Não defendo nem as quotas para negros nem o fim das quotas para portadores de deficiência
Nesta semana voltou à tona o debate sobre quotas raciais, ora na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
Pela enésima vez brandiu-se o argumento "científico" de que a discriminação no Brasil é social, e não racial, e de que uma discriminação positiva dividiria a nação em negros e não-negros, fomentando um ódio que aqui nunca teria existido.Quanto há de objetividade nessas afirmações? E quanto de ideologia?É forçoso reconhecer que há certa base empírica na primeira parte do argumento (a discriminação é mais social que racial). Mas seria igualmente anticientífico desconhecer que ser negro ou pardo representa desvantagem adicional à de ser pobre, em matéria de desigualdade de oportunidades.Caso contrário, como explicar que, sendo 48% da população, negros e pardos representem só 26,4% dos empregados nas 500 maiores empresas do país? Ou então que, da terça parte pobre da população brasileira, 65,8% sejam pardos (58,7%) e negros (7,1%)? Não se trata de concluir que os 34,2% de brancos entre os pobres sejam privilegiados, nem que os brancos mais ricos sejam preconceituosos ou malvados. E sim de reconhecer uma desigualdade patente.O busílis está em saber se é necessário e legítimo fazer algo a respeito. O projeto de lei que pode ser aprovado com a reserva de 50% das vagas em universidades públicas para alunos de escolas idem, e não para minorias raciais, compra assim o argumento antirracialista por seu valor de face. Aí é que o debate deixa de ser inteiramente objetivo, como será assinalado a seguir com base num contraexemplo. Já se pratica no país outro tipo de discriminação positiva, a favor dos portadores de deficiência física, sem que se observe contra ela o zelo, a estridência e até a virulência da reação contra as quotas. Pela lei 8.213, em vigor há quase 18 anos, 2% a 5% dos postos de trabalho em empresas com mais de cem funcionários ficam reservados para esses desfavorecidos. A lógica compensatória por trás da provisão legal é a mesma. Identifica-se um grupo social que, por suas características físicas, enfrenta dificuldades para se educar e se empregar.Admitida a discriminação contra essas pessoas, adota-se a regra de contratação compulsória que a reverte na prática -só em parte, porque no Brasil 14,5% portam alguma deficiência.Metade da população com mais de dez anos encontrava-se ocupada no censo de 2000, quando o IBGE levantou também a quantidade de portadores de deficiência. Mas tinham trabalho só 40,8% dos que têm dificuldade para enxergar ou são cegos, 34% dos que têm deficiência auditiva ou são surdos e 24,1% dos portadores de incapacidade física ou motora.Antes que me acusem de desalmado ou racista, esclareço: não defendo nem as quotas para negros, por suas dificuldades insolúveis, nem o fim das quotas para portadores de deficiência.Aponto, tão-somente, o uso de dois pesos e duas medidas, e a obrigação moral de reequilibrar a balança.O Brasil encara de frente o drama dos portadores de deficiência, mas não quer enxergar o dos negros. E, já que se trata de objetividade e de ciência, fique aqui o testemunho de Charles Darwin sobre brasileiros brancos civilizados, como o proprietário e anfitrião da Fazenda Socêgo, incapazes de repulsa diante dos sofrimentos impostos aos negros: "Pode-se dizer que não há limites para a cegueira do interesse e do hábito egoísta".
MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009. Folha de São Paulo. Ciência.
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