domingo, 25 de janeiro de 2009

A má abolição

Hoje um estudo clássico, "A Integração do Negro na Sociedade de Classes", de Florestan Fernandes, atacou o mito da democracia racial.
É impossível pensar o Brasil sem pensar a escravidão. O escravismo teve, entre nós, praticamente a idade que o país tem hoje. Durou quase 400 anos, num país com pouco mais de meio milênio de existência. Enraizou-se em toda a nossa extensão territorial. E deu às nossas vidas formas, práticas e sentidos singulares. Como se não bastasse, nossa formação histórica aconteceu pelo encontro de povos escravistas. E escravistas fomos todos -senhores e escravos (palmarinos escravizavam; negros forros compravam cativos etc.)- até meados do século 19, quando se configurou o movimento abolicionista. Foi aí, pela primeira vez em nossa história, que o sistema escravista em si foi colocado em questão. Daí a profundeza das marcas que a escravidão gravou na vida brasileira. A onipresença da herança escravista. Desse ponto de vista, aliás, a produção intelectual brasileira surpreende. E de forma desconcertante, que mereceria ser analisada com vagar. Freyre e Florestan É certo que nossa historiografia produziu um rio de livros sobre a escravidão. Mas o tema escasseia nos ensaios de interpretação social da vida brasileira. Não foram muitos os que seguiram o exemplo de [Joaquim] Nabuco. Este, como André Rebouças, se concentrou no exame da escravidão e, ao mesmo tempo, na formulação de um projeto de futuro, propondo uma reforma geral da sociedade, de modo que o ex-escravo nela pudesse ingressar como cidadão pleno. É nesse campo que surgem Gilberto Freyre [1900-87] e Florestan Fernandes [1920-95]. Freyre, o mais ousado e inovador dos pensadores sociais que o Brasil produziu. Florestan, espírito ao mesmo tempo desbravador e meticuloso, mestre do rigor sociológico. Freyre, em "Casa-Grande & Senzala", concentrando-se na escravidão. Florestan, esquadrinhando a outra ponta do arco nabuquiano: o ingresso do descendente de escravos na "ordem social competitiva" -não como o cidadão do sonho de Nabuco, mas como expressão crua da subcidadania, formando a ralé de uma São Paulo em tenso e intenso processo de expansão e transformação. Esse é o tema de "A Integração do Negro na Sociedade de Classes", livro de meados da década de 1960, cujo primeiro volume agora se relança. Um clássico? Sim. Florestan quer nos mostrar, em seu estudo, como "o povo emerge" na história brasileira. E o faz por meio do preto e do mulato "porque foi este contingente populacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil". É assim que nos fala do destino do liberto na transição da ordem escravocrata à ordem competitiva -para então examinar as profundas consequências materiais, políticas, sociais e culturais desse processo. E identifica, no abandono do liberto naquele momento de transição, a base da exclusão social das massas negromestiças na moderna sociedade brasileira. Mas, ao buscar as causas últimas dessa marginalização, vai encontrá-las num compósito que independe da cor da pele. À época da abolição, o Estado e a igreja, assim como os senhores ou já ex-senhores, entregaram os libertos à própria sorte. No campo, eles não tinham terras para cultivar. Na cidade, não recebiam educação, nem instrução técnica necessária para se engajar no novo mundo produtivo. Foi assim que ex-escravos e descendentes de escravos chegaram ao século 20. Não apenas em estado de pobreza ou de miséria, mas, sobretudo, sem os instrumentos indispensáveis à superação de tal situação. Vale dizer, condenados ao subproletariado urbano, num contexto de inadaptação e anomia. Ainda segundo Florestan, ao encarar essa realidade e combater o preconceito, pretos e mulatos davam uma resposta a dois dilemas sociais que definiam o atraso do Brasil como sociedade moderna. Interesse histórico Por fim, Florestan faz sua célebre crítica da ideologia da democracia racial, que acabaria se convertendo no cerne da oposição da esquerda acadêmica à obra de Freyre -uma disputa de poder, no espaço intelectual brasileiro, que ainda está para ser estudada. Hoje, a crítica de Florestan tem interesse principalmente histórico. Ninguém mais, no país, acha que vive numa democracia racial. De outra parte, o buraco é mais embaixo. Não somos uma democracia racial, mas podemos vir a ser. Florestan dizia que aquela ideologia era manipulada em razão dos interesses da classe dirigente. Mas que, se caísse nas mãos de pretos e mulatos e estes dispusessem de autonomia social, poderia se transformar em "fator de democratização" da riqueza, da cultura e do poder.
São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009.
ANTONIO RISÉRIO ESPECIAL PARA A FOLHA.

SOB NOVA DIREÇÃO / IMPÉRIO EM XEQUE

Mundo refuta liderança "natural" de Obama

Militarismo e declínio econômico fizeram com que "bolha de poder" dos EUA, assim como a imobiliária, se rompesseNo seu discurso de posse, presidente disse que país está "preparado para liderar novamente", contrariando adeptos do multilateralismo.

"E, assim, dizemos a todos os povos e aos governos que nos estão assistindo hoje, desde as capitais mais grandiosas até o pequeno povoado em que meu pai nasceu: saibam que a América é amiga de cada país e cada homem, mulher e criança que busca um futuro de paz e de dignidade, e saibam que estamos preparados para liderar novamente."São 60 palavras de um parágrafo solto no meio do discurso de posse de Barack Obama como presidente dos EUA, na terça-feira, mas são as que mais barulho vêm fazendo entre formadores de opinião progressistas, do autor britânico Thimoty Garton Ash ao humorista norte-americano Jon Stewart, passando pelos especialistas em relações exteriores Richard Haass e Peter Beinart, entre outros.Depois de oito anos do unilateralismo belicista da dupla republicana George W. Bush-Dick Cheney, o democrata Barack Obama angariou boa parte da boa vontade mundial e dos votos domésticos com uma plataforma multilateral, a promessa de um mundo em que os Estados Unidos dividem o centro de decisões com outros atores. Não um mundo em que o país "está preparado para liderar novamente".Obama repetiria as palavras dois dias depois, na cerimônia de posse de sua secretária de Estado, Hillary Clinton, na Chancelaria norte-americana. Os EUA "podem estar prontos para liderar novamente, mas e se o mundo não estiver mais disposto a seguir?", perguntou Garton Ash em artigo publicado dois dias depois da posse."E se o mundo acreditar que a América perdeu muito de seu direito moral de liderar nos últimos oito anos, não tem mais o poder que costumava ter e, de qualquer maneira, nós estamos caminhando para um sistema global multipolar, como o próprio Conselho Nacional de Inteligência de Washington prevê?", indaga-se o britânico, citando relatório da entidade, que reúne a comunidade de inteligência dos EUA, divulgado no fim do ano passado.É o que o autor Peter Beinart chama de "bolha de poder" do país, fazendo um paralelo com a bolha imobiliária norte-americana cujo fim deu origem à crise econômica atual. Tanto uma como a outra estouraram, defende ele, e Obama tem de aprender a viver nos novos tempos. "Bush e Dick Cheney eram como os proprietários de imóveis que se endividaram cada vez mais, certos de que eles poderiam se safar porque o valor de sua casa iria crescer para sempre", afirma.Mas os compromissos militares e ideológicos dos EUA cresceram muito além da capacidade do país de honrá-los, argumenta o autor de "The Good Fight - Why Liberals -And Only Liberals- Can Win the War on Terror and Make America Great Again" (A Boa Luta -Por Que os Progressistas -E Só os Progressistas- Podem Vencer a Guerra ao Terror e Fazer a América Grande Novamente, HarperCollins, 2006).Razões do estouro"E agora a bolha do poder estourou. Militarmente, movimentos guerrilheiros selvagens e espertos aprenderam a sangrar nosso dinheiro, nossas vidas e membros. Economicamente, os recursos estão escassos; é difícil pagar para transformar o Oriente Médio quando nós estamos afundados em débito, tentando recuperar o Meio-Oeste. E, ideologicamente, a democracia não parece mais o destino inevitável de toda a humanidade."Pela mesma linha segue Richard Haass, presidente do influente Council on Foreign Relations, centro de pensamento baseado em Nova York, cujo nome frequentou listas nos últimos dias para fazer parte da alta diplomacia obamista em formação. Para ele, o novo presidente vai enfrentar mais restrições do que qualquer de seus antecessores recentes."A era da unipolaridade americana acabou", afirma Haass. "Obama vai herdar um mundo no qual o poder em todas as suas formas -militar, econômica, diplomática e cultural- é mais igualmente distribuído do que nunca." Isso significa, acredita ele, que o ocupante da Casa Branca vai ter de lidar com um maior número de ameaças, vulnerabilidades e atores independentes que "podem resistir a se sujeitar ao desejo dos EUA".De mais a mais, nesse ponto a retórica do novo presidente lembrou a de seu antecessor. Como disse mais candidamente o humorista Jon Stewart em seu influente programa de TV, no dia seguinte à posse, ao exibir o trecho do discurso: "Nós já não ouvimos isso antes?"

São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009.

"Nova Carta é muito mais inclusiva", diz antropólogo

Para Xavier Albó, Constituição reconhece pluralismo do país e beneficia inclusive a oposição, por dar autonomia a departamentos

Considerado um dos mais influentes intelectuais da Bolívia, o antropólogo e sacerdote jesuíta Xavier Albó afirma que a nova Constituição avança ao reconhecer o pluralismo étnico do país de maioria indígena. A seguir, a entrevista concedida à Folha, por telefone: (FM)
FOLHA - Quais as mudanças positivas da nova Constituição? XAVIER ALBÓ - Trata-se da marcação das linhas de uma quadra -porque a Constituição é sempre isso- que, em termos estruturais, é muito mais inclusiva do que as Constituições anteriores, principalmente com relação a todos os povos indígenas, originários, que iam entrando pouco a pouco desde a última Constituição, iam lhes dando coisinhas. A nova Carta diz que a democracia tem de ir junto com o respeito ao pluralismo. Não só de opinião, mas de saber que o país está formado, desde antes da conquista espanhola, por povos diferentes e que, no caso da Bolívia, representam a maioria.
FOLHA - Um dos pontos mais criticados é a criação de um sistema judicial dentro das comunidades indígenas, envolvendo castigos físicos e penas de morte. Qual a sua posição? ALBÓ - Um dos elementos do pluralismo é o pluralismo jurídico. Esta Constituição prevê três jurisdições: a ordinária, a do ambiente, ainda não desenvolvida, e a jurisdição dos povos indígenas. A última deixa claro que é apenas no território desses povos. E, ao dizer jurisdição indígena, é muito mais do que Justiça: o tema central é que há o direito com relação à administração da terra. E tudo dentro do marco da nova Constituição. A Carta deixa claro que não há pena de morte, que é preciso respeitar os direitos internacionalmente reconhecidos etc. Portanto, isso não tem relação com movimentos de multidão, linchamentos.
FOLHA - A Constituição prevê vários tipos de autonomia, como a departamental, que precisariam ser regulamentados. O sr. acha que a aprovação provocará mais confrontos entre governo e oposição? ALBÓ - Neste momento, houve mudanças qualitativas, melhorando o texto aprovado em 2007 com as reuniões de setembro e outubro, quando houve concessões positivas. Mas a contradição é que a oposição faz a campanha pelo "não". É um suicídio, porque, se o "não" vence, terão de atuar com a Constituição de 1967, que não tem nada de nada sobre autonomia. Parece que eles querem que a porcentagem do "sim" seja reduzida, mas sem que o "não ganhe.
São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009. DO ENVIADO A POTOSÍ

Bolívia vota hoje Constituição que causou convulsão no país

Se Carta for aprovada, Evo Morales concorrerá à reeleição em dezembro deste anoEm 2008, conflitos em torno de projeto deixaram 13 mortos; igrejas fizeram campanha contra Carta, que julgam abrir brecha a aborto
Com a memória viva da aguda crise política e de violentos confrontos no ano passado, cerca de 3,8 milhões de bolivianos irão novamente às urnas hoje para decidir sobre a aprovação do projeto de Constituição impulsionado por Evo Morales. A proposta amplia a presença do Estado na economia, aumenta os direitos da população indígena, estabelece diversos tipos de autonomia e introduz a reeleição presidencial.Caso a tendências das pesquisas de opinião seja confirmada, a Bolívia deverá aprovar a sua 16ª Constituição desde 1825, quando a primeira Carta do país foi promulgada pelo libertador Simón Bolívar.Um dos pilares da "refundação" da Bolívia proposta por Morales, o projeto de Constituição diz, em sua introdução, que "deixamos no passado o Estado colonial, republicano e neoliberal. Assumimos o desafio histórico de construir coletivamente o Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário".Para chegar até o referendo de hoje, a Bolívia atravessou uma jornada dramática e violenta. Em dezembro de 2007, após mais um ano de paralisação, a bancada governista da Assembleia Constituinte aprovou a Carta sem a oposição e longe da sede, a cidade de Sucre, onde protestos deixaram três oposicionistas mortos e dezenas de feridos.Ao longo do ano passado, departamentos governados pela oposição promoveram referendos para aprovar espécies de Constituições regionais outorgando mais autonomia em relação ao poder central. Em setembro, a tensão culminou num violento confronto no departamento de Pando, com um saldo de 13 mortos, a maioria camponeses pró-Morales.O ambiente de confronto arrefeceu em outubro, quando a oposição e o governo chegaram a um acordo no Congresso, no qual Morales concordou em disputar apenas uma nova eleição sob a nova Carta. As eleições gerais foram marcadas para dezembro deste ano, meio termo entre os governistas, que a queriam em julho, e a oposição, que defendia o fim de 2010.Com o acordo, Morales, no poder há três anos, tem o direito de se candidatar mais uma vez, podendo ficar na Presidência da Bolívia até 2014.Ao todo, mais de 100 dos 411 artigos foram modificados, em temas como o aumento das autonomias departamentais.Polêmica religiosaNas últimas semanas de campanha eleitoral, que ocorreu sem maiores distúrbios, o principal tema girou em torno de crítica de grupos religiosos. Porta-vozes católicos reclamaram da retirada de menção à sua religião da Carta, enquanto líderes protestantes afirmaram que o texto, ao mencionar vagamente "direitos sexuais e reprodutivos", abria a porta para a aprovação do casamento homossexual e do aborto."Que leiam diante do povo em qual artigo se legaliza o aborto. Nós somos os maiores defensores da vida", disse Morales num dos diversos momentos em que refutou críticas envolvendo temas familiares.Analistas bolivianos têm coincidido em que, se aprovada, a nova Constituição precisará de cerca de cem leis para entrar em vigor. A regulamentação inclui temas espinhosos, como o das autonomias, a criação de sistema judiciais nos 32 povos indígenas e, o mais urgente, um código eleitoral para as eleições gerais de dezembro.Um dos caminhos propostos é a regulamentação de todas as leis pelo atual Congresso, cujo Senado é dominado pela oposição a Morales, mas governistas querem que o atual Parlamento faça apenas o mínimo necessário -no caso, o código eleitoral.Já o presidente tem ameaçado regulamentar tudo por meio de decretos.
FABIANO MAISONNAVE. ENVIADO ESPECIAL A POTOSÍ
São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009.

JORNAL EXTRA: PÁGINA CONTENDO MATÉRIAS SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

O JORNAL EXTRA COLOCOU NO AR UMA PÁGINA CONTENDO MATÉRIAS SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA. A PRIMEIRA DE UMA SÉRIE DE MATÉRIAS FALANDO SOBRE ESSE TEMA OFERECE AO PÚBLICO LEITOR ESCLARECIMENTOS SOBRE SITUAÇÕES E DIREITOS RELATIVOS À LIBERDADE DE CRENÇA E DE CULTO ALÉM DE UMA PESQUISA DE OPINIÃO.

PARA SABER MAIS CLIQUE AQUI:
http://extra.globo.com/especiais/religiao/