quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Reparações e compilações

Reparações e compilações

Sueli Carneiro
Escrito por Correio Braziliense–coluna Opinião

O jornal O Tempo, de Belo Horizonte, procurou-me, esta semana, interessado no tema das reparações que está pautado internacionalmente em função da Conferência de Racismo, que ocorrerá na África do Sul em agosto de 2001. O tema me traz à lembrança o extraordinário artigo ‘‘Dívida de Sangue'', de Rubens Ricupero, na Folha de S. Paulo, sobre a monstruosidade do tráfico negreiro que trouxe para as Américas em torno de 11,5 milhões de africanos, a grande maioria deles para o Brasil. Nele, Ricupero demonstra, por meio de textos do séculos 18, como o tráfico negreiro se constituiu a mola propulsora do desenvolvimento da Europa Ocidental e da América como ‘‘inexaurível fundo de riqueza e poder'' para essas nações, responsável ‘‘pela elevação do nível de vida de muitos europeus e americanos, ao mesmo tempo em que degradava a vida de numerosos negros escravizados''.

A conclusão de Ricupero em relação ao Brasil, que teve, conforme ele, ‘‘a cota maior na partilha do crime'' do tráfico negreiro, está contida no próprio título do artigo: divida de sangue.




http://www.geledes.org.br/sueli-carneiro/reparacoes-e-compilacoes.html

Já em Joaquim Nabuco, o problema está anunciado. Ele estrutura o seu livro Escravidão em três partes: a primeira ele denomina O Crime; a segunda, A História do Crime; a terceira, que está em branco (em duas das edições que conheço), o que talvez simbolicamente queira indicar a lacuna que está por ser preenchida na sociedade brasileira desde o século 19, chama-se A Reparação do Crime.

O vice-presidente Marco Maciel, no seminário ‘‘Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos'', organizado pelo Ministério da Justiça em 1996, resgata o que ele considera a visão profética e atualidade de Joaquim Nabuco para quem, ‘‘a escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil, uma vez que a abolição não foi seguida de ‘‘medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública''.

E Marco Maciel afirma: ‘‘Repito com Nabuco: ‘(...) não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir a obra da escravidão' e ainda (...) ‘vencer o preconceito que se generalizou e tornar evidente o débito de sucessivas gerações de brasileiros para com a herança da escravidão que se transformou em discriminação é apenas parte do desafio' ''

É essa base histórica que faz com que o tema das reparações seja, para muitos países africanos, para movimentos sociais negros do Brasil, dos EUA e da América Latina, um dos temas prioritários a serem discutido na Conferência Mundial de Racismo. E, em relação a ele, os governos dos países-membros da ONU deverão se posicionar.
O tema das reparações exige o reconhecimento de que povos, nações ou minorias foram submetidos a processos de escravidão, genocídio e espoliação com base em discriminações de raça, cor, religião.

É o reconhecimento de um passado nefasto em prol de um futuro em que certas práticas não possam mais ter lugar que faz com que hoje, trabalhadores, em sua maioria judeus que foram escravizados durante a Segunda Guerra Mundial, sejam objeto de indenizações pelo Estado alemão e empresas que disso se beneficiaram.
Dispomos também no Brasil de uma experiência respeitável nesse campo ao termos sido capazes de reparar, em algum grau, os familiares das vítimas do regime militar. Reparação material e simbólica que, ao expressar a nossa condenação moral às violências praticadas naquele período, reconcilia a nação, em parte, com os melhores valores da tradição democrática.

Em relação aos descendentes de africanos escravizados, os negros brasileiros, o terceiro capítulo do livro de Joaquim Nabuco continua em branco... Para Contardo Caligaris, (...) ‘‘corrigir a desigualdade, que é herdeira direta, ou melhor, continuação da escravatura, no Brasil, não significa corrigir os restos da escravatura. Significa começar finalmente a aboli-la''.

O presidente Fernando Henrique Cardoso, no seminário citado anteriormente, disse: ‘‘Não se pode esmorecer na hipocrisia e dizer que o nosso jeito é esse. Não, o nosso jeito está errado mesmo, há uma repetição de discriminações e há a inaceitabilidade do preconceito. Isso tem que ser desmascarado, tem de ser, realmente, contra-atacado, não só verbalmente, mas também em termos de mecanismos e processos que possam levar a uma transformação, no sentido de uma relação mais democrática entre as raças, entre os grupos sociais e entre as classes''.

Os movimentos sociais negros e outros setores sociais vêm oferecendo ao Estado e à sociedade toda sorte de propostas de políticas compensatórias capazes de realizar o que Ricupero chama de ‘‘purificação da memória'', que poderia conduzir à reconciliação da nação com o seu passado pela reparação do dano praticado.

As frases e falas aqui compiladas, os termos que as apóiam (dívida, débito, crime) e a importância pública de quem as profere permitem supor que já temos no Brasil massa crítica e vontade política suficientes para advogar em favor dotema das reparações na Conferência Mundial de Racismo e, sobretudo, para começar a implementá-las desde já.



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Um velho artigo de Maciel

INIÃO

15/10/2009
Um velho artigo de Maciel
Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br
Em 24 de novembro de 2000, num artigo para o Jornal do Brasil (“A integração racial no Brasil”, p. 9), o então vice-presidente da República, Marco Maciel, alertava: “O Brasil terá de convencer-se de que os negros e seus descendentes deixarão de ser minoria no próximo século, pois já representam maioria em três das cinco regiões brasileiras”.

Maciel aludiu ainda, em seu memorável artigo, a formas ostensivas e disfarçadas de racismo, a uma quimérica e virtual igualdade de oportunidades constitucional, e ensinava que “O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participação política, terá de ser cimentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de emprego e participação na vida pública”.

Maciel fez referência também às cotas no mercado de trabalho, na universidade e na representação política como se fossem então possibilidades concretas de ação governamental, cujos resultados não podia antecipar – “uma incógnita a que de antemão ninguém ousará responder”. As cautelas se justificavam porque, como disse Rubem Ricupero, num simpósio sobre relações Brasil-África na Câmara, em 1986, “o tema é complexo e nos divide como nenhum outro”.

Não sei se o senador Marco Maciel guarda cópia de seu artigo, mas eu o conservo com zelo beneditino. Seu texto poderia, a meu ver, servir de referência para um pronunciamento contundente, no momento em que o Senado se dispuser a apreciar o projeto que cria o Estatuto da Igualdade Racial, embora, como se sabe, o senador pernambucano seja avesso a estardalhaços.

Os leitores do Ìrohìn devem estar pensando, como eu, em reminiscências camonianas, avaliando com amargura o fato de que onde a gente põe nossa esperança, a realidade política nos deixe tão pouca segurança.

Afinal, as preocupações levantadas por Maciel, na conjuntura pré-Durban, são bem distintas daquelas manifestadas por seu partido, o DEM. Esqueça. A novidade é que o DEM, em seus tenebrosos desígnios, seja hoje diligentemente coadjuvado pela bancada negra.

Ao reler o artigo de Maciel, a sensação que se impõe é a de que perdemos uma oportunidade valiosa na virada do século. O discurso de um político conservador de menos de uma década parece hoje séculos à frente dos parlamentares negros do PT, desvinculados de qualquer realidade. Associaram sua causa (se é que tinham uma) à causa dos opressores da população negra.




http://www.irohin.org.br/onl/new.php?sec=news&id=4811

Fim da era dos movimentos sociais brasileiros

Fim da era dos movimentos sociais brasileiros

Em Debate

Fonte: Folha de São Paulo -

por: RUDÁ RICCI -


Os movimentos sociais que antes exigiam inclusão social ingressaram no Estado e foram engolidos pela lógica da burocracia pública

diego-movimentos-sociais

ENTRE MUITAS divergências, há um consenso entre estudiosos dos movimentos sociais: todos são formados a partir de espaços não consolidados das estruturas e organizações sociais. Ocorre que, nos anos 1990, muitos movimentos sociais se institucionalizaram.


Diversos ensaios recentes revelam essa forte institucionalização e segmentação política e social nas experiências associativas, além de avaliar o processo de participação social nas experiências de gestão participativa (como a do orçamento participativo).


Mesmo na América Latina, vários estudos (como o de Christian Adel Mirza, "Movimientos sociales y sistemas políticos en América Latina", publicado pelo Clacso) relacionam nitidamente aquele conceito de movimento social (não institucionalizado) com o Estado e instituições políticas dos países do continente.


Fica a dúvida: a "era dos movimentos sociais" teria terminado no Brasil? A fragmentação social em curso e a ampliação da participação da sociedade civil no interior do aparelho do Estado teriam reformatado o que antes denominávamos "movimentos sociais"? Os movimentos sociais brasileiros são representações ou parte integrante de anéis burocráticos de elaboração de políticas públicas?


Segundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros adotam alguma modalidade de participação da sociedade civil na determinação de prioridades orçamentárias na área social.


Motivados ou premidos pelas exigências constitucionais, pelos convênios com órgãos federais (dados importantes fornecidos pelo IBGE revelam que governadores e ministérios lideram a criação de conselhos de gestão pública paritários, muito acima das ações de prefeitos brasileiros) e Ministério Público, prefeitos de todo o país institucionalizam (e, muitas vezes, traduzem ou interpretam a partir de seu ideário peculiar) vários mecanismos de gestão participativa na deliberação de políticas locais.


Se localidades rurais, conselhos de desenvolvimento rural sustentável, de meio ambiente ou de bacias hidrográficas pululam. Se localidades urbanas, conselhos de saúde, assistência social e direitos da criança e do adolescente proliferam. Onde estariam os movimentos sociais que antes exigiam inclusão social e fim da marginalização política?


Estão todos nesses conselhos e nas novas estruturas de gestão pública.


Ao ingressarem no mundo e na lógica do Estado, poderiam construir uma nova institucionalidade pública.


Porém, foram engolidos pela lógica da burocracia pública.


A multiplicação das conferências de direitos não foram incorporadas às peças orçamentárias na maioria dos entes federativos. Não alteramos a lógica de funcionamento e de execução orçamentária efetivamente.


O aumento da participação da sociedade civil na gestão pública também não ensejou mudança na estrutura burocrática altamente verticalizada e especializada do Estado brasileiro nas três esferas executivas.


Enfim, o ideário anti-institucionalista dos movimentos sociais brasileiros dos anos 80 converteu-se ao ideário do Estado que atacavam. Talvez por inconsistência teórica e programática, pautados pela mera negação ou pelo sentimento de injustiça. Mas, talvez, por excesso de partidarização dos movimentos sociais.


Nos anos 80, não por coincidência, Frei Betto sugeria que sindicatos, partidos e organizações sociais eram ferramentas do que denominava "movimento popular".


Tal concepção fomentou a criação da Anampos, organização nacional que articulava sindicatos de oposição à estrutura oficial do sindicalismo nacional e movimentos sociais.


O mundo sindical achou caminho alternativo ao ideário dos movimentos sociais e se afastou da Anampos.


E os movimentos sociais?


Nos anos 90, eles se atiraram na tarefa de formalizar as estruturas de gestão pública participativa conquistadas na Constituição de 1988. Mas, a partir das estruturas criadas e com a eleição de Lula (o ícone do ideário dos anos 80), suas lideranças subsumiram à lógica do Estado. E não conseguiram mais se livrar dela. Basta analisarmos as pautas das conferências nacionais de direitos.


São, com raríssimas exceções, a agenda definida pelo governo federal.


Compreendo que esse é o cenário montado para o drama que se desenrola nos últimos dias quanto ao futuro do MST. Evidentemente, a organização popular mais poderosa do país, a única que ainda consegue gerar mobilizações sociais de massa, está se isolando politicamente.


Isola-se a partir do governo que ajudou a desenhar, mesmo que apenas no seu esboço mais geral. E se isola porque seus aliados de antes estão imersos nos escaninhos do Estado.


RUDÁ RICCI, 47, sociólogo, doutor em ciências sociais, é membro do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa.


http://www.geledes.org.br/em-debate/fim-da-era-dos-movimentos-sociais-brasileiros.html


terça-feira, 20 de outubro de 2009

Distrito 9 - Realismo incômodo

Seção : Críticas - 16/10/2009 07:00

Distrito 9 - Realismo incômodo

Ficção científica retrata chegada de alienígenas à Terra mas mantém foco em problemas humanos

Marcello Castilho Avellar - EM Cultura
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Sony/Divulgação


Pelo menos três públicos aparentemente distintos têm boas chances de apreciar Distrito 9. O primeiro é formado pelos amantes da ficção científica. A trama parte da chegada de uma gigantesca nave espacial à Terra, com 1 milhão de alienígenas dentro – os recém-chegados são alojados num imenso campo nos arredores de Joanesburgo, África do Sul. Vinte anos depois, durante tentativa de transferi-los para outro lugar, um ser humano é infectado por uma estranha substância, começa a se transformar num dos alienígenas. O segundo público é o dos filmes de ação: Wikus (Sharlto Copley), o homem infectado, torna-se objeto de interesse da empresa para a qual trabalha, que pretende desvendar sua genética híbrida para ser capaz de operar o armamento dos extraterrestres, e começa também a ser perseguido por mercenários. Por fim, quem gosta de uma boa obra política, sintonizada com questões importantes da contemporaneidade, não pode perder o filme.

Veja mais fotos de Distrito 9

O filme de ficção científica é singular no confronto com seus congêneres nesta época de novas tecnologias. Temos a nave pairando sobre a cidade como um fantasma ameaçador, as armas, os combates, tudo com efeitos especiais – mas eles nunca dominam a imagem. Em geral, encontramos efeitos especiais com centro de imagens que parecem completamente criadas para abrigá-los. Em Distrito 9, a maioria das imagens são sujas, representações de uma realidade empobrecida (o campo dos refugiados rapidamente se transforma numa enorme favela). O elemento alienígena está presente o tempo todo, mas o foco continua nos problemas dos humanos, não como estilização, mas com um realismo incômodo.

Confira os horários e onde está passando Distrito 9

O filme de ação, por sua vez, é mais comum – e nisso tem boas chances de conquistar seu público. Distrito 9 parece uma enciclopédia de citações de obras do gênero, desde a maneira como seus conflitos são enquadrados pela câmera até a grandiloquência dos diálogos nos momentos de suspense. Quando vem pancadaria, é sempre muita de uma vez só, sem perder tempo com o drama do herói. Conhecemos os truques e somos capazes de prever muitas das situações, de modo que é uma sensação gostosa quando somos pegos de surpresa por eles, pela variação específica que assumem aqui, pela maneira como o filme lida com a transformação de um homem comum em herói.

A obra política, contudo, está acima dos dois. Distrito 9 lida com dois temas distintos mas inseparáveis. Primeiro, fala do preconceito – e não é sem razão que a obra é ambientada na África do Sul, país que por mais tempo manteve o racismo como instituição legal em nossa época. A condição dos alienígenas em Distrito 9 evoca os guetos negros da África do Sul na era racista. Ou os campos de concentração dos palestinos nos dias de hoje. Situações em que alguém tem interesse em que aquela condição permaneça, e conta, para esta permanência, com a facilidade com que o homem comum aceita a ideia de que o diferente é perigoso, é sujo, é ignorante. Segundo, fala da coisificação dos seres humanos numa era dominada pelo lucro e pelo consumo. Os alienígenas só interessam pela possibilidade de comercialização de sua tecnologia bélica, Wikus só é relevante como instrumento para alcançá-la. Em torno deles, o mundo simplesmente não se transforma: cada um luta por seu próprio interesse (ou pelo que pensa ser seu próprio interesse), mesmo se essa luta pode significar perda e miséria para a maioria.

No fim das contas, Distrito 9, entre a ação e a ficção científica, acaba sendo uma obra sobre o surgimento da consciência. Wikus vai descobrir a injustiça contra os alienígenas quando percebe que os mesmos opressores estão dispostos a agir contra ele. No processo, tomará conhecimento de que entre quaisquer seres sensíveis e conscientes, há menos diferenças que semelhanças: todos lutam pela vida, pela liberdade, pela oportunidade de serem felizes. Todos são aptos para a solidariedade e o sacrifício, desde que saibam por que estão lutando.

DISTRITO 9 -








http://www.new.divirta-se.uai.com.br/html/sessao_3/2009/10/16/ficha_critica/id_sessao=3&id_noticia=16633/ficha_critica.shtml

Ministro da Igualdade Racial: “Nabuco errou”

Ministro da Igualdade Racial: “Nabuco errou”

17/outubro/2009 21:18

Edson Santos: Nabuco previu que levaria um século para acabar a desigualdade

Edson Santos: Nabuco previu que levaria um século para acabar a desigualdade

Em 1888, quando a Lei Áurea baniu legalmente do país a vergonha do sistema escravocrata, Joaquim Nabuco, um dos abolicionistas mais engajados, profetizou que o Brasil levaria um século para livrarse da desigualdade entre os ex-escravos e os demais cidadãos. Embora tenha acertado no diagnóstico, Nabuco errou no prazo. Hoje, 121 anos após a Abolição, negros e negras continuam subrepresentados nos espaços de poder e no ambiente acadêmico, ocupando as funções menos qualificadas no mercado de trabalho, sem acesso às terras ancestralmente ocupadas no campo, e na condição de maiores agentes e vítimas da violência nas periferias das grandes cidades.

São muitas as razões que impossibilitaram a ascensão social dos negros, e sobre elas já discorri inúmeras vezes: a falta de mecanismos legais que garantissem o acesso à terra, ao trabalho e à educação no período imediatamente posterior à abolição; o incentivo à imigração europeia e asiática para substituir a mão de obra recém liberta; as teorias racistas de “embranquecimento” da população; o mito da democracia racial brasileira, que conduziu a uma quase total invisibilidade da questão negra; e toda uma herança discriminatória forjada em mais de 350 anos de escravidão.
Embora alguns setores tentem apresentar na mídia esta realidade com os sinais trocados, hoje sabemos que a democracia racial é, em verdade, um objetivo a ser alcançado, pois somos uma nação desigual, com os negros na base e os brancos ocupando o ápice da pirâmide econômica. Felizmente, no atual estágio de suas instituições democráticas, nossa sociedade está suficientemente madura para discutir a transformação desta realidade sem incitar o ódio racial ou ocasionar maiores traumas. Basta não perder de vista que o objetivo não é dividir, mas integrar. Fazer com que negros, brancos, indígenas, ciganos e outros segmentos tenham não apenas a igualdade formal dos direitos, mas a igualdade real das oportunidades.
O Estatuto da Igualdade Racial, projeto de lei que há mais de uma década tramita no Congresso Nacional, é a mais importante ferramenta para alcançar este objetivo. Surge para dar consequência e aplicabilidade ao texto da Constituição Cidadã de 1988, que, desde o seu preâmbulo e em diversos de seus artigos, confere ao Estado a responsabilidade pela promoção da igualdade e o combate aos preconceitos.
A Carta registra em seu artigo 3º, por exemplo, que é objetivo fundamental do Estado “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Assinala ainda, em seu artigo 4º , o repúdio ao racismo, determinando, no inciso XLII do artigo 5º, que sua prática se constitui em “crime inafiançável e imprescritível”.
Os primeiros efeitos da discussão em torno do Estatuto começam a ser sentidos antes mesmo de sua aprovação pelo Legislativo. De forma espontânea e sem registros de incidentes, mais de 60 instituições públicas de ENSINO SUPERIOR já colocaram em prática políticas com o objetivo de ampliar o acesso de estudantes negros aos seus cursos de graduação; as escolas de nível fundamental e médio assumem seu papel para a superação do racismo com a gradual adoção da lei do ensino de História da África e da Cultura Negra; e diversos bancos e empresas começam a adotar medidas para reduzir as disparidades entre negros e brancos em seu corpo de funcionários. Paulatinamente, o racismo é desconstruído.
A recente aprovação do projeto de lei em comissão especial formada para analisá-lo na Câmara, de forma unânime, graças a um acordo costurado entre todos os partidos presentes, foi um importante passo neste sentido. Considerando a solidez dos acordos firmados entre o governo, os partidos e a sociedade civil, estou convicto de que, muito em breve, teremos condições de aproximar o Brasil do ideal de Nabuco: “Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão.”
EDSON SANTOS é ministro da Igualdade Racial.

Publicado originalmente em O Globo de 17/10/2009

http://www.paulohenriqueamorim.com.br/?p=20436