quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Um frenesi chamado Avatar O filme de James Cameron mal começou a ser desconstruído e já provoca uma primeira baixa: o consenso

domingo, 7 de fevereiro de 2010, 07:19 | Versão Impressa

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Um frenesi chamado Avatar
O filme de James Cameron mal começou a ser desconstruído e já provoca uma primeira baixa: o consenso

Mac Margolis* - O Estado de S.Paulo


Li recentemente que trombadinhas do Rio de Janeiro estão se escondendo nas árvores em volta da Lagoa Rodrigo de Freitas, esperando a hora de dar o bote em pedestres como se fossem guerreiros voadores de Avatar. Duvido que os meliantes do Rio tenham se inspirado no Cineplex, onde o ingresso para a sessão 3D do blockbuster da hora chega a R$ 25. Mas não me surpreenderia se alguém acusasse James Cameron de plagiar os cariocas.

Ninguém discute que o badalado diretor americano tenha criado um genuíno frenesi global com seu épico, que acaba de colher nove indicações ao Oscar (inclusive de melhor filme e melhor direção) e teria demolido todos os recordes da história do cinema. Até o início deste mês a bilheteria de Avatar já ultrapassara a barreira de US$ 2 bilhões, faturando em 45 dias o que a economia de, digamos, Cabo Verde produziu durante todo o ano passado (existem controvérsias sobre o recordista, pois há quem garanta que o campeão de todos os tempos é ...E o Vento Levou, de 1937, cuja bilheteria, corrigida pela inflação, beira os US$ 1,5 bilhão apenas nos Estados Unidos, para US$ 602 milhões de Avatar nesse mercado). Mas, segundo a patrulha, é tudo pilhagem. Cameron e sua máquina de Hollywood teriam afanado enredos, personagens e até a ideia-mãe de Avatar de obras as mais diversas. Entre os surrupiados, um romance de ficção científica de 1957 (Call me Joe), uma revista em quadrinhos da década de 80 (Timespirits) e o filme Pocahontas, da Disney. Mas as maiores vítimas da cleptofilmografia são os irmãos russos Strugatsky, autores de Noon Universe, um seriado de ficção científica dos anos 90 ambientado num universo chamado Pandora, que, como o Pandora de Avatar, é coberto por florestas tropicais e habitado pelos humanoides Naves, suspeitamente parecidos com os superdotados Na"Vis de Cameron.

Até aí, nenhuma surpresa. Em tempos de ciberdemocracia, você é o que você cata pelo Google e que se dane o direito autoral. Porém, o mais marcante de Avatar não é quanto dos seus 163 minutos se deve à criatividade alheia, senão o que ele conseguiu provocar quando as luzes do cinema acendem. Por que tanto barulho sobre uma fantasia em celuloide e qual a explicação para essa fita ter mexido tanto e com todos?

Pela inveja, sem dúvida. O enredo de Avatar pode ser dos mais simplórios, mas, de frente para o telão, com óculos 3D e imersão em Dolby Surround Sound, toda sensação se multiplica. Se a marca do cinema é sua capacidade de transportar o espectador para outra realidade, Avatar é uma nave espacial. "É o filme mais lindo que vi em muitos anos", suspirou o veterano crítico David Denby, de The New Yorker.

Pode ser o mais polêmico, também. Estudiosos de antropologia, cientistas políticos e os polemistas de plantão travam debates acalorados na imprensa e na web sobre o conteúdo político do filme e sua "mensagem". A extrema direita dos Estados Unidos detestou-o pelo seu suposto ranço antiamericano. Por essa versão, o ataque do sinistro Povo dos Céus a Pandora seria uma mal dissimulada invasão norte-americana ao Iraque. Pela mesma razão, o filme mereceu aplausos dos ambientalistas, ONGs e dos bolivarianos da vizinhança. Ainda outros reconhecem a força "imperialista" de Cameron como uma alegoria da Blackwater, a empresa de soldados de aluguel que ganhou manchetes e processos pela barbárie no Iraque. Evo Morales não é exatamente cinéfilo, mas após assistir a Avatar - dizem que foi apenas a terceira vez que entrara num cinema na vida - o presidente cocalero boliviano elogiou-o como "o modelo perfeito da luta contra o capitalismo e pela proteção à natureza". Logo mais, quem sabe, teremos teses, seminários e teorias para desconstruir cada tomada do efeito Avatar.

Os chineses são mais pragmáticos. Não chegaram a mudar o nome da paisagem nacional, como inicialmente foi noticiado. Mas bem que aproveitaram a onda do cinema imperialista para turbinar o turismo, tacando um apelido chamativo numa das suas montanhas mais vistosas. Assim a bela Coluna do Céu Austral também passou a ser chamada Montanha da Aleluia, em homenagem ao penhasco flutuante de Avatar. "É o orgulho da Zhangjiajie", disse Ding Yunyong, secretário de turismo da cidade , à agência Xinua.

Preocupados, talvez, com o sucesso do filme ocidental, a maior bilheteria da história da China (mais de US$ 127 milhões, segundo o website Box Office Mojo), os dirigentes culturais decidiram retirar das salas todas as versões em duas dimensões de Avatar e abrir espaço para um novo documentário nacional sobre Confúcio. A fita nacional, diferentemente do rival de Hollywood, é um hino à hierarquia que agradou à cúpula comunista e afugentou o público. Já que na China globalizada quem não tem cachorro caça telespectador com gato, as autoridades culturais se apressaram em trazer de volta ao grande público a versão light de Avatar.

Na guerra das versões sobre Avatar, ninguém ouve ninguém. Seria um alerta perspicaz sobre o perigo da ruína ecológica, ainda mais pertinente depois do fracasso da cúpula de Copenhague? Ou é apenas mais uma fábula do bom selvagem, com purpurina digital? (Se bem que Robinson Crusoe, de pele azul montando dragões alados, enobrece até o mais batido dos clichês.) As feministas se dividem. Algumas elogiam as mulheres de Avatar como as personagens mais fortes do filme, enquanto outras criticam a quase nudez das guerreiras, truque confessado pelo diretor para fisgar o público masculino (humanoide-objeto, nunca mais!). Kim Masters, comentarista da televisão pública americana, engrossou o caldo: "Cameron faz filmes para as mulheres disfarçados de filmes para homens." Avatar é racista? Os defensores de minorias afirmam que sim, já que o salvador da pátria da história é um gringo branco. Esquecem-se de que o protagonista Jake Sully também é paraplégico e vítima da guerra, outra categoria atualíssima de "exclusão social". O universo do filme é Pandora, mas aqui de fora o mundo mais parece Babel.

Que o consenso seja a primeira baixa de Avatar, tanto melhor. Há tempos que passar algumas horinhas no escuro não consegue levantar tantos brios e filosofia de botequim. "Não é o lucro nem a crítica que definem a qualidade de um filme, senão o impacto dele na vida real", declara o site de cinema MovieViral. Talvez seja esse o real sucesso de Avatar. Como diria seu criador, é o simulacro, estúpido!"

*Correspondente da revista Newsweek no Brasil

http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,um-frenesi-chamado-avatar,507604,0.htm

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