido, vale até para discursos economicistas atuais, que
pressionam outros países a abrirem os seus mercados enquanto justificam políticas protecionistas internamente. Incentivam a idéia de um mundo globalizado, mas apóiam, de fato, somente o fluxo de capitais, enquanto recomendam que se fechem as fronteiras para os imigrantes que vêm do "sul" do globo ou autorizam a taxação de produtos estrangeiros que competem com suas produções nacionais.
Pergunta: É possível encontrar tal polarização, com a mesma intensidade, também em outras culturas?
Resposta: Sim, existem estudos antropológicos que mostram que a estatura e as cores de pele são percebidas e usadas como marcadores de diferença nas mais diversas sociedades. Aliás, a estatura parece ser o critério corporal de diferenciação mais disseminado: estatura alta é vista em muitas sociedades como sinal de força e é relacionada a status social elevado. Em várias sociedades podemos perceber também uma valoração da cor de pele mais clara em oposição a tonalidades mais escuras. O que me parece sem precedentes na história da humanidade é a enorme importância política e econômica que o marcador da cor de pele negra assumiu no Ocidente. Vários estudiosos têm argumentado que na raiz da construção do "self" europeu, da identidade européia, isto é, na raiz da construção da idéia do sujeito auto-determinado está a criação de uma oposição entre um mundo civilizado e um mundo tido como primitivo, selvagem. Sabemos também que, no projeto da colonização do Novo Mundo, a cor negra seria usada como marcador da escravidão. Em conseqüência disso, milhões de africanos foram arrancados das suas terras, das suas sociedades para serem subjugados ao regime escravista.
Pergunta: A questão suscitada pelo comentário do presidente Lula é bem complexa, levando-se em consideração a história das sociedades humanas, em especial as ocidentais. De onde vem a metáfora do "olho azul"? Que processos históricos, sociais e culturais podem ser desencavados de tal metáfora?
Resposta: Desde os primórdios do cristianismo, a cor negra vinha sendo associada ao inferno, ao diabólico, e, devido a uma reinterpretação de um trecho do Velho Testamento
(Genesis cap. IX), também ao pecado, à culpa, à imoralidade e à escravidão, enquanto o "branco" expressava o divino e a pureza da verdadeira fé. Começava-se a projetar a cor negra nos descendentes de Cam (filho de Noé) cujo filho Canaã foi condenado à eterna escravidão entre os seus irmãos. Esta estória – e não, como se afirma ainda recorrentemente, um discurso racial – serviria durante séculos como justificativa para escravizar pessoas tidas como "negras". Ou seja, percebe-se que, aos poucos, uma percepção mais naturalizada das cores vai ganhando força mesmo dentro do discurso religioso. Assim, não é de se estranhar que as pinturas e afrescos nas igrejas vão retratar Jesus com cabelo loiro e com olhos azuis , embora esta representação dificilmente se aproxime da fisionomia real que poderia ter tido a figura histórica. Agora, foi na época do nazismo, quando os cientistas procuravam fundamentar a existência de uma "raça ariana", que os olhos azuis juntamente com o cabelo loiro seriam destacados como características essenciais de uma raça humana pura.
Pergunta: Na formação do Brasil moderno, o ideal de branqueamento esteve, e ainda está, fortemente ligado à noção de superioridade racial e social. Até que ponto valores como este formam o etos e a noção de "identidade brasileira"? Como se formou e qual é o papel da ideologia do branqueamento na história do racismo no Brasil?
Resposta: Prefiro não falar de um etos brasileiro, já que o uso clássico deste conceito nos remete a uma idéia de um corpo homogêneo de pessoas e idéias que, desta forma, provavelmente nunca existiu. Sobretudo hoje, podemos perceber que parcelas cada vez maiores da população brasileira, impulsionadas, inclusive, pelas atividades dos movimentos negros, não concordariam em ver no branqueamento um valor que une a população brasileira. Parece-me, portanto, mais razoável falar de uma pluralidade de discursos e de identidades, não somente no plano das coletividades, mas também no plano individual. Agora, dito isto, penso, sim, que o branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcou profundamente a história deste país.
Se entendermos o branqueamento numa perspectiva antropológica, ou seja, como uma construção simbólica, a idéia de transformar corpos negros em corpos brancos é apenas um aspecto de um ideário muito mais profundo e abrangente. Podemos perceber que a idéia de
transformar "negro" em "branco" já fazia parte de uma atitude moral-religiosa associada à conversão. No contexto colonial brasileiro, os jesuítas incentivariam durante muito tempo o tráfico negreiro como uma empresa de "resgate" de "almas pagãs perdidas". Estabeleceu-se no Brasil um ideário – que se tornaria hegemônico – que fundia, de um lado, "negro" com a condição de escravo, e, de outro lado, associava "branco" aos ideais morais-religiosos elevados, ao status de livre e, – sobretudo – a partir da segunda metade do século XIX, à idéia do progresso. Posteriormente, no final do século XIX, parte da elite brasileira, que estava preocupada com o progresso econômico do país, (re)adaptou este ideário à nova situação para propagar e implementar projetos imigracionistas que trariam milhares de europeus brancos ao Brasil. Este ideário seria (re)articulado uma última vez por meio de uma adaptação local de teses culturalistas (cf. a obra de Freyre) que buscava transpor, de certo modo, o discurso sobre a "mistura feliz" entre raças inferiores e raças superiores para o plano das culturas. Na análise de G. Freire, a "mestiçagem" aparece como uma espécie de "ponte" que aplaina e supera os "desajustes" raciais e culturais entre negros, brancos e índios e, dessa forma, teria viabilizado a formação da "nação/cultura brasileira". Mas, por baixo do enaltecimento da miscigenição, o autor reproduziu recorrentemente o velho ideal branqueador; o que fica claro, por exemplo, quando ele comenta com satisfação e orgulho que, no Brasil, uma mestiça clara, bem vestida e que se comporta como gente fina "pode tornar-se branca para todos os efeitos".
Podemos afirmar que o branqueamento é, certamente, ainda, uma visão bastante disseminada no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, podemos perceber outros discursos ganhando força: discursos que se opõem a este ideário discriminatório, que conseguiu apresentar-se durante muito tempo como um discurso integrativo e anti-racista, e que tem dificultado às populações não-brancas serem respeitadas e tratadas, de fato, como iguais.
Resposta: Bom, em primeiro lugar eu diria que não se trata somente de uma polarização brasileira: a oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo" (a referência aqui são os autores pós-coloniais). A afirmação do presidente provoca. Causa um certo mal-estar exatamente porque remete a concepções raciais que nós julgamos hoje ultrapassadas. Ao mesmo tempo, sabemos que o fato de a ciência ter proclamado a "morte" das raças humanas, não significa que a cor/raça não continue funcionando como um fator de diferenciação e de discriminação na vida real. Basta darmos uma olhada nos dados do IGBE, que revelam que a população não-branca continua discriminada em todos os quesitos socioeconômicos.
Quero crer que o presidente quis, em primeiro lugar, chamar a atenção da população brasileira e dizer-lhe que a crise atual que o país enfrenta não foi produzida aqui. E entendo também que esta provocação tem ainda um outro endereço: dirigiu-se também às elites dos países ricos, que sempre pregaram medidas universalistas para o mundo inteiro e, no entanto, sempre acharam e/ou construíram meios de particularizar tais universalismos. Isto vale tanto para os missionários da época da colonização, que discursavam sobre a igualdade entre todos os seres humanos e ao mesmo tempo justificavam a escravização de povos negros, quanto para os pensadores iluministas que recorreram à idéia de raça com objetivos semelhantes. Num certo sentido, vale até para discursos economicistas atuais, que
pressionam outros países a abrirem os seus mercados enquanto justificam políticas protecionistas internamente. Incentivam a idéia de um mundo globalizado, mas apóiam, de fato, somente o fluxo de capitais, enquanto recomendam que se fechem as fronteiras para os imigrantes que vêm do "sul" do globo ou autorizam a taxação de produtos estrangeiros que competem com suas produções nacionais.
Pergunta: É possível encontrar tal polarização, com a mesma intensidade, também em outras culturas?
Resposta: Sim, existem estudos antropológicos que mostram que a estatura e as cores de pele são percebidas e usadas como marcadores de diferença nas mais diversas sociedades. Aliás, a estatura parece ser o critério corporal de diferenciação mais disseminado: estatura alta é vista em muitas sociedades como sinal de força e é relacionada a status social elevado. Em várias sociedades podemos perceber também uma valoração da cor de pele mais clara em oposição a tonalidades mais escuras. O que me parece sem precedentes na história da humanidade é a enorme importância política e econômica que o marcador da cor de pele negra assumiu no Ocidente. Vários estudiosos têm argumentado que na raiz da construção do "self" europeu, da identidade européia, isto é, na raiz da construção da idéia do sujeito auto-determinado está a criação de uma oposição entre um mundo civilizado e um mundo tido como primitivo, selvagem. Sabemos também que, no projeto da colonização do Novo Mundo, a cor negra seria usada como marcador da escravidão. Em conseqüência disso, milhões de africanos foram arrancados das suas terras, das suas sociedades para serem subjugados ao regime escravista.
Pergunta: A questão suscitada pelo comentário do presidente Lula é bem complexa, levando-se em consideração a história das sociedades humanas, em especial as ocidentais. De onde vem a metáfora do "olho azul"? Que processos históricos, sociais e culturais podem ser desencavados de tal metáfora?
Resposta: Desde os primórdios do cristianismo, a cor negra vinha sendo associada ao inferno, ao diabólico, e, devido a uma reinterpretação de um trecho do Velho Testamento
(Genesis cap. IX), também ao pecado, à culpa, à imoralidade e à escravidão, enquanto o "branco" expressava o divino e a pureza da verdadeira fé. Começava-se a projetar a cor negra nos descendentes de Cam (filho de Noé) cujo filho Canaã foi condenado à eterna escravidão entre os seus irmãos. Esta estória – e não, como se afirma ainda recorrentemente, um discurso racial – serviria durante séculos como justificativa para escravizar pessoas tidas como "negras". Ou seja, percebe-se que, aos poucos, uma percepção mais naturalizada das cores vai ganhando força mesmo dentro do discurso religioso. Assim, não é de se estranhar que as pinturas e afrescos nas igrejas vão retratar Jesus com cabelo loiro e com olhos azuis , embora esta representação dificilmente se aproxime da fisionomia real que poderia ter tido a figura histórica. Agora, foi na época do nazismo, quando os cientistas procuravam fundamentar a existência de uma "raça ariana", que os olhos azuis juntamente com o cabelo loiro seriam destacados como características essenciais de uma raça humana pura.
Pergunta: Na formação do Brasil moderno, o ideal de branqueamento esteve, e ainda está, fortemente ligado à noção de superioridade racial e social. Até que ponto valores como este formam o etos e a noção de "identidade brasileira"? Como se formou e qual é o papel da ideologia do branqueamento na história do racismo no Brasil?
Resposta: Prefiro não falar de um etos brasileiro, já que o uso clássico deste conceito nos remete a uma idéia de um corpo homogêneo de pessoas e idéias que, desta forma, provavelmente nunca existiu. Sobretudo hoje, podemos perceber que parcelas cada vez maiores da população brasileira, impulsionadas, inclusive, pelas atividades dos movimentos negros, não concordariam em ver no branqueamento um valor que une a população brasileira. Parece-me, portanto, mais razoável falar de uma pluralidade de discursos e de identidades, não somente no plano das coletividades, mas também no plano individual. Agora, dito isto, penso, sim, que o branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcou profundamente a história deste país.
Se entendermos o branqueamento numa perspectiva antropológica, ou seja, como uma construção simbólica, a idéia de transformar corpos negros em corpos brancos é apenas um aspecto de um ideário muito mais profundo e abrangente. Podemos perceber que a idéia de
transformar "negro" em "branco" já fazia parte de uma atitude moral-religiosa associada à conversão. No contexto colonial brasileiro, os jesuítas incentivariam durante muito tempo o tráfico negreiro como uma empresa de "resgate" de "almas pagãs perdidas". Estabeleceu-se no Brasil um ideário – que se tornaria hegemônico – que fundia, de um lado, "negro" com a condição de escravo, e, de outro lado, associava "branco" aos ideais morais-religiosos elevados, ao status de livre e, – sobretudo – a partir da segunda metade do século XIX, à idéia do progresso. Posteriormente, no final do século XIX, parte da elite brasileira, que estava preocupada com o progresso econômico do país, (re)adaptou este ideário à nova situação para propagar e implementar projetos imigracionistas que trariam milhares de europeus brancos ao Brasil. Este ideário seria (re)articulado uma última vez por meio de uma adaptação local de teses culturalistas (cf. a obra de Freyre) que buscava transpor, de certo modo, o discurso sobre a "mistura feliz" entre raças inferiores e raças superiores para o plano das culturas. Na análise de G. Freire, a "mestiçagem" aparece como uma espécie de "ponte" que aplaina e supera os "desajustes" raciais e culturais entre negros, brancos e índios e, dessa forma, teria viabilizado a formação da "nação/cultura brasileira". Mas, por baixo do enaltecimento da miscigenição, o autor reproduziu recorrentemente o velho ideal branqueador; o que fica claro, por exemplo, quando ele comenta com satisfação e orgulho que, no Brasil, uma mestiça clara, bem vestida e que se comporta como gente fina "pode tornar-se branca para todos os efeitos".
Podemos afirmar que o branqueamento é, certamente, ainda, uma visão bastante disseminada no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, podemos perceber outros discursos ganhando força: discursos que se opõem a este ideário discriminatório, que conseguiu apresentar-se durante muito tempo como um discurso integrativo e anti-racista, e que tem dificultado às populações não-brancas serem respeitadas e tratadas, de fato, como iguais.
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