quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Um frenesi chamado Avatar O filme de James Cameron mal começou a ser desconstruído e já provoca uma primeira baixa: o consenso

domingo, 7 de fevereiro de 2010, 07:19 | Versão Impressa

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Um frenesi chamado Avatar
O filme de James Cameron mal começou a ser desconstruído e já provoca uma primeira baixa: o consenso

Mac Margolis* - O Estado de S.Paulo


Li recentemente que trombadinhas do Rio de Janeiro estão se escondendo nas árvores em volta da Lagoa Rodrigo de Freitas, esperando a hora de dar o bote em pedestres como se fossem guerreiros voadores de Avatar. Duvido que os meliantes do Rio tenham se inspirado no Cineplex, onde o ingresso para a sessão 3D do blockbuster da hora chega a R$ 25. Mas não me surpreenderia se alguém acusasse James Cameron de plagiar os cariocas.

Ninguém discute que o badalado diretor americano tenha criado um genuíno frenesi global com seu épico, que acaba de colher nove indicações ao Oscar (inclusive de melhor filme e melhor direção) e teria demolido todos os recordes da história do cinema. Até o início deste mês a bilheteria de Avatar já ultrapassara a barreira de US$ 2 bilhões, faturando em 45 dias o que a economia de, digamos, Cabo Verde produziu durante todo o ano passado (existem controvérsias sobre o recordista, pois há quem garanta que o campeão de todos os tempos é ...E o Vento Levou, de 1937, cuja bilheteria, corrigida pela inflação, beira os US$ 1,5 bilhão apenas nos Estados Unidos, para US$ 602 milhões de Avatar nesse mercado). Mas, segundo a patrulha, é tudo pilhagem. Cameron e sua máquina de Hollywood teriam afanado enredos, personagens e até a ideia-mãe de Avatar de obras as mais diversas. Entre os surrupiados, um romance de ficção científica de 1957 (Call me Joe), uma revista em quadrinhos da década de 80 (Timespirits) e o filme Pocahontas, da Disney. Mas as maiores vítimas da cleptofilmografia são os irmãos russos Strugatsky, autores de Noon Universe, um seriado de ficção científica dos anos 90 ambientado num universo chamado Pandora, que, como o Pandora de Avatar, é coberto por florestas tropicais e habitado pelos humanoides Naves, suspeitamente parecidos com os superdotados Na"Vis de Cameron.

Até aí, nenhuma surpresa. Em tempos de ciberdemocracia, você é o que você cata pelo Google e que se dane o direito autoral. Porém, o mais marcante de Avatar não é quanto dos seus 163 minutos se deve à criatividade alheia, senão o que ele conseguiu provocar quando as luzes do cinema acendem. Por que tanto barulho sobre uma fantasia em celuloide e qual a explicação para essa fita ter mexido tanto e com todos?

Pela inveja, sem dúvida. O enredo de Avatar pode ser dos mais simplórios, mas, de frente para o telão, com óculos 3D e imersão em Dolby Surround Sound, toda sensação se multiplica. Se a marca do cinema é sua capacidade de transportar o espectador para outra realidade, Avatar é uma nave espacial. "É o filme mais lindo que vi em muitos anos", suspirou o veterano crítico David Denby, de The New Yorker.

Pode ser o mais polêmico, também. Estudiosos de antropologia, cientistas políticos e os polemistas de plantão travam debates acalorados na imprensa e na web sobre o conteúdo político do filme e sua "mensagem". A extrema direita dos Estados Unidos detestou-o pelo seu suposto ranço antiamericano. Por essa versão, o ataque do sinistro Povo dos Céus a Pandora seria uma mal dissimulada invasão norte-americana ao Iraque. Pela mesma razão, o filme mereceu aplausos dos ambientalistas, ONGs e dos bolivarianos da vizinhança. Ainda outros reconhecem a força "imperialista" de Cameron como uma alegoria da Blackwater, a empresa de soldados de aluguel que ganhou manchetes e processos pela barbárie no Iraque. Evo Morales não é exatamente cinéfilo, mas após assistir a Avatar - dizem que foi apenas a terceira vez que entrara num cinema na vida - o presidente cocalero boliviano elogiou-o como "o modelo perfeito da luta contra o capitalismo e pela proteção à natureza". Logo mais, quem sabe, teremos teses, seminários e teorias para desconstruir cada tomada do efeito Avatar.

Os chineses são mais pragmáticos. Não chegaram a mudar o nome da paisagem nacional, como inicialmente foi noticiado. Mas bem que aproveitaram a onda do cinema imperialista para turbinar o turismo, tacando um apelido chamativo numa das suas montanhas mais vistosas. Assim a bela Coluna do Céu Austral também passou a ser chamada Montanha da Aleluia, em homenagem ao penhasco flutuante de Avatar. "É o orgulho da Zhangjiajie", disse Ding Yunyong, secretário de turismo da cidade , à agência Xinua.

Preocupados, talvez, com o sucesso do filme ocidental, a maior bilheteria da história da China (mais de US$ 127 milhões, segundo o website Box Office Mojo), os dirigentes culturais decidiram retirar das salas todas as versões em duas dimensões de Avatar e abrir espaço para um novo documentário nacional sobre Confúcio. A fita nacional, diferentemente do rival de Hollywood, é um hino à hierarquia que agradou à cúpula comunista e afugentou o público. Já que na China globalizada quem não tem cachorro caça telespectador com gato, as autoridades culturais se apressaram em trazer de volta ao grande público a versão light de Avatar.

Na guerra das versões sobre Avatar, ninguém ouve ninguém. Seria um alerta perspicaz sobre o perigo da ruína ecológica, ainda mais pertinente depois do fracasso da cúpula de Copenhague? Ou é apenas mais uma fábula do bom selvagem, com purpurina digital? (Se bem que Robinson Crusoe, de pele azul montando dragões alados, enobrece até o mais batido dos clichês.) As feministas se dividem. Algumas elogiam as mulheres de Avatar como as personagens mais fortes do filme, enquanto outras criticam a quase nudez das guerreiras, truque confessado pelo diretor para fisgar o público masculino (humanoide-objeto, nunca mais!). Kim Masters, comentarista da televisão pública americana, engrossou o caldo: "Cameron faz filmes para as mulheres disfarçados de filmes para homens." Avatar é racista? Os defensores de minorias afirmam que sim, já que o salvador da pátria da história é um gringo branco. Esquecem-se de que o protagonista Jake Sully também é paraplégico e vítima da guerra, outra categoria atualíssima de "exclusão social". O universo do filme é Pandora, mas aqui de fora o mundo mais parece Babel.

Que o consenso seja a primeira baixa de Avatar, tanto melhor. Há tempos que passar algumas horinhas no escuro não consegue levantar tantos brios e filosofia de botequim. "Não é o lucro nem a crítica que definem a qualidade de um filme, senão o impacto dele na vida real", declara o site de cinema MovieViral. Talvez seja esse o real sucesso de Avatar. Como diria seu criador, é o simulacro, estúpido!"

*Correspondente da revista Newsweek no Brasil

http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,um-frenesi-chamado-avatar,507604,0.htm

França desiste de legislar sobre estatísticas étnicas

França desiste de legislar sobre estatísticas étnicas
Polémica
2010-02-07
O comité de especialistas que há dez meses deliberava sobre a hipótese de uma nova lei para elaborar estatísticas étnicas em França tornou finalmente pública a sua decisão: não é necessária mais legislação, a França já está dotada de ferramentas susceptíveis de causar racismo na sociedade.

Tudo começou há dois anos, quando o presidente Sarkosy pediu ao Comissário da Diversidade, Yazid Sabeg, para determinar quais as ferramentas estatísticas necessárias para radiografar a sociedade. E Sabeg prometeu um projecto de lei. O assunto cresceu quando o partido de direita União por um Movimento Popular (UMP) lançou o debate sobre a identidade nacional, abrindo uma polémica que dividiu a sociedade.

Essencialmente, o comité de especialistas entende que a França não pode ignorar uma das suas regras de ouro: nunca permitir estatísticas ou inquéritos em que os dados relevantes fossem a cor da pele, a origem ou outro sinal possível de discriminação. Os defensores da estatística argumentam que seria útil para corrigir a sociedade; os críticos viam na medida uma solução puramente racista.

O embaixador português em Paris, Seixas da Costa, considerou entretanto que o assunto não tem impacto na comunidade portuguesa ali residente. "As razões desta discussão estão muito longe do modelo de integração que foi seguido pelos portugueses que permaneceram em França e que, muito consensualmente, representa aqui um indiscutível sucesso", disse o diplomata à Lusa.


http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=1488603

Justiça dá liminar a estudantes acusados de racismo

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010, 16:19 | Online

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Justiça dá liminar a estudantes acusados de racismo

BRÁS HENRIQUE - Agencia Estado


RIBEIRÃO PRETO - A Justiça de Ribeirão Preto concedeu liminar, na sexta-feira, para que os três estudantes, acusados de racismo contra um trabalhador, em dezembro passado, retornem às aulas e concluam o curso. Os jovens foram expulsos pelo Centro Universitário Barão de Mauá, no dia 1º deste mês, após sindicância feita por uma Comissão Administrativa de Inquérito, formada por professores e funcionários da instituição.



Hoje, a direção da universidade, por meio de nota à imprensa, disse que respeitará e cumprirá a decisão judicial, mas que também irá recorrer ao Judiciário para que sua decisão seja aplicada.



"A Justiça entendeu que a aplicação da pena de expulsão é desproporcional à atitude dos alunos e deferiu o pedido de liminar", informa a nota, divulgada após uma reunião da direção, já que a liminar chegou à instituição na noite de sexta-feira.



"O Centro Universitário Barão de Mauá reitera que a decisão da Faculdade de Medicina se baseia em razões éticas e não de natureza criminal. A formação de um médico extrapola a mera técnica para invadir os preceitos de moral e comportamento ilibado. O que procuramos ensinar e educar aos nossos alunos é agir de acordo com respeito ao humanismo e a ética e vamos continuar a preservar tais valores", encerra a nota da universidade.



A liminar judicial em favor dos estudantes Abraão Afiune Júnior, Emílio Pechulo Ederson e Felipe Giron Trevisani, quem têm entre 19 e 21 anos, ocorreu após recurso impetrado por e seus advogados. Os três alunos são acusados de racismo e agressão.



Na manhã de 12 de dezembro de 2009, os três agrediram o auxiliar de serviços gerais Geraldo Garcia, de 55 anos, com um tapete enrolado, e um deles gritou "negro", numa das principais avenidas da cidade. Eles foram detidos em flagrante pela Polícia Militar e liberados no mesmo dia pelo juiz de plantão Ricardo Braga Monte Serrat, sob pagamento de fiança de R$ 5.580,00 cada.



O juiz baseou-se num caso semelhante, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que não considerou o fato como racismo, mas como injúria por conotação racista. O caso gerou protestos na cidade e até moção de repúdio pela Câmara local.


http://www.estadao.com.br/noticias/geral,justica-da-liminar-a-estudantes-acusados-de-racismo,508145,0.htm

Cid Teixeira: "O certo seria o Dia da Consciência Mulata"

Terça, 9 de fevereiro de 2010, 07h52 Atualizada às 12h21

Cid Teixeira: "O certo seria o Dia da Consciência Mulata"

Claudio Leal/Terra Magazine

Cid Teixeira, 85 anos, o historiador mais popular da Bahia, é o "único mulato baiano" assumido, ao lado de Caetano Veloso: "A mulatice é rejeitada pelo branco e pelo negro"
Claudio Leal e Roberto Albergaria
De Salvador (BA)


Um homem avista o casarão arruinado, no Centro de Salvador, e decide parar o carro, para contemplar os adornos. Ao lado, um mestre de obras. Malemolente, encostado no tapume, ele vê o estranho sondar os desvãos do prédio em caquinhos.

- O que era isso aí?

E o operário responde:

- Não sei. Por que o senhor não pergunta ao professor Cid Teixeira?

Oitenta e cinco anos, a picardia dos séculos nos olhos em losango, o historiador Cid Teixeira ganhou o reconhecimento dos anônimos no programa radiofônico "Pergunte ao José", no qual respondia a dúvidas sobre a história de Salvador e da Bahia. A simplicidade de seus relatos, sem espezinhar o vernáculo, revelava um humanista, um leitor de crônicas históricas e da literatura universal.


Veja também:
» Cid Teixeira: "Ficar viúvo é uma tragédia. A sociedade não deixa"
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O folclorista Câmara Cascudo se definia como "erudito de província". E talvez Cid José Teixeira Cavalcante, nascido em 11 de novembro de 1924, seja também uma ave dessa espécie, pela despretensão da conversa e pela autoridade de intelectual à margem das vaidades acadêmicas. O romancista Jorge Amado o descreveu em "Bahia de Todos os Santos" com essa roupagem de historiador a serviço do povo, da divulgação da história ao homem comum:

"Os programas de Cid Teixeira implicam sempre a análise e a extensão cultural de um problema, um fato, uma figura, um aspecto da vida da Bahia, levam ao ouvinte a erudição e a pesquisa realizada por um intelectual da melhor estirpe para quem a cultura é um bem provindo do povo e que a ele deve ser restituído".

Afastado das salas de aula, das rádios e dos jornais (chegou a ser editor-chefe da Tribuna da Bahia), Cid Teixeira mantém suas leituras e a memória do cotidiano minúsculo, porém essencial para compreender a formação do povo baiano - e, claro, o brasileiro, já que as desordens nacionais nasceram na cidade do poeta Gregório de Mattos.

Em entrevista a Terra Magazine - com a participação especial do antropólogo Roberto Albergaria, doutor pela Universidade de Paris III -, Teixeira aborda a história da negritude na Bahia e avança sobre as privacidades da Província, das técnicas de "branqueamento" aos ardis do matrimônio. Ele folga em definir-se, sem palavrinhas de meio caminho, como um mulato baiano.

- A mulatice é rejeitada pelo branco e pelo negro... Havia aquele negócio de barriga suja, barriga limpa. Quando o menino nascia mulato, se saía dominantemente mulato, a mãe tinha barriga suja. Se o menino nascia dominantemente branco, a mãe tinha a barriga limpa. Tinha essa conversa...

Em vez de segregar, afirma Cid, o melhor seria assumir a mestiçagem sem recalques. Na contramão do discurso de linhagem norte-americana, ele provoca:

- Já pensou o que seria da Bahia se os brancos baianos resolvessem fazer o Dia da Consciência Branca? Já pensou? Teria tumulto na rua. O certo e verdadeiro seria o Dia da Consciência Mulata (risos) Aí estaríamos falando a verdade, mesmo.

Autor de "Bahia em tempo de Província" e "Histórias: Minhas e Alheias", entre outros livros, ele relata, certamente pela primeira vez, o vestibular étnico prestado para entrar na Academia de Letras da Bahia. Em conferências, ele fazia questão de assumir-se um mulato nato, no sentido lato, mulato democrático do litoral - com a licença poética do autodeclarado mestiço Caetano Veloso. Diz o professor:

- Os piores são os mulatos metidos a branco... Quando eu entrei pra Academia de Letras, na história da Academia de Letras de 1917 até hoje quem entrou com menor número de votos fui eu. Eu entrei com um voto só que decidiu o ingresso. Houve uma campanha contra mim patrocinada, não vou dizer o nome aqui, por um cidadão mulatíssimo. Médico baiano mulatíssimo que patrocinou o veto.

Neste depoimento, em sua casa no bairro da Pituba, na capital baiana, ele descreve minúcias do familismo provinciano. Se quer saber, relata como é difícil permanecer viúvo ante inúmeras investidas de conselheiros e pretendentes.

- Ah, ficar viúvo... É uma tragédia. Porque o que existe de gente querendo arranjar noiva, namorada e casamento pra viúvo... Sou viúvo hoje. É um negócio terrível... "Ah, você está sozinho, tem que casar, arrumar alguém..." E esse alguém já está programado pra tomar o lugar da finada.

Prosa gentil, doce e maledicente, como o bom baiano deve ser, Cid Teixeira identifica a vocação regional para o vira-casaquismo, uma arte derivada do chaleirismo, hoje disseminada de Brasília à Cidade da Bahia, com ganhos para todos os lados.

- Não havia revolucionários em 1930. Quando a Revolução ganhou, acabou-se o estoque de pano vermelho nas lojas. Porque todo mundo estava de lenço vermelho nos pescoços, todos viraram revolucionários.

Seguimos o conselho do mestre de obras e perguntamos ao José. Leia a conversa no jardim da casa de Cid Teixeira, o gênio da raça.

Terra Magazine - O senhor é um grande entendedor do mulatismo. Quais eram as astúcias simbólicas que as famílias tradicionais baianas utilizavam para o seu branqueamento? Como as pessoas se faziam crer brancas, antigamente, numa cidade parda, onde o único branco puro, como você dizia, era o cônsul da Suécia?
Cid Teixeira - O único branco puro que eu conheço aqui na Bahia é o cônsul da Suécia. Alguns são, digamos assim, ostensivamente mulatos, outros disfarçadamente mulatos, mas a maioria é composta de pardos. Pardos mais evidentes, pardos menos evidentes. Agora, o negro baiano existiu em grande relevo, em grande importância, em grande repercussão. Qual é o engenheiro branco hoje que equivale a Teodoro Sampaio? Você conhece algum? E ele era um negro. Américo Simas era um negro. Arlindo Fragoso era um negro. Manoel Querino (escritor e fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia) era um negro. Nomes do século 19 que alcançaram relevo, importância social. Vidal da Cunha era médico e negro. Todo mundo procurava Vidal da Cunha para operar. Era um privilégio fazer uma cirurgia com dr. Vidal da Cunha, "o" cirurgião que a cidade possuía. Assim como esses que citei de exemplo, tem uma porção deles. Na construção civil, o mestre de obras era negro, seu Menininho, Oldegário Ludgério dos Santos, que eu conheci demais. Negro, negro, negro. E estava vigente socialmente.

Os brancos moravam na Graça e eram, em geral, decadentes. Donald Pierson (sociólogo americano) inventou a expressão "os brancos da Bahia". "Brancos e pretos na Bahia", de Donald Pierson, continua sendo o livro fundamental para entender isso. Porque ele veio dos Estados Unidos, onde só havia preto e branco. Quando ele viu na Bahia uma porção de mulatos, pardos, serem tidos e havidos, inclusive sinceramente, honestamente, se acreditando brancos, ele se espantou e criou a expressão "branco da Bahia". Um branco específico, que se considera branco mas não é. A Bahia é uma cidade parda, uma cidade de uma gradação - quase eu diria degradação - de pardos variados. Eu que estou aqui falando, tenho guardado comigo o ferro com o qual minha bisavó foi ferrada. Tenho guardado, está em minha mão. Minha bisavó, escrava, foi ferrada a fogo porque era negra. E daí entraram brancos pelo meio, coisas variadas aconteceram, duas famílias, três famílias com o mesmo pai, tudo vai se resolvendo. Eu estou aqui, pardo, mulato baiano, conversando com você.

Mas você é considerado "branco".
Branco da Bahia!

Qual era a ascensão social do negro no final do século 19 e início do 20?
Valia por si. Valia por si. Gosto de usar o exemplo de Teodoro Sampaio (1855-1937) porque tem retrato conhecido e difundido aí pela cidade. Teodoro Sampaio era negro. Filho de pardo com escrava preta. Foi pra São Paulo, o pai mandou pra lá, formou-se em Engenharia. Ruas de São Paulo, o sistema de esgoto da Bahia que ainda hoje está vigorando no Centro da cidade é de autoria dele. O plano original de 1917 é dele. Essas ruas todas, o plano central da Pituba, foi feito por ele em 1917. Era um homem capaz de fazer isso. Se ainda tinha uma doença mais grave, e precisava de um médico mais especializado, convidava Caio Moura, convidava Vidal da Cunha. Eram os dois médicos. E cada bairro tinha o seu. Perceval Vasconcelos, negro, foi médico do Rio Vermelho. Ir à cidade do Salvador já era uma violência (ri) Não tinha avenida oceânica e o bonde 14 matava quando Deus era servido... Então, doutor Perceval, negro, foi o médico do Rio Vermelho inteiro. Doutor Júlio David...

Do bairro da Ribeira.
Da Ribeira e de Itapagipe inteiro. Luiz Anselmo, autor do "Escravidão, o clero e o abolicionismo", negro. Virgílio de Lima, negro. Todos eles estavam aqui com ascensão social e respeitados porque necessários à comunidade tida por branca.

A forma de ascensão era individual ou por apadrinhamento?
Não! Era sempre individual.

Teodoro Sampaio, por exemplo, era filho de quem?
Do vigário de Santo Amaro. Mandou o filho pra São Paulo.

Onde Teodoro se ligou à família Prado.
Se ligou, por mérito, a dona Veridiana Prado, mãe de Eduardo Prado. Dona Veridiana era uma espécie de grande matriarca da comunidade paulista. E adotou-o. Lá em São Paulo ele se firmou. Já chegou à Bahia engenheiro famoso, respeitável. Veio pra cá trabalhar, morava na Ladeira de São Bento. Ele morreu em 1937, era amigo de meu pai. Me lembro vagamente dele. Eu tinha 11 anos. Tenho dele uma memória diluída, mas tenho. Teodoro Fernandes Sampaio.

Essa expressão "branco da Bahia" não é mais antiga, não é também referente aos líderes políticos baianos que iam para o Rio de Janeiro?
Não conheço. Conheci essa expressão forjada por Donald Pierson. Pode ser. Mas, você quer um mulato mais mulato do que J.J. Seabra (ex-governador da Bahia, professor de Direito)? Esse já era quase negro: Severino Vieira. Essa expressão "deixa que eu chuto" vem do tempo de Severino. (risos)

E quais eram as astúcias de branqueamento? Casamento?
Casamento, estruturas familiares detentoras do alto comércio baiano, ser Manoel Joaquim de Carvalho, ser Bernardo Martins Catharino, ser seu fulano de tal Cruz, que não me lembro agora... Esses eram tidos e havidos por brancos. Costa Pinto. E os estrangeiros que vieram pra Bahia. A colônia suíça com Wildberger e outros. A colônia inglesa. Havia um bairro chamado Banco dos Ingleses. Dos ingleses que moravam lá. O cemitério dos ingleses. Esses foram fazendo filhos por aí. Foram criando os brancos da Bahia.

Como era a relação dessas famílias com os empregados?
Não há notícia de (maus tratos)... Ao contrário, até de uma boa convivência.

Os pais de família branca ou brancarrona não resistiam?
Ah, resistiam. Uma moça brancarrona, como você está dizendo, namorar e casar com um mulato escuro, preto, era tido como... Sei lá. Eu digo isso pela minha estrutura familiar. Meu pai casou com minha mãe, não direi contra, mas com restrições, com pequenas referências, mas depois casou e nascemos nós, está tudo bem.

Nas famílias havia fuxico com relação ao cabelo de ondinha...
Cabelo de ondinha...

No fundo, o grande fator de miscigenação era o fato de as mulheres feias, encalhadas, terem nos mulatos uma possibilidade de sair do barricão?
Não, não acho que seja isso. As mulheres feias e as mulheres bonitas sempre existiram. Umas se casaram com brancos, outras se casaram com negros, algumas não se casaram simplesmente. Mas não creio que a beleza em si tenha influído.

Na hora da negociação familiar, entrava o quê? Cor, dinheiro e beleza?
Sim, beleza.

E tinha a formosas sem dote, que negociavam seu dote físico no mercado matrimonial.
Exatamente. Em geral, o noivo, embora negro ou pardo, tinha uma condição econômica melhor do que o sogro.

Se fala muito da contribuição da geração de Jorge Amado, de Caymmi, do jornalista Odorico Tavares, para a assimilação do negro, da cultura negra. Como o senhor entende?
Vou dizer uma coisa aqui que vai chocar muita gente: a Bahia foi um assunto pra Jorge Amado. Nunca o vi baiano no sentido integrante do processo social baiano. A Bahia foi um assunto muito bem tratado por Jorge Amado. Mas foi assunto. Caymmi é outro. Caymmi tocou violão na Bahia, foi pro Rio de Janeiro e lá continuou usando a Bahia como assunto, mas, quando lhe deram uma casa aqui, a primeira coisa que ele fez foi vender a casa.




A gente pode dizer que, desde meados do século 20, essa Bahia que foi romanceada por Jorge Amado, fotografada por Pierre Verger, pintada por Carybé, cantada por Caymmi, editada por Odorico Tavares, que botou o candomblé na revista O Cruzeiro, já era imaginária, era ficção, somente assunto, ou existia como uma realidade?
Existia. Ela era uma realidade. Mas esses nomes que você usou aí utilizaram essa realidade com um comprometimento pessoal muito relativo. Verger nunca acreditou em um orixá na vida dele. E Verger foi Obá, que é o que pode haver de mais hierarquicamente importante no Candomblé. Mas você não pode comparar a crença, a integração de Verger com a de Miguel Santana (Ojé Orepê do Culto aos Egungun). Era um negro baiano integrado no processo do Candomblé, totalmente. Verger era um francês integrado no processo do Candomblé sem, em nenhum momento, assumir o compromisso de crença que você quer dos negros.

Quais eram as características predominantes da Bahia, nos anos 20 e 30? Como ela era representada nacionalmente?
A Bahia não era representada nacionalmente. Era um corpo estranho dentro do processo paulista e carioca.

Não tinha aquela ideia da velha mulata, o lugar onde o Brasil nasceu? Ruy Barbosa...
Não, não, não. Não tinha, não. Ruy Barbosa, bom mulato baiano, morou no Rio, veio à Bahia fazer campanha civilista. A Bahia era um assunto, não era uma integração. Bahia é boa terra, ela lá e eu aqui. Era o grande ditado da época! (risos) A Bahia é boa terra, ela lá e eu aqui!

Há a epígrafe de um livro, o professor Ruy Simões que falava, não sei se de Afrânio Peixoto ou de Afrânio Coutinho. Na época existiam vários breviários, guias da Bahia, e tinha essa epígrafe: "A Bahia é o melhor lugar do mundo para nascer e lembrar-se depois".
Não me lembro de ter lido, mas é verdadeiro.

A elite baiana migrava pro Rio?
Migrava. A elite letrada. Oscar Freire fundou, na Bahia, a medicina legal no Brasil. Foi pra São Paulo, ficou em São Paulo, morreu em São Paulo. A Rua Oscar Freire é refinada, de primeiro plano, o nome veio de um médico baiano que migrou pra São Paulo. O "Nina Rodrigues" de lá é o Instituto Oscar Freire.

A turma de Jorge - e aí entra Verger, Caymmi - não inova na medida em que incorporam as coisas da Bahia, a tradição populista?
Ah, sim! A Bahia foi um grande assunto. Jubiabá não seria mais lembrado se não fosse o romance de Jorge Amado. Os capitães da areia seriam esquecidos. Aquilo tudo era uma verdade sociológica. Na verdade, Jorge Amado foi muito mais um sociólogo do que um romancista.

E o resto da elite que acreditava naquelas coisas francesas, essa gente tinha resistência a esse grupo?
Não, considerava um segundo time. Eu ainda alcancei pessoas do meu conhecimento importando, pagando o "Bon Marché", que era o figurino francês por excelência, à moda do que estava vigente em Paris.

Em casa, Jorge Amado era leitura proibida para as moças?
É, verdade, não podia ler Jorge Amado.

O reconhecimento dessa turma não vem mais do olhar de fora, do Rio, de São Paulo, do que da própria elite baiana?
Exatamente. Ele (Jorge Amado) descobriu a Bahia. A elite baiana passou a perder a cerimônia. Por exemplo, eu morava na Federação quando era garoto, numa roça vizinha à roça de Dona Escolástica - ninguém dizia Mãe Menininha (1894-1986), não. "Mãe" era privativo de quem era filho de santo. Dona Escolástica, como minha mãe a chamava. Em minha casa tinha uma geladeira e na casa de Dona Escolástica não tinha. Quando chegava tempo de Candomblé, de festa lá, a geladeira de nossa casa era usada pra guardar os ingredientes das festas de dona Escolástica. E compareciam à casa dela pessoas que iam jogar búzios, fazer consultas. Pessoas da branquitude baiana, mas que eram altamente reservadas, chegavam meio escondidas, não eram pra ser vistas. Da minha casa se via porque dava pra ver. Minha mãe comentava: "Ó praí, quando acabar diz que é branco baiano. Não tem nada disso, vai lá consultar, vai ver se casa".

O Candomblé era restrito, ainda, aos negros?
Aos que acreditavam. Ninguém ia "ver" o Candomblé. Só ia ao Candomblé quem era filho de santo, quem acreditava no Candomblé. Ver no sentido turístico da expressão, não havia isso. Nem com Dona Menininha, nem com Dona Senhora (1900-1967). Conheci bem Dona Senhora. Nem Joãozinho da Goméia (1914-1971) nem com os candomblés da cidade.

E os grandes jornais?
Falavam mal. Você não encontra nenhuma louvação ao Candomblé. "Os atabaques não deixam a vizinhança dormir e tal..." Os jornais eram maledicentes em relação ao Candomblé. "A cidade cheia de ebós, cheia de feitiços..." Os jornais não aceitavam.

A gente está aqui falando das heranças africanas, mas me lembro que uma vez, no Instituto Histórico, o senhor falou que as heranças portuguesas, no Brasil e na Bahia, estavam sendo desprezadas...
Deixe eu lhe fazer uma pergunta. Vamos inverter agora. Você nunca foi rezado de olhado, não?

Já fui.
E eu também (faz uma reza com as maõs).

Vinha uma senhora com o galho de arruda...
Era o lado B da branquitude religiosa. Era a fronteira entre a ortodoxia religiosa e o Candomblé. Rezar de olhado. Nunca incensaram sua casa aos sábados, não?


http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4253618-EI6581,00.html

Combate à Intolerância Religiosa é tema de entrevista no Portal da Cidadania

Combate à Intolerância Religiosa é tema de entrevista no Portal da Cidadania
fevereiro 3, 2010 por SEDIHC
Categoria: Entrevista
No dia 21 de janeiro foi comemorado o Dia Mundial da Religião. No Brasil, na mesma data, é celebrado o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. Em uma entrevista especial para o Portal da Cidadania, Vondusi-He Pai Neto de Azile abordou o preconceito às religiões de matrizes africanas como uma das chagas sociais mais enraizadas no país.

Confira:

Portal da Cidadania: Quando você pensa em Dia de Combate à Intolerância Religiosa, o que vêm à cabeça?

Vondusi-He Pai Neto de Azile: É importante para se discutir aquilo que é diferente. A maioria das pessoas acha que culto afro é sinônimo de algo ligado a demônios. Nossa tradição celebra divindades africanas, um processo surgido nos quilombos. Foi uma revolução para a época, mas que hoje serve para o fortalecimento e preservação das nossas raízes.

Portal da Cidadania: As pessoas não entendem direito o sentimento e a religiosidade do tambor de mina, que é a sua crença, como foi fazer essa opção?

Vondusi-He Pai Neto de Azile: Não foi uma escolha, nem uma imposição familiar. Em todas as religiões, existe um deus único, mas Deus se manifesta de várias formas. Hoje em dia, percebo que os jovens são resistentes em assumir sua identidade religiosa. Comigo não foi assim.

Portal da Cidadania: Na sua opinião, como nasce a discriminação religiosa?

Vondusi-He Pai Neto de Azile: A idéia da existência do diabo é um dogma oriundo do mito da criação. A fé cristã é um grande entrave porque é imposta até em colégios. Nossa religião busca o contato com os ancestrais, com o sagrado. A sociedade brasileira é pluralista etnicamente, mas a cor da pele ainda é um estigma. Por exemplo, o branco chama de fitoterapia o que a benzedeira faz com ervas para curar doenças. O que existe, essencialmente, é um desrespeito e o maior deles é a expressão “macumbeiro” que remete à rituais satânicos.

Portal da Cidadania: Essa confusão teve repercussão, recentemente, com o caso do menino de São Vicente de Férrer que tinha agulhas pelo corpo…

Vondusi-He Pai Neto de Azile: Esse é um exemplo da ignorância. Fomos à imprensa pois não temos relação alguma com esse caso. Para nós, a criança é divina. É a forma mais pura do ser humano. Nós respeitamos o próximo, a natureza, os mais velhos. Somos a favor da vida.

Portal da Cidadania: Existe uma concepção de que as religiões de matriz africana são condescendentes com a homossexualidade, fato repudiado pelas religiões com base na fé cristã. Há verdade nisso?

Vondusi-He Pai Neto de Azile: Não existe erro em manifestar o amor. Em nosso terreiro todos são bem vindos, principalmente as minorias. Para nós, cada pessoa é um indivíduo especial, independente de suas escolhas ou orientação sexual.

Portal da Cidadania: Falamos muito de diferenças mas, na sua opinião, há algum ponto em comum entre as religiões?

Vondusi-He Pai Neto de Azile: Todo tipo de fé busca dar algum tipo de conforto para a alma humana. Acredito que aí está a solução para as mazelas humanas. Um terreiro, uma missa ou um culto pode servir como terapia ou apoio psicológico. O ponto comum é a conexão, o elo com Deus. Aliás, fazemos muitos rituais ecumênicos com a Igreja Católica. Alguns santos da Igreja personificam nossas divindades. Só mudam os nomes.

*Vondusi-He Pai Neto de Azile é Coordenador de articulação Política do Fórum Estadual de Religiões de Matrizes Africanas, Coordenador Regional do CARMA e Coordenador de religiosidade do CEN-MA.



Vodunsi-hê Neto de Azile (Sakpatasi)
Coordenador Regional da CARMAA - Nordeste
Fórum Estadual de Religiões de Matrizes Africanas do Maranhão -FERMA
0*98 8852 6598