quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Estudantes acusados de racismo são condenados

Publicada em 1/12/2010

Cidade
Estudantes acusados de racismo são condenados
Decisão aponta três meses de detenção e um ano de reclusão; advogado irá recorrer

Os três estudantes de medicina que foram acusados de bater com um tapete e chamar um auxiliar de serviços gerais de negro em dezembro do ano passado, em Ribeirão Preto, foram condenados a três meses de detenção por lesão corporal leve e um ano de reclusão, substituído por prestação de serviço comunitário, pelo crime de injúria grave.

A decisão é da juíza Ilona Márcia Bittencourt Cruz Faggioni, da 5ª Vara Criminal, que não classificou a injúria por racismo por entender que a vítima, Geraldo Garcia, 55, teve a sua honra ofendida de forma subjetiva.

A agressão aconteceu em dezembro do ano passado e ganhou repercussão nacional depois Abrahão Afiúne Júnior, 19 anos, Emílio Pechulo Ederson, 20, e Felipe Grion Trevisani, 21, foram presos em flagrante pela Polícia Civil. Cada um pagou R$ 5.548 de fiança e depois de 12 horas, tiveram a liberdade provisória decretada.

Um dos advogado dos rapazes, Hélio Rocha, afirmou que irá recorrer das duas decisões. "Irei buscar a absolvição ou a desclassificação do crime de injúria. Não houve injúria grave", afirmou. A vítima não foi encontrada pela reportagem. (Gabriela Yamada)

Lima Barreto: CONTO "O MOLEQUE"



Lima Barreto


Histórias e Sonhos
O MOLEQUE
A Arnaldo Damasceno Vieira
Reclus, na sua Geografia universal tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os nomes tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação ou a aridez da região. No Rio de janeiro, há de fato nomes tupis tão eloqüentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos, quando lhes sabemos a significação, com o poder poético, com a força de emoção superior de que eram capazes os primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara - seio do mar? E se o mar abriu aqui um seio foi para nele esconder as suas águas - Niterói - água escondida.
Esses nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que ela possui das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais antigo do globo, nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que habitavam estes lugares; e são assim bem recentes, relativamente.
Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la como cousa demoníaca ou indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.
Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos anos.
O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais.
Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.
Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho capricho...
Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes antecederam.
Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.
Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto.
Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de Janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis.
Inhaúma é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforços dos nossos edis para apagá-lo.
E um subúrbio de gente pobre, e o bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por que, ora são muito estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casitas sem que nelas se depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais viçosa. Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde. É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria.
Os médiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso - o que era preciso estudar mais devagar - é o amálgama de tantas crenças desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de semelhantes misturas as maiores religiões históricas.
Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada instante de suas necessidades.
A gravidade de pensamento que todo esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem fazem perguntar se a terra que não tem querido guardar na sua grandeza traços das vidas e das almas que por elas têm passado, ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas, impressões das atuais que, nela, hoje sofrem e mergulham, a seu modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta, que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a serra dos Órgãos, solene, soberba...
Numa das ruas desse humilde arrebalde, antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam, tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.
O "barracão" é uma espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes "a sopapos". É menos e é mais. É menos, porque em geral é menor, com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais aparentada com o nosso "rancho" roceiro, possui as paredes como este: são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com dous aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.
Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura, a não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes; e, às vezes também, uma touceira de bananeira.
A guaxima cresce, e o capim, e a vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.
O barracão de dona Felismina era de um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dous. Eram ambos da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhor Romualdo, servente ou cousa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e honesta como ela. Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca, com dous filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.
A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade:
- Coitada! Uma desgraçada! Uma perdida!
Era bem nova ela, mas fanada pelo sofrimento e pela miséria. Com os seus vinte e poucos anos de idade, de boas feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a triste história de todas essas raparigas por ai...
Mal comendo, ela e os filhos; mal tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um pouco de café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão - que lhe teria custado, quem sabe! que profunda provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo - não se esquecia nunca de colher pelo caminho uns "boas-noites", umas flores de melão-de-são-caetano, de pinhão, de quaresma, de manacás, de maricás - o que encontrasse - para enfeitar-se ou trazê-las nas mãos, em ramilhete.
Todos da rua dos Maricás - era este o nome daquele trilho de Inhaúma - conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias á ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da venda, com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é que dizia, se lhe perguntavam quem era:
- Uma vagabunda.
Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da Central, morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na humilde crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era "rica". Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos, casa que era dela. Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma cousa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua. Tinha "homem" em quanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca - uma menina. Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era conhecida por "Baianinha". E, ao ir ás compras na venda, o caixeiro lhe dizia por brincadeira:
- "Baianinha", tua mãe é negra.
A pequena arrufava-se e respondia com indignação:
- Negra é tu, "seu" burro!
A Baiana, porém, era "rica", estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e procurados, e os seus emédios eram aceitos como se partissem da prescrição de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas, inclinava-se para o espiritismo, freqüentando as sessões do "seu" Frederico, um antigo colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur, eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.
Certa vez salvou um dos filhos da Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a prometer que se emendaria.
Dona Felismina morava com o seu filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e também com as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.
Tinha todos os traços de sua raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.
Era-lhe este seu filho o seu braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez anos de idade. Doce, resignado, e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as trouxas; sem o mais pequeno desvio de caminho. Se ia á casa do "seu" Carvalho, ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada, a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:
- Zeca, vai à venda e traz dous tostões de sabão "regador".
Na venda, entre todo aquele pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitués do parati, como os há na cidade de chope; conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento - entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:
- Caixeiro, "mi" serve já. Dous tostões de sabão "regador"!
Se o caixeiro estava atendendo à dona Aninha, mulher do ser- vente dos telégrafos, Fortes, e não vinha atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:
- "Mi despache", caixeiro! Dous tostões de sabão "regador".
"Seu" Eduardo, o caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão às compras, fazia docemente:
- Espere, menino. Você não vê que estou servindo, aqui, a dona Aninha!
A mãe tinha vontade de pó-lo no colégio; ela sentia a necessidade disso todas as vezes que era obrigada a somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a "seu" Frederico, aquele "branco" que fora colega de seu marido. Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe as compras?
À tarde, Zeca descansava, brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.
Se bem fosse com a mãe todos os meses receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos Guarda-Freios, o seu sonho não era viver no centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis, carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe instantemente as "fitas" que os grandes cartazes anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las. Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de grandes figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema brilhante de luzes e apinhado de povo. Nem o apito dos trens o distraía e só a passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um pouco, por lhe tirar a vista do divertimento. Não tinha inveja dos que entravam; o que ele queria era entrar também.
Como havia de ser uma "fita'? As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é que tudo aquilo falava?
Podia ter dinheiro para ir, pois, em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro; mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam. Distraí-los com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o Carlos que furtava os do próprio pai...
Zeca, por seu procedimento, pela sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa.
Muitos se interessavam com a mãe, para pó-lo em um recolhi- mento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos seus serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único auxílio, o seu único "homem".
Uma vez quase cedeu. O seu" Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas, viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de "pinhão", e expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:
- Não posso, "seu" coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem que é preciso aprender, saber, mas...
- Você vai lá para casa, Felismina; e não precisa estar se matando.
Titubeou a rapariga e o velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão - uma espécie de protesto de posse contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham mais enchido de bondade o seu coração natural- mente bom, nunca deixou de interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das filhas, dava-lhe sempre qualquer cousa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe pelas suas necessidades.
Certo dia, em começo do ano, o pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada. Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio, não havia nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósolo - o coronel interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.
- Foi tua mãe?
- Não, "seu" coronel.
- Que foi, então, Zeca?
O pequeno não quis dizer e não cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.
A atitude do pequeno, a sua recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa curiosidade, procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre, tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.
- Dize, Zeca. Dize que eu te darei uma vestimenta de "diabinho" no Carnaval que está aí.
O pretinho levantou a cabeça e olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.
Confessou; e Castro nada disse a ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.
Aproximou-se o Carnaval; e, quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a roupa branca que estivera a secar.
Atarefada com esse serviço, ela não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde saíam recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara de "diabo".
Dona Felismina veio para o interior do barracão; e pós-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca, distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de pinho estendeu uma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.
A mãe, ao barulho dos guizos, virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:
- Zeca, que é isso?
Uma visão dolorosa lhe chegou aos olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos... Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:
- Que é isso, Zeca? Onde você arranjou isso?
- Não... mamãe... não...
- Você roubou, meu filho?... Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você arranjou isso, Zeca?
A pobre mulher quase chorava e o pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava, titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:
- Mas... mamãe... não foi assim...
- Como foi? Diz!
- Foi "seu" Castro quem me deu. Eu não pedi...
Dona Felismina sossegou e o pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:
- Mas para que você quer isso? Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é para gente rica, que pode. Enfim...
- Mas, mamãe, eu aceitei, porque precisava.
- Disto! Ninguém precisa disto! Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!
- Eu precisava, sim senhora.
- Como, você precisava?
- Não lhe contei que há meses, diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! - ó moleque! - o negro! - ó gibi!? Não lhe contei?
- Contou-me; e daí?
- Por isso quando o coronel me prometeu a fantasia, eu aceitei.
- Que tem uma cousa com a outra?
- Queria amanhã passar por lã e meter medo aos meninos que me vaiaram.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tribunal não reconhece vínculo empregatício de pastora evangélica.

Tribunal não reconhece vínculo empregatício de pastora evangélica.

  
A reclamante foi pastora de uma igreja pentecostal. Admitida em 14 de março de 2006, foi dispensada três anos e um mês depois, exatamente em 14 de abril de 2009. A dispensa foi sem justa causa.

A pastora afirmou, segundo consta do processo, na 1ª Vara do Trabalho de Araraquara, que “não teve o seu contrato de trabalho reconhecido; sofreu dano moral; não recebeu, corretamente, as férias, os trezentos salários e as verbas rescisórias”, apesar de ter dito, em depoimento “que o serviço prestado na reclamada era com intuito de fé”.

A reclamada alegou que “inexistiu o alegado vínculo empregatício”, mas confirmou que a pastora recebia contribuição pecuniária de 30%, como todos os demais responsáveis de igreja recebem, para ajuda de custeio.

Nem a pastora nem a reclamada quiseram se valer de testemunhas, e o juízo de primeira instância julgou totalmente improcedente o pedido da pastora, com base no entendimento de que “o trabalho religioso, cujo vínculo se centra na fé não caracteriza o vínculo empregatício”. A decisão de primeira instância ainda lembrou que “a fé não é, ou não deveria ser, objeto de comercialização ou de interesse econômico”.

Inconformada, a pastora recorreu “insistindo na necessidade de reforma do julgado de origem especialmente quanto ao indeferimento do vínculo empregatício, além das demais diferenças salariais, rescisórias e indenização por danos morais”. Ela também citou entendimentos jurisprudenciais, assim como destacou, entre tais argumentos, “a ocorrência de nulidade por cerceamento de defesa”.

O relator do acórdão da 9ª Câmara do TRT da 15ª, desembargador Gerson Lacerda Pistori, em consonância com o juízo a quo, afirmou que “em linha com a hipótese excepcional prevista na Lei Previdenciária, que admite o recolhimento como autônomo para Pastores e Padres das religiões sem fins lucrativos, não se deve reconhecer o vínculo empregatício entre quem exerce o sacerdócio e a respectiva entidade religiosa. E a principal justificativa está no fato de que o sacerdócio deve ser entendido como uma vocação, mas nunca como uma profissão”.

Quanto à nulidade alegada pela pastora, o acórdão ressaltou que “nada deve ser acolhido a título de nulidade no julgamento em função de desrespeito à garantia da ampla defesa prevista no inciso LV do artigo 5º da Carta Magna”.

Primeiro, porque “nenhuma das partes litigantes pretendia produzir prova testemunhal”, e também porque “ambas concordaram com o encerramento da instrução, de modo que sobrou para o Juízo apreciar os fatos somente com base na documentação até então juntada. Ou seja, totalmente impróprio, agora, querer a reclamante que a sentença seja declarada nula”.

O relator lembrou também que “o inconformismo da recorrente baseia-se no indeferimento de seu vínculo de emprego postulado na função de Pastora Evangélica com a Igreja reclamada” e que, “para tanto, defendeu não ter havido a correta valoração das provas que, ainda no seu entender, demonstraram a existência de todos aqueles requisitos contidos nos artigos 2º e 3º, ambos da CLT”.

Porém, o acórdão, no mesmo sentido dos termos da decisão de origem, “posto estarem alinhados com o atual e majoritário entendimento no sentido de que o sacerdócio deve ser entendido como uma vocação, mas nunca como uma profissão”, dispôs que “o exercício da função pastoral numa Igreja não pode ser visto como uma relação meramente comercial, de merchandising, muito menos de promoção de vendas de coisas espirituais.

A atuação pastoral deve ser vista e entendida como uma opção de vida, de conceitos, de norteamentos que fazem parte de quem se dirige para o caminho do Ministério das coisas que crê serem divinas”.

A decisão colegiada esclareceu ainda que “a atuação de quem, por vocação, prega o Evangelho, há de ser entendida dentro da cultura humana para o Sagrado, com cunho puramente comunitário e que foge à mera questão material”.

Considerou também que “os valores recebidos pela reclamante não podem nem devem ser considerados ‘contraprestação retributiva’, tal como especificado na CLT. Tais quantias recebidas da Igreja reclamada devem ser consideradas como mero auxílio para manutenção de seu sustento e de sua família, já que havia uma dedicação ao exercício do sacerdócio e da profissão de fé”.

( RO 035100-44.2009.5.15.0006 )


Fonte: Tribunal Regional do Trabalho 15ª Região Campinas, por Ademar Lopes Junior, 30.11.2010

Justiça obriga Tetra Pak a pagar multa de R$ 170 mil e cumprir cota para deficientes.

Justiça obriga Tetra Pak a pagar multa de R$ 170 mil e cumprir cota para deficientes.

  A Justiça do Trabalho de Capivari obrigou a Tetra Pak, empresa líder mundial na produção de embalagens para alimentos, ao pagamento de multa no valor de R$ 170 mil e à contratação de 46 trabalhadores com deficiência ou reabilitados.

A decisão é fruto do descumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado entre a empresa e o Ministério Público do Trabalho (MPT) em outubro de 2007.

No TAC, a empresa se comprometeu perante a procuradora Ana Lúcia Ribas Saccani Casarotto, em Campinas (SP), a contratar, em todas as suas unidades, o equivalente a 5% do quadro em pessoas com deficiência (PCD) ou reabilitados, segundo lei de cotas.

O MPT deu prazo até maio de 2008 para o cumprimento do percentual estabelecido no acordo, com o objetivo de encerrar a discriminação na empresa.

No entanto, após o vencimento do prazo, a Tetra Pak manteve a irregularidade, uma vez que ela deve realizar a contagem da cota com base no número de empregados da totalidade dos seus estabelecimentos espalhados pelo território nacional, segundo percentual previsto na lei 8213/91.

“Verificamos que a empresa, erroneamente, considerou para o cálculo da cota os trabalhadores que possuem perda auditiva leve. Segundo laudo pericial, ao menos cinco empregados não se enquadram nos termos da lei”, afirma a procuradora.

De um total de 1.463 funcionários espalhados em oito estabelecimentos pelo país, a empresa deve destinar 74 vagas para PCDs. Deste total, apenas 28 estavam empregados pela Tetra Pak.

Para estabelecer as contratações faltantes e cobrar a multa pelo descumprimento do acordo, a procuradora ingressou com ação de execução da Vara do Trabalho (VT) de Capivari, pleiteando o pagamento da penalidade no valor de R$ 170 mil, após o cálculo do número de trabalhadores lesados - reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) - , e a contratação dos 46 trabalhadores com deficiência, em abril deste ano.

Diante da demora da Justiça em executar a multa, a procuradora entrou com uma reclamação correicional na Corregedoria do Tribunal Regional do Trabalho em Campinas, a qual determinou que a VT de Capivari realizasse a execução da multa, juntamente com as obrigações previstas no TAC.


Fonte: Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região Campinas, 30.11.2010

RIO CONTRA O CRIME - Reality show em tempo real



RIO CONTRA O CRIME
Reality show em tempo real
Por Muniz Sodré em 30/11/2010
"A fascinante violência no Rio de Janeiro foi de novo um sucesso."
A frase final de um artigo do editor de Destak (sexta-feira, 26/11), jornal carioca de distribuição gratuita nos sinais de trânsito, vale como sintoma do que foi a cobertura jornalística (imprensa escrita e televisão) do terrorismo delinquente nas ruas do Rio e da consequente reação das forças policiais. Em termos de modelagem ideológico-editorial, não há diferença entre a pequena e a grande imprensa.
Como preliminar, é preciso deixar claro que a operação policial, com o apoio logístico da Marinha e reforço posterior do Exército e da Polícia Federal, foi recebida com aplausos pela população, inclusive a maior parte dos moradores do complexo de favelas invadido, todos já psicologicamente saturados dos efeitos desgastantes do domínio dos bandos ilegalistas sobre os cidadãos de todas as classes sociais. Na sociedade e na web: uma ligeira vista de olhos pelas redes sociais permite localizar endereços de Facebook com caveiras (emblema do Bope) estampadas.
Por outro lado, se nas ruas do "asfalto" o medo ronda pedestres e motoristas, nos morros, ou "comunidades periféricas", registra-se o imenso alívio de moradores que, além do cerceamento do direito constitucional de ir e vir, eram ultimamente obrigados a servir comida a marginais desfalcados da renda costumeira do tráfico de drogas, em virtude da ação das "unidades pacificadoras".
Jornalismo "técnico"Mas não há nada de "fascinante" nisso tudo, nem mesmo a ser "celebrado", como frisou o secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame. A hora é de preocupação ou de pausa para a reflexão, bem ao contrário da espetacularização encenada pela mídia. Na verdade, é mesmo ocasião para alguma tristeza em face do número elevado de mortos e da convicção de que a situação a que agora se chegou é o resultado de desgovernos anteriores e da crescente mafialização da vida pública. Este fenômeno abrange a composição de partes significativas de câmaras legislativas, a corrupção policial, a fragilidade do Poder Judiciário, a disseminação das milícias (potencialmente mais perigosas do que o narcotráfico) e a escandalosa indiferença da própria sociedade ao consumo de drogas.
A mídia é aqui também objeto de preocupação.
É verdade que foi provavelmente uma imagem veiculada pela TV Globo (dezenas de bandidos armados e reunidos na Vila Cruzeiro, o bunker das ações terroristas nas ruas) a deflagradora da invasão e ocupação do local por tropas de elite da polícia, escudadas por veículos blindados da Marinha. Imagens de TV – mas também o risco de arranhão na imagem internacional da cidade que abrigará a Copa e as Olimpíadas – são claramente motivadoras da ação. Afinal, o poder constituído sabia desde muito tempo atrás do incremento exponencial de sua contrapartida nas favelas, o poder do ilegalismo.
Mas a cobertura jornalística dos acontecimentos, a televisiva principalmente, revelou o anacronismo cívico de um jornalismo puramente "técnico", movido pelo espetáculo do fato e praticado nos moldes de uma presumida filmagem, ao vivo, da realidade. "Globocop", nome do helicóptero da TV Globo, é a máquina equipada com quatro tripulantes e uma câmera capaz de girar em 360 graus e de captar imagens com precisão a um quilômetro de distância.
"Como Copa do Mundo"Evocativa de Robocop, conhecido personagem cinematográfico, a máquina televisiva associou-se à metáfora da "máquina de guerra", usada pela mídia para caracterizar as ações policiais. Com ela, a cobertura converteu-se numa espécie de "Tropa de Elite 3", produzindo efeitos de identificação projetiva, segundo os quais estariam entrando em ação aqueles que o colunista Merval Pereira designou como "centenas de capitães Nascimento encarnados em cada um dos soldados do Bope" (O Globo, 26/11/2010).
Como num filme ou numa telenovela, constrói-se uma polaridade (os bons contra os maus), da qual se alimenta a narrativa midiática. O texto de Destak é explícito: "Éramos nós atirando, acenando com bandeiras brancas sobre lajes e nos escondendo dos tiros dentro de casa, contra eles, que fugiam ou nos afrontavam. (...) A cidade se uniu diante da TV, tentando torcer por si". Essa polaridade ("nós" contra "eles") é tão falsa quanto a polaridade entre polícia e bandido, já que, na corrupção cotidiana, não raro um termo equivale ao outro.
Mas a lógica do espetáculo demanda uma oposição folhetinesca. Assim, as palavras em itálico (cena, torcida) são índices semióticos da espetacularização, confirmada na coluna de Merval Pereira: a cobertura seria de fato "um reality show em tempo real". Seria algo como um game, encenação televisiva de um "show da vida" ou uma partida de futebol, capaz de converter o cidadão em torcedor: "Uma sensação parecida com ver um jogo de Copa do Mundo. Em vez de um time representando o país, eram policiais. Em vez de gol, a vibração surgiu no momento em que dois traficantes em fuga a pé foram alvejados" (Destak).
Razões da impunidadeHá algo de socialmente obsceno nesse transbordamento do espetáculo. É moralmente inadmissível essa assimilação de uma tragédia urbana, com mortes e sofrimento, a um show de TV. Nem faz justiça ao comportamento da polícia: o Bope sentiu-se prejudicado, em plena ação, pela cobertura televisiva; o secretário de Segurança enfatizou que "não há nada a celebrar". O comedimento da polícia é uma crítica implícita à falta de consciência crítica dos jornalistas.
Como poderia manifestar-se essa consciência?
Antes de tudo, no questionamento desse modelo de jornalismo, que confunde a informação responsável do fato com a exposição obscena (em seu sentido radical, esta palavra de origem latina significa postar-se diante da cena – ob-scenum – sem as devidas mediações culturais) dos acontecimentos. Simplesmente mostrar não é informar. Pode ser, no limite, um modo de excitar a pulsão escopofílica do espectador.
Informar criticamente – o que se revela socialmente imprescindível no caso em pauta – seria comunicar os acontecimentos dentro do quadro explicativo de suas causas, aliás bastante evidentes para qualquer observador atento. Pode-se começar com os constituintes de 1988, que legislaram em matéria penal com a ditadura e o preso político em mente e, ao fundo, a doutrina liberal-individualista do direito pós-Revolução Francesa. Resultou daí uma legislação tíbia frente ao delinquente comum, com a impunidade no horizonte. Mata-se por dá cá essa palha.
Comedimento e responsabilidadeEm seguida, seria preciso colocar em pauta a corrupção avassaladora de governos, políticos, policiais etc. Não deixar também de indagar sobre a responsabilidade da sociedade civil (se é que esse conceito se aplica ao Brasil) no tocante às drogas e à mafialização generalizada, que vem pondo em segundo plano o problema do tráfico de drogas. Finalmente, tentar jogar alguma luz sobre as perspectivas de emprego para quem se dispõe a abandonar o crime.
Certo, o jornalista poderá responder a tudo isso com a alegação de que o imediato de sua condição profissional lança-o sob pressão sobre a superfície do fato, para dar conta a seu público das ocorrências em bruto. A notícia seria, assim, a pura e simples mercadoria de sua prática industrial. É o que se aprende, é o que se faz – e o que dá certo em termos de audiência e mercado publicitário.
Esse é, de fato, o modelo consagrado pelo jornalismo tal como o conhecemos e talvez não possa ser mudado sem mais nem menos. Mas é certamente um modelo sem amanhã cívico; portanto, algo a ser debatido e repensado.
Nesse meio tempo, seria oportuno um pouco mais de comedimento e responsabilidade social. A morte violenta do outro não pode converter-se em fantástico show da vida.

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=618JDB001