O samba, quem diria, constitui um importante eixo simbólico que promove a conexão entre dois espaços aparentemente opostos e contraditórios: as escolas de samba e as igrejas evangélicas. A constatação foi feita pela antropóloga Kelly Adriano de Oliveira, que acaba de defender a tese de doutorado “Deslocamentos entre o samba e a fé – Um olhar para gênero, raça, cor, corpo e religiosidade na produção de diferenças”. O trabalho, apresentado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, investigou a maneira como rainhas, musas, madrinhas e princesas de bateria de escolas de samba percebem e discutem as questões relativas ao estereótipo da mulata, normalmente associado à sexualidade, sensualidade e sedução. “A questão da religiosidade, que não estava prevista num primeiro momento, acabou surgindo como um elemento que permeia de alguma forma todos esses temas”, afirma a pesquisadora, que foi orientada pela professora Mariza Corrêa.
A associação entre samba e fé não é algo exatamente novo no cenário brasileiro, como lembra Kelly. Ritmo historicamente relacionado às tradições negras, o samba frequentemente faz referências e tem conexões históricas com manifestações e símbolos religiosos, notadamente os relacionados aos cultos de matriz africana. Ao entrevistar mulheres que desfilam em escolas de samba de São Paulo, para saber como elas trabalham com a constituição de suas subjetividades, identidades e diferenças, a antropóloga apurou que parte delas frequenta igrejas evangélicas, principalmente as de vertente neopentecostal. As mais citadas foram Renascer em Cristo, Bola de Neve e da Graça Mundial “Foi uma surpresa estimulante para mim, uma vez que esses dois ‘mundos’ são, pelo senso comum, excludentes entre si”, revela.
Ao transitarem por esses espaços, diz a pesquisadora, as sambistas conseguem superar duas aparentes incoerências. A primeira diz respeito ao discurso comumente usado por igrejas neopentecostais no sentido de deslegitimar as manifestações religiosas afro-brasileiras. A segunda reside no fato de essas mesmas igrejas terem uma visão de corpo e corporeidade extremamente conservadora. “Para elas, o sexo e, principalmente o corpo feminino, está relacionado exclusivamente à reprodução, o que acaba por estabelecer uma ruptura com o prazer”, explica. Mas como, afinal, essas mulheres conseguem promover a conciliação de aspectos tão díspares? Conforme Kelly, a combinação é possível porque essas igrejas neopentecostais se apropriam de alguns elementos da cultura popular, para reelaborá-la com o objetivo de atrair e manter novos fiéis.
Desse modo, a ida às escolas de samba é, por assim dizer, permitida e purificada. “De acordo com o depoimento dessas mulheres, ao frequentarem a igreja elas passam a ter o corpo e a alma blindados. Dito de outra maneira, é como se os corpos ficassem protegidos do olhar vulgarizante normalmente destinado a elas, por conta dos estereótipos associados à mulata”. Tal expurgo, acrescenta a autora da tese, também faz referência ao ambiente das quadras ou dos desfiles, onde normalmente há referências simbólicas aos santos das igrejas católicas e aos orixás do candomblé. “Por acreditarem que têm o corpo e a alma protegidos, portanto entregues a Cristo, as sambistas dizem não se importar com o local onde estão, visto que sua fé não pode ser abalada. Elas fazem uma clara separação entre religião e cultura, assim como há quem faça entre religião e ciência”.
Nas entrevistas que realizou com as madrinhas, musas, rainhas e princesas de bateria, Kelly constatou que elas não manifestam publicamente, no espaço do samba, a sua religiosidade. Nem por isso, porém, deixam de tentar converter outros frequentadores. Nesse caso, a abordagem é feita de forma individualizada e sutil. Segundo a antropóloga, as sambistas não negam a sua sensualidade, mas optam por usar roupas mais comportadas que as das colegas que não são evangélicas. Também preferem os tênis às sandálias de salto alto, durante os ensaios, tudo em nome da não-vulgarização da própria imagem. Um aspecto interessante levantado pela pesquisa é que, no mundo da religião, as “sambistas de Cristo” também procuram se diferenciar daquelas que são “apenas evangélicas”.
Para marcar essa distinção, elas se apropriam e reelaboram elementos dos espaços de samba e das culturas afro. “Um aspecto que chama a atenção é o penteado. Normalmente, essas mulheres usam tranças ou cabelo ao estilo black power, enquanto as que não vivenciam as mesmas experiências religiosas delas optam por cabelos alongados, por técnicas de relaxamento, ou por cabelos lisos, obtidos com o recurso do alisamento”. Nesse sentido, prossegue Kelly, as “sambistas de Cristo” se posicionam como protagonistas de suas próprias histórias. “Elas mostram um manejo na forma de lidar com as situações de diferença. Não se posicionam como vítimas dessas situações em nenhum ambiente que frequentam”, afirma a pesquisadora.
Salmo 150Mais do que permitir que seus fiéis frequentem o espaço do samba, as igrejas evangélicas neopentecostais lançam mão do gênero musical em suas estratégias evangelizadoras. Um exemplo disso é a Igreja Renascer em Cristo, que promove anualmente pelas ruas de São Paulo, no dia de Corpus Christi, a Marcha para Jesus. No ano passado, conforme os organizadores, cerca de 5 milhões de pessoas teriam participado do evento. Nessas ocasiões, a Renascer vale-se da música e da dança para louvar a Cristo.
Além de trios elétricos que apresentam diversos ritmos bastante populares, como rock, axé e funk, a igreja apresenta, durante a marcha, uma ala formada, não por acaso, por ritmistas que tocam os mesmos instrumentos utilizados pelas escolas de samba. Batizada com o sugestivo nome de Bateria Salmo 150, sua função é animar os jovens durante a caminhada. O referido salmo, o último da bíblia, exorta aqueles que crêem a enaltecer o Senhor por meio de manifestações que remetem à alegria. Um dos versículos expressa o seguinte: “Louvai-O com adufe e com danças; louvai-O com instrumentos de cordas e com flauta”.
Preconceito De acordo com a antropóloga, as musas, madrinhas, rainhas e princesas de bateria dizem sentir maior preconceito em relação ao estereótipo da mulata nos ambientes social e profissional. Algumas delas relevaram que preferem omitir em seus locais de trabalho que são ligadas ao samba. O objetivo é evitar insinuações e situações de assédio. “Infelizmente, muita gente ainda associa a imagem da mulata à da mulher disponível, por isso mesmo elas mostraram rejeição ao termo mulata. As garotas que entrevistei revelaram, ainda, que são alvos de apelidos como ‘mulata globeleza’, cunhados por pessoas que sequer sabem que elas pertencem ao mundo do samba, só por uma associação quase que imediata com suas aparências”.
Tal comportamento, reconhece a pesquisadora, está de algum modo ligado a permanência dos fenótipos e as relações com o mito da democracia racial ainda presentes no país. Segundo Kelly, as discussões sobre a mestiçagem da sociedade brasileira frequentemente deixam de refletir sobre o conflito presente nesse processo, um conflito marcado por raça, gênero e classe. “Um ponto que deve ser entendido é que essa mestiçagem não foi e não é tranquila como muitos querem fazer crer. Gilberto Freyre, por exemplo, descreveu a questão como se fosse um romance, como se não tivesse sido resultado de uma relação de poder entre senhores e escravos. Teóricas feministas, porém, classificam essa relação como um verdadeiro estupro colonial. Ou seja, foi fruto de uma violência que trazia subjacente o estereótipo da mulher negra, como dona de uma sexualidade e sensualidade natural, disponível, provocativa e irresistível. Muitas dessas percepções se refletem até hoje”, assinala a autora da tese.
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