13/08/2009
Não resisto a comentar a ação judicial movida pelo Ministério Público Federal de São Paulo que pede a retirada de crucifixos e bíblias das repartições públicas federais no Estado. Antes que me acusem de mais uma vez pegar no pé dos religiosos, já advirto que, desta vez, ao final do artigo os defenderei dos excessos do anticlericalismo.
É claro que eu sou a favor de que esses símbolos desapareçam de uma vez por todas de nossas cortes. Essa é uma discussão que já deveria ter sido resolvida mais de um século atrás, quando a Constituição de 1891 estabeleceu a separação entre Estado e igreja. Inexplicavelmente, porém, as Cartas que se seguiram ao texto de 1891, em vez de avançar, recuaram no que diz respeito à laicidade do poder público. O grande escândalo é a Constituição de 1988, que, contrariando a tendência histórica dos países desenvolvidos e os mais elementares ditames do bom senso e da administração responsável das verbas públicas, reintroduziu o ensino religioso nas escolas da rede oficial.
Deixemos, porém, a involução do direito constitucional brasileiro um pouco de lado e nos concentremos na questão dos símbolos religiosos em espaços públicos. Os defensores da permanência de crucifixos se dividem em duas categorias: há os que tentam justificá-la recorrendo ao argumento de que a maioria da população é cristã e os que veem na simbologia um apelo a valores éticos universais. Discordo de ambos.
A primeira tese é bem fraquinha, como o demonstra a seguinte comparação: a maioria dos brasileiros, asseveram as pesquisas, é flamenguista ou gloriosamente corinthiana; a ninguém, contudo, ocorreria valer-se dessa constatação para propor que se ornem as paredes dos tribunais com flâmulas desses dois clubes. Maiorias não definem a decoração de paredes públicas.
De resto, nem todos os cristãos são entusiastas do crucifixo. Algumas denominações protestantes o consideram um caso acabado de idolatria, pecado cuja prática meus ancestrais judeus puniam com o apedrejamento até a morte. Não é esse, contudo, o ponto central. Subjaz a esse raciocínio da maioria uma concepção profundamente errada do que seja o Estado democrático. A vontade da maior parte dos cidadãos é por certo um elemento importante da democracia, mas não é absoluto nem incondicional --ou teríamos de considerar a Alemanha nazista uma nação democrática, pois Hitler ascendeu ao poder pela via do voto. Maiorias servem para decidir quais serão os governantes e representantes em pleitos majoritários. Também podem definir o destino de propostas legislativas que sejam submetidas a consulta popular. Mas seu papel acaba mais ou menos por aí. Os direitos das minorias encontram-se protegidos pela Constituição mesmo contra a vontade da maioria e de eventuais governantes. Até mesmo as ideias dos que não compõem a maior parte se fazem representar no Parlamento através dos partidos de oposição.
O segundo argumento, de que o Cristo crucificado tem um valor que transcende a esta ou àquela religião e se reveste de caráter ético universal, é um pouquinho mais sofisticado do que o anterior, mas também me parece insuficiente. Em termos estritamente objetivos a cruz foi um dos métodos de execução mais populares entre os séculos 6 a.C. e 4 d.C. Era utilizada por romanos, persas e egípcios, entre outros povos ansiosos para livrar-se de seus criminosos. Se alguém ousasse propor que as paredes de nossos tribunais fossem adornadas por forcas, guilhotinas ou cadeiras elétricas provocaria a justa indignação de boa parte da opinião pública. Ora, nós deixamos de ver a cruz como um instrumento de execução apenas e justamente porque ela se tornou o símbolo maior do cristianismo, caráter que lhe é indissociável. Ainda que se queira apregoar que ela representa também padrões morais observados por todas as religiões --tese que precisaria ser provada--, essa seria uma característica absolutamente secundária diante do peso religioso que a imagem adquiriu.
E o direito de todos a espaços públicos livres de proselitismo religioso deveria ser autoevidente. Ao contrário do que muitos podem pensar, isso é algo que importa mais para o crente membro de grupo ou seita minoritários do que para ateus e agnósticos. Nós que não acreditamos num ser superior ou que julgam essa uma questão indecidível, tendemos a considerar imagens religiosas como uma manifestação supersticiosa, uma excentricidade no máximo. Já um judeu ou muçulmano praticantes podem ver na figura do Cristo crucificado um símbolo de opressão e morte. Não se pode dizer que eles não tenham boas razões históricas para pensar assim.
Aliás, a posição da Igreja Católica em relação ao laicismo tem algo de esquizofrênico. Enquanto ela se bate pela liberdade de culto --que pressupõe a não interferência estatal-- em países como a China e nações islâmicas, segue oficialmente condenando de forma duríssima a separação entre Estado e igreja, com termos como "tese absolutamente falsa", "erro perniciosíssimo" e "em alto grau injurioso para com Deus". Quem o afirma é a encíclica "Vehementer nos", baixada pelo papa Pio 10º (1903-1914) em 1906, como resposta à lei francesa que retirou os privilégios de que o Vaticano gozava no país. Até onde pude apurar, tal encíclica jamais foi revogada ou atualizada, o que torna sua posição aquela oficialmente abraçada pelo catolicismo. É claro que não cabe a mim ensinar os padres a rezar, mas é logicamente complicado defender a pluralidade quando se é minoria e a unidade quando na situação inversa. A contradição, é verdade, se dilui se se tem como pressuposto, como o faz o catolicismo, que existe apenas uma religião verdadeira. Essa, contudo, é uma lógica absolutamente não democrática e que pode levar à intolerância. Cabe aos Estados democráticos refutá-la, não apoiá-la.
Não acredito, entretanto, que se deva recair no outro extremo, como o vem fazendo a França. O país que concebeu e cultivou a separação entre Estado e igreja anda exagerando. Em 2004, o Parlamento gaulês emendou a Lei do Laicismo de 1905 para proibir a utilização de "símbolos religiosos ostensivos" em espaços públicos como escolas. O alvo eram os "hujub", os véus utilizados por mulheres muçulmanas. Mais recentemente, o presidente Nicolas Sarkozy vem falando em banir as burcas.
Vejo aí um outro erro de interpretação da natureza do Estado democrático. Se há uma liberdade fundamental a defender é a de que os indivíduos devem ser livres para possuir uma identidade --seja ela religiosa, política, sexual ou filosófica-- e expressá-la de forma pacífica. O Estado existe para servir os indivíduos em sua busca pelo que os deixe felizes ou os realize, não para colocá-los a serviço de um ideal de sociedade forjado por meia dúzia de políticos.
É claro que eu sou a favor de que esses símbolos desapareçam de uma vez por todas de nossas cortes. Essa é uma discussão que já deveria ter sido resolvida mais de um século atrás, quando a Constituição de 1891 estabeleceu a separação entre Estado e igreja. Inexplicavelmente, porém, as Cartas que se seguiram ao texto de 1891, em vez de avançar, recuaram no que diz respeito à laicidade do poder público. O grande escândalo é a Constituição de 1988, que, contrariando a tendência histórica dos países desenvolvidos e os mais elementares ditames do bom senso e da administração responsável das verbas públicas, reintroduziu o ensino religioso nas escolas da rede oficial.
Deixemos, porém, a involução do direito constitucional brasileiro um pouco de lado e nos concentremos na questão dos símbolos religiosos em espaços públicos. Os defensores da permanência de crucifixos se dividem em duas categorias: há os que tentam justificá-la recorrendo ao argumento de que a maioria da população é cristã e os que veem na simbologia um apelo a valores éticos universais. Discordo de ambos.
A primeira tese é bem fraquinha, como o demonstra a seguinte comparação: a maioria dos brasileiros, asseveram as pesquisas, é flamenguista ou gloriosamente corinthiana; a ninguém, contudo, ocorreria valer-se dessa constatação para propor que se ornem as paredes dos tribunais com flâmulas desses dois clubes. Maiorias não definem a decoração de paredes públicas.
De resto, nem todos os cristãos são entusiastas do crucifixo. Algumas denominações protestantes o consideram um caso acabado de idolatria, pecado cuja prática meus ancestrais judeus puniam com o apedrejamento até a morte. Não é esse, contudo, o ponto central. Subjaz a esse raciocínio da maioria uma concepção profundamente errada do que seja o Estado democrático. A vontade da maior parte dos cidadãos é por certo um elemento importante da democracia, mas não é absoluto nem incondicional --ou teríamos de considerar a Alemanha nazista uma nação democrática, pois Hitler ascendeu ao poder pela via do voto. Maiorias servem para decidir quais serão os governantes e representantes em pleitos majoritários. Também podem definir o destino de propostas legislativas que sejam submetidas a consulta popular. Mas seu papel acaba mais ou menos por aí. Os direitos das minorias encontram-se protegidos pela Constituição mesmo contra a vontade da maioria e de eventuais governantes. Até mesmo as ideias dos que não compõem a maior parte se fazem representar no Parlamento através dos partidos de oposição.
O segundo argumento, de que o Cristo crucificado tem um valor que transcende a esta ou àquela religião e se reveste de caráter ético universal, é um pouquinho mais sofisticado do que o anterior, mas também me parece insuficiente. Em termos estritamente objetivos a cruz foi um dos métodos de execução mais populares entre os séculos 6 a.C. e 4 d.C. Era utilizada por romanos, persas e egípcios, entre outros povos ansiosos para livrar-se de seus criminosos. Se alguém ousasse propor que as paredes de nossos tribunais fossem adornadas por forcas, guilhotinas ou cadeiras elétricas provocaria a justa indignação de boa parte da opinião pública. Ora, nós deixamos de ver a cruz como um instrumento de execução apenas e justamente porque ela se tornou o símbolo maior do cristianismo, caráter que lhe é indissociável. Ainda que se queira apregoar que ela representa também padrões morais observados por todas as religiões --tese que precisaria ser provada--, essa seria uma característica absolutamente secundária diante do peso religioso que a imagem adquiriu.
E o direito de todos a espaços públicos livres de proselitismo religioso deveria ser autoevidente. Ao contrário do que muitos podem pensar, isso é algo que importa mais para o crente membro de grupo ou seita minoritários do que para ateus e agnósticos. Nós que não acreditamos num ser superior ou que julgam essa uma questão indecidível, tendemos a considerar imagens religiosas como uma manifestação supersticiosa, uma excentricidade no máximo. Já um judeu ou muçulmano praticantes podem ver na figura do Cristo crucificado um símbolo de opressão e morte. Não se pode dizer que eles não tenham boas razões históricas para pensar assim.
Aliás, a posição da Igreja Católica em relação ao laicismo tem algo de esquizofrênico. Enquanto ela se bate pela liberdade de culto --que pressupõe a não interferência estatal-- em países como a China e nações islâmicas, segue oficialmente condenando de forma duríssima a separação entre Estado e igreja, com termos como "tese absolutamente falsa", "erro perniciosíssimo" e "em alto grau injurioso para com Deus". Quem o afirma é a encíclica "Vehementer nos", baixada pelo papa Pio 10º (1903-1914) em 1906, como resposta à lei francesa que retirou os privilégios de que o Vaticano gozava no país. Até onde pude apurar, tal encíclica jamais foi revogada ou atualizada, o que torna sua posição aquela oficialmente abraçada pelo catolicismo. É claro que não cabe a mim ensinar os padres a rezar, mas é logicamente complicado defender a pluralidade quando se é minoria e a unidade quando na situação inversa. A contradição, é verdade, se dilui se se tem como pressuposto, como o faz o catolicismo, que existe apenas uma religião verdadeira. Essa, contudo, é uma lógica absolutamente não democrática e que pode levar à intolerância. Cabe aos Estados democráticos refutá-la, não apoiá-la.
Não acredito, entretanto, que se deva recair no outro extremo, como o vem fazendo a França. O país que concebeu e cultivou a separação entre Estado e igreja anda exagerando. Em 2004, o Parlamento gaulês emendou a Lei do Laicismo de 1905 para proibir a utilização de "símbolos religiosos ostensivos" em espaços públicos como escolas. O alvo eram os "hujub", os véus utilizados por mulheres muçulmanas. Mais recentemente, o presidente Nicolas Sarkozy vem falando em banir as burcas.
Vejo aí um outro erro de interpretação da natureza do Estado democrático. Se há uma liberdade fundamental a defender é a de que os indivíduos devem ser livres para possuir uma identidade --seja ela religiosa, política, sexual ou filosófica-- e expressá-la de forma pacífica. O Estado existe para servir os indivíduos em sua busca pelo que os deixe felizes ou os realize, não para colocá-los a serviço de um ideal de sociedade forjado por meia dúzia de políticos.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.E-mail: helio@folhasp.com.br
0 comentários:
Postar um comentário