É claro que eu sou a favor de que esses símbolos desapareçam de uma vez por todas de nossas cortes. Essa é uma discussão que já deveria ter sido resolvida mais de um século atrás, quando a Constituição de 1891 estabeleceu a separação entre Estado e igreja. Inexplicavelmente, porém, as Cartas que se seguiram ao texto de 1891, em vez de avançar, recuaram no que diz respeito à laicidade do poder público. O grande escândalo é a Constituição de 1988, que, contrariando a tendência histórica dos países desenvolvidos e os mais elementares ditames do bom senso e da administração responsável das verbas públicas, reintroduziu o ensino religioso nas escolas da rede oficial.
Deixemos, porém, a involução do direito constitucional brasileiro um pouco de lado e nos concentremos na questão dos símbolos religiosos em espaços públicos. Os defensores da permanência de crucifixos se dividem em duas categorias: há os que tentam justificá-la recorrendo ao argumento de que a maioria da população é cristã e os que veem na simbologia um apelo a valores éticos universais. Discordo de ambos.
A primeira tese é bem fraquinha, como o demonstra a seguinte comparação: a maioria dos brasileiros, asseveram as pesquisas, é flamenguista ou gloriosamente corinthiana; a ninguém, contudo, ocorreria valer-se dessa constatação para propor que se ornem as paredes dos tribunais com flâmulas desses dois clubes. Maiorias não definem a decoração de paredes públicas.
De resto, nem todos os cristãos são entusiastas do crucifixo. Algumas denominações protestantes o consideram um caso acabado de idolatria, pecado cuja prática meus ancestrais judeus puniam com o apedrejamento até a morte. Não é esse, contudo, o ponto central. Subjaz a esse raciocínio da maioria uma concepção profundamente errada do que seja o Estado democrático. A vontade da maior parte dos cidadãos é por certo um elemento importante da democracia, mas não é absoluto nem incondicional --ou teríamos de considerar a Alemanha nazista uma nação democrática, pois Hitler ascendeu ao poder pela via do voto. Maiorias servem para decidir quais serão os governantes e representantes em pleitos majoritários. Também podem definir o destino de propostas legislativas que sejam submetidas a consulta popular. Mas seu papel acaba mais ou menos por aí. Os direitos das minorias encontram-se protegidos pela Constituição mesmo contra a vontade da maioria e de eventuais governantes. Até mesmo as ideias dos que não compõem a maior parte se fazem representar no Parlamento através dos partidos de oposição.
O segundo argumento, de que o Cristo crucificado tem um valor que transcende a esta ou àquela religião e se reveste de caráter ético universal, é um pouquinho mais sofisticado do que o anterior, mas também me parece insuficiente. Em termos estritamente objetivos a cruz foi um dos métodos de execução mais populares entre os séculos 6 a.C. e 4 d.C. Era utilizada por romanos, persas e egípcios, entre outros povos ansiosos para livrar-se de seus criminosos. Se alguém ousasse propor que as paredes de nossos tribunais fossem adornadas por forcas, guilhotinas ou cadeiras elétricas provocaria a justa indignação de boa parte da opinião pública. Ora, nós deixamos de ver a cruz como um instrumento de execução apenas e justamente porque ela se tornou o símbolo maior do cristianismo, caráter que lhe é indissociável. Ainda que se queira apregoar que ela representa também padrões morais observados por todas as religiões --tese que precisaria ser provada--, essa seria uma característica absolutamente secundária diante do peso religioso que a imagem adquiriu.
E o direito de todos a espaços públicos livres de proselitismo religioso deveria ser autoevidente. Ao contrário do que muitos podem pensar, isso é algo que importa mais para o crente membro de grupo ou seita minoritários do que para ateus e agnósticos. Nós que não acreditamos num ser superior ou que julgam essa uma questão indecidível, tendemos a considerar imagens religiosas como uma manifestação supersticiosa, uma excentricidade no máximo. Já um judeu ou muçulmano praticantes podem ver na figura do Cristo crucificado um símbolo de opressão e morte. Não se pode dizer que eles não tenham boas razões históricas para pensar assim.
Aliás, a posição da Igreja Católica em relação ao laicismo tem algo de esquizofrênico. Enquanto ela se bate pela liberdade de culto --que pressupõe a não interferência estatal-- em países como a China e nações islâmicas, segue oficialmente condenando de forma duríssima a separação entre Estado e igreja, com termos como "tese absolutamente falsa", "erro perniciosíssimo" e "em alto grau injurioso para com Deus". Quem o afirma é a encíclica "Vehementer nos", baixada pelo papa Pio 10º (1903-1914) em 1906, como resposta à lei francesa que retirou os privilégios de que o Vaticano gozava no país. Até onde pude apurar, tal encíclica jamais foi revogada ou atualizada, o que torna sua posição aquela oficialmente abraçada pelo catolicismo. É claro que não cabe a mim ensinar os padres a rezar, mas é logicamente complicado defender a pluralidade quando se é minoria e a unidade quando na situação inversa. A contradição, é verdade, se dilui se se tem como pressuposto, como o faz o catolicismo, que existe apenas uma religião verdadeira. Essa, contudo, é uma lógica absolutamente não democrática e que pode levar à intolerância. Cabe aos Estados democráticos refutá-la, não apoiá-la.
Não acredito, entretanto, que se deva recair no outro extremo, como o vem fazendo a França. O país que concebeu e cultivou a separação entre Estado e igreja anda exagerando. Em 2004, o Parlamento gaulês emendou a Lei do Laicismo de 1905 para proibir a utilização de "símbolos religiosos ostensivos" em espaços públicos como escolas. O alvo eram os "hujub", os véus utilizados por mulheres muçulmanas. Mais recentemente, o presidente Nicolas Sarkozy vem falando em banir as burcas.
Vejo aí um outro erro de interpretação da natureza do Estado democrático. Se há uma liberdade fundamental a defender é a de que os indivíduos devem ser livres para possuir uma identidade --seja ela religiosa, política, sexual ou filosófica-- e expressá-la de forma pacífica. O Estado existe para servir os indivíduos em sua busca pelo que os deixe felizes ou os realize, não para colocá-los a serviço de um ideal de sociedade forjado por meia dúzia de políticos.