Seminário Internacional
Estado Laico & A Liberdade Religiosa
Realizado em Brasília (DF), no último de 16 de junho do corrente ano, o Seminário Internacional Estado Laico & A Liberdade Religiosa, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, teve como objetivo a discussão jurídica a respeito das consequências jurídicas decorrentes da laicidade do Estado e o fator religioso, abordando não só a separação existente entre ambos, mas também, as formas e limites de cooperação mútua e a garantia do respeito da liberdade religiosa num Estado plural e democrático de direito.
Naquela ocasião, todos os conferencistas, entre eles, os professores Kent Greenawalt (professor da Columbia Law School e autor das obras Religious Convinctions and Political Choice – 1988, Private Consciences and Public Reasons – 1995, Does God Belong in Public Schools? – 2005), Jorge Miranda (catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa), Daniel Sarmento (procurador regional da República e professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Ives Gandra Martins Filho (ministro do Superior Tribunal de Justiça e membro do Conselho Nacional de Justiça) e o padre Rafael José Stanziona de Moraes (doutor em teologia moral pela Universidade de Navarra e professor de deontologia jurídica do Instituto Internacional de Ciências Sociais) destacaram que a laicidade ou a aconfessionalidade do Estado moderno (em contraposição à confessionalidade estatal) é benéfica à sociedade democracia, na medida em que a neutralidade estatal (que pressupõe o reconhecimento da sua incompetência em assuntos ligados aos dogmas de fé – princípio da autonomia/laicidade – art. 19, inciso I da Constituição Federal de 1988) em face a valores religiosos, acaba por garantir a própria liberdade religiosa (o Estado não interfere, nem concorre como ente, em assuntos da fé e da prática religiosa), sendo que tal neutralidade não implica antagonismo, menosprezo, indiferença ou hostilidade àqueles valores (tal como faz o laicismo - o Estado ateu é uma das suas formas de manifestação), pois os reconhece como aspecto importante da dimensão humana, logo, componente da sua própria dignidade. Neste sentido, a laicidade do Estado reflete a opção de se abdicar de fundamentos e/ou valores meramente religiosos na sua organização e no exercício das suas funções. Noutras palavras, o poder político, representado pelo Estado, não se identifica com nenhuma religião ou culto (não adota esta ou aquela base teológica ou confessional na formulação e consecução das suas funções, aí residindo seu caráter negativo), fomentando, assim, o pluralismo, e via de conseqüência, maior liberdade religiosa, sendo equivocado supor que aquele desconsidera a importância democrática dos valores religiosos, mas, pelo contrário, visa, além de assegurar a liberdade religiosa (caráter positivo da laicidade), a cooperação institucional mútua (comunidade política e entes religiosos).
Outro tema intensamente abordado se relaciona à seara de atuação do Estado, e esta só se revela legítima quando não se baseie em dogmas de fé (ainda que professados pela religião majoritária). É dizer, na consecução das suas funções essenciais, o poder estatal, por intermédio dos agentes estatais, em especial, os juízes, tal como ressaltado pelos conferencistas Kent Greenawalt e Daniel Sarmento (este, ressaltando o magistério de John Rawls expresso na obra Liberalismo Político) só podem fundamentar suas ações ou razões de decidir em valores religiosos, morais e filosóficos, se estes, também, possam ser traduzidos nas chamadas razões públicas, ou seja, razões racionais cuja possibilidade de aceitação pelo público em geral independa de convicções religiosas ou metafísicas particulares. Portanto, a ação estatal numa sociedade democrática e plural há de se fundar em razões públicas e não em compreensões religiosas ou ideológicas, sob pena de um deficit de legitimidade social naquela atuação. Seguindo este enfoque, ressaltou-se que sob a perspectiva jurídico-constitucional e, principalmente, do debate numa sociedade plural, que os atos estatais, como as leis, medidas administrativas e decisões judiciais, tenham lastro em argumentos que possam ser, ao menos, aceitos no contexto da comunidade, evitando-se a tirania da maioria sobre a minoria. O professor Kent Greenawalt lembrou que na luta pela igualdade de direitos civis nos Estados Unidos, nas décadas de 50 e 60 do século passado, os líderes do movimento, sobretudo os de engajamento confessional, como os pastores evangélicos Martin Luther King Jr. e Jesse Jackson conseguiram legitimação e respaldo social na medida em que lograram converter em razões públicas, valores religiosos, morais e filosóficos relacionados à igualdade, solidariedade, dignidade humana e à não opressão.
Outro assunto abordado foi o Acordo Brasil – Santa Sé, celebrado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008, pelo qual a República Federativa do Brasil reconhece a Santa Sé como suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico e que ambos os Estados, mutuamente, se reconhecem como ordens, autônomas, independentes e soberanas. O conferencista José Bonifácio Borges de Andrade (subprocurador-geral da República) alertou que, historicamente, desde a formação dos chamados Estados Pontifícios, o Papa vem sendo reconhecido no âmbito das nações, como Chefe de Estado e que este status permaneceu hígido mesmo durante o período entre a perda do poder temporal do Sumo Pontífice sobre um território, por ocasião da anexação de Roma (antes capital dos Estados Pontifícios), em 1870, pelo Rei Vittorio Emanuele ao Reino da Itália, até a formação do Estado do Vaticano (atualmente, membro das Nações Unidas) em 1929, com a celebração da Concordata de São João de Latrão, pelo então ditador fascista Benito Mussolini e o Papa Pio XI (tendo este proclamado naquela ocasião que um mínimo de território seria necessário para o exercício do poder temporal papal, como chefe espiritual supremo da Igreja Católica). Portanto, não se trata de privilégio desarrazoado ou discriminação estatal com outras manifestações religiosas, o reconhecimento da Santa Sé como Estado e do Papa como seu respectivo chefe de Estado, na medida em que, no âmbito do Direito Internacional Público, os entes e pessoas são reconhecidos pela posição que, de fato e de direito, ocupam no contexto daquele direito.
Alvo de polêmica decorrente do Acordo Brasil – Santa Sé reside na previsão prevista no art. 11, § 1º do referido acordo de que o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação, que, inclusive, é objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4439) proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) na qual, em suma, articula-se que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas (alerta a PGR que tal interpretação visa resguardar o Estado de influências provenientes do campo religioso, impedindo todo tipo de confusão entre o poder secular e democrático, de que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão religiosa), e sobre este tema, Daniel Sarmento sustenta que “a escola pública não é lugar para o ensino confessional e nem também para o interconfessional ou ecumênico, pois este, ainda que não voltado à promoção de uma confissão específica, tem por propósito inculcar nos alunos princípios e valores religiosos partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política”. Neste particular, registra-se a defesa do ministro Ives Gandra Martins Filho pela confessionalidade daquele ensino, ressalvado o caráter facultativo, articulando que um ensino religioso aconfessional seria equivalente a um ensino de história ou de educação moral e cívica, o que acabaria por desnaturar a própria natureza do ensino religioso.
En passant, também se abordou a questão do uso de símbolos religiosos em órgão públicos tendo se reportado à decisão do Conselho Nacional de Justiça no julgamento de quatro pedidos de providência (1344, 1345, 1346 e 1362) que questionavam a presença de crucifixos em dependências de órgãos do Poder Judiciário, nos quais se concluiu pela manutenção dos referidos símbolos ao entendimento que estes se constituem como expressões da cultura brasileira e que não interferem na imparcialidade e universalidade do Poder Judiciário, frisando-se que Daniel Sarmento pontuou que a manutenção de tais símbolos violaria o caráter laico do Estado, ao que discordou o ministro Ives Gandra Martins Filho.
Por fim, registro que o altíssimo nível das discussões, imprescindíveis, ao debate democrático, serviram para a reflexão sobre novas perspectivas relacionadas ao tema.
Rommel Cruz Viegas
Juiz de Direito da Comarca de São João dos Patos
FONTE : Associação dos Magistrados do Maranhão