DEBATE ABERTO
O Estado do Rio não é laico
Arquidiocese lança livros didáticos católicos para as escolas públicas. As obras desrespeitam a Constituição, burlam a própria lei do Ensino Religioso, discriminam religiões afro-descendentes e representam um retrocesso na luta em defesa da diversidade.
Stela Guedes Caputo
Aproveitando a brecha aberta através da lei estadual 3.459/2000, que regulamentou o Ensino Religioso como confessional no Rio de Janeiro, no final do ano passado, a Arquidiocese lançou quatro livros didáticos católicos de ensino religioso. A coleção é coordenada por Dom Filippo Santoro, Bispo da Educação e do Ensino Religioso e ilustrada também pelo cartunista Ziraldo. “O lançamento desses livros do Ensino Religioso Confessional e Plural das Escolas Públicas do Rio de Janeiro é muito importante porque indica uma perspectiva na qual se comunica uma mensagem muito clara, um conteúdo”, afirmou Dom Filippo Santoro, em matéria publicada no jornal O Testemunho da Fé, em agosto de 2007.
As obras desrespeitam a Constituição, burlam a própria lei do Ensino Religioso, discriminam religiões afro-descendentes e representam um retrocesso em importantes conquistas de educadores e educadoras preocupados (as) com a diversidade do país. Na página 56, do volume “A Igreja de Cristo”, por exemplo, há um ataque declarado aos praticantes de religiões afro-descendentes. Diz o texto: “A umbanda não faz uso de sacrifícios de animais em seus rituais, porque respeita a vida e a natureza”.
Para o presidente da Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé, Pai Guimarães de Ogum, a afirmação, além de equivocada, discrimina. “A umbanda é uma religião brasileira que mistura pajelança, candomblé, kardecismo, catolicismo, xamanismo, orientalismo cigano. Cada casa vai desenvolver uma linha mais de acordo com seu dirigente e todas são umbanda. Nas mais próximas ao candomblé haverá a oferta de animais. Nossa identidade não se define em função das oferendas, mas pela relação com as entidades e com o divino”.
O problema começou em 1549, com a chegada dos jesuítas que já marcaram o início da escolarização brasileira com objetivos colonizadores e de catequese. A proclamação da República, em 1889, separa Estado e Igreja Católica e só a Constituição de 1891 vai garantir o ensino laico nas escolas públicas. O Ensino Religioso sairá de cena, mas por apenas quatro décadas. De lá para cá a mobilização e pressão da Igreja Católica vem garantindo sucessivas vitórias políticas sobre os setores laicos da educação. Mais próximo aos nossos dias, é na Constituição de 1988 que estes setores sofrem a primeira grande derrota, já que a lei manteve o caráter obrigatório para a oferta do Ensino Religioso nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Minimizando o dano, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, reincorpora o dispositivo “sem ônus para os cofres públicos”, mas o lobby da Igreja Católica não deixaria por menos e a LDB é modificada e considera o Ensino Religioso “parte integrante da formação básica do cidadão”. A restrição aos gastos públicos com o Ensino Religioso desaparece e caberá aos estados regulamentarem os procedimentos para definir o conteúdo dessas disciplinas, bem como a forma de selecionar e contratar seus professores. Estava aberta a brecha para cada um fazer o que quiser, como bem entender e, por que não, como bem mandar a fé de governos, professores e diretores de escolas?
Presbiterianos e eleitos com grande apoio das igrejas evangélicas, o “casal Garotinho” aproveitou a chance. Em setembro de 2000, o marido sanciona a Lei 3.459, do ex-deputado católico Carlos Dias (PP-RJ) que estabelece o ensino religioso confessional na rede estadual. Em 2004, a esposa Rosinha, já governadora, realiza concurso público e contrata 500 professores de Ensino Religioso. A relação é: Católicos (68,2%); evangélicos (26,31%) e “outras religiões” (5,26%). Não existem professores de candomblé, por exemplo. Para explicar porque o candomblé ficou de fora, a Coordenação de Ensino Religioso informa que não existe registro na pesquisa realizada em 2001 de alunos que praticam esta religião, mas garante que não há proselitismo na disciplina.
Entrevistas com professores de Ensino Religioso, com diretores de escola onde se reza o Pai-Nosso na entrada e com alunos de candomblé revelam o contrário. Uma professora católica diz como seleciona conteúdos: “Uso textos do Padre Marcelo Rossi e também a bíblia, selecionando os trechos comuns a católicos e evangélicos”. E outra, evangélica, acrescenta: “No ano passado eu tinha uns 8 alunos que eram ogans, que se convenceram que estavam errados e hoje são cristãos. Quando somos tolerantes eles acabam entendendo que estão errados”. Não é à toa que muitas crianças de candomblé, por exemplo, nos terreiros sentem orgulho de sua fé, mas, na escola, dizem que são católicas para não serem discriminadas.
Missa de Pentecostes nas escolas, Dia do Papa, Dia do Pároco e aulas sobre a Campanha da Fraternidade. Tudo isso faz parte do calendário de atividades para o professor de Ensino Religioso, presente em todos os volumes. Trata-se da segunda maior vitória política da Igreja Católica, já que o tema da Campanha da Fraternidade deste ano é: “Fraternidade e Defesa da Vida”, e o lema “Escolhe, pois, a vida”. Para ficar mais claro: “A escolha do tema deste ano é a expressão da preocupação com a vida humana, ameaçada desde o início pelo aborto até sua consumação com a eutanásia. Tema preciso e desafiador! Somos colocados diante de uma escolha entre a morte (aborto e eutanásia) e a vida”, disse Dom Jacyr Francisco Braido, bispo de Santos, na ocasião do lançamento da Campanha.
Não estranhemos se os próximos volumes desses livros didáticos condenarem os métodos contraceptivos, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a pesquisa com embriões humanos, o divórcio. Tudo isso faz parte da Agenda do Vaticano.
Quando o Papa Bento Ratzinger XVI esteve por aqui, em maio de 2007, os principais jornais do país, divulgaram a tentativa do pontífice em fechar um acordo entre Brasil e Vaticano para regulamentar os direitos da Igreja no país que contempla patrimônio, ensino e formação religiosos. Os jornais destacaram a “firmeza do presidente Lula”, que não assinou o acordo por defender o Estado laico, e a frustração de Ratzinger. Ora, se o ensino religioso já é obrigatório, se no Rio é confessional, se os mais caros princípios católicos estão impressos em caríssimo papel couché, belamente ilustrados e disponíveis para as escolas públicas, por que o Papa saiu daqui frustrado? Além de desejar aprofundar o que já é ruim por aqui,
Ratzinger não foi embora sem antes recomendar que a Igreja ficasse longe da política. Contudo, no volume “Os sinais do Espírito”, no capítulo “Um jeito novo de ser responsável na Igreja”, lemos: “Escolha candidatos competentes que tenham boa conduta pessoal e sejam coerentes. É indispensável, ainda, que sejam comprometidos com a ética social, com os valores cristãos, com o resgate das dívidas sociais e com as posições defendidas pela Igreja, tais como: o ensino religioso nas escolas, a condenação do aborto, dos jogos de azar, a eutanásia, etc.” A restrição de Ratzinger diz respeito apenas aos setores progressistas da política porque política conservadora pode. É claro que a coisa não pára por aí.
A aliança católico-evangélica já estabelecida na seleção de conteúdos comuns no Ensino Religioso é reforçada pela publicação dessas obras que também divulga conteúdos comuns. A mesma aliança pode ser notada na própria Coordenação de Ensino Religioso, órgão da Secretaria Estadual de Educação onde apenas católicos e evangélicos possuem representação em Departamentos. A chefia da Coordenação é católica e nomeada pela Arquidiocese, que também nomeia a diretora do Departamento Arquidiocesano de Ensino Religioso Católico. Já a diretora do Departamento de Ensino Religioso Evangélico é nomeada pela Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil. Por telefone, a diretora desse último, que preferiu se identificar apenas por Vera Lúcia disse: “Nós não temos ainda nosso próprio material específico didático. Por enquanto, usamos os livros que foram cedidos pela Sociedade Bíblica do Rio de Janeiro. Fizemos um levantamento de seus livros didáticos e escolhemos os que tinham a ver com nosso plano básico. Trabalhamos de maneira amigável com os católicos”.
O senador Marcelo Crivella, ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e pré-candidato do PRB à Prefeitura do Rio, deve sacramentar a aliança com o PTB, que apresenta como candidato a vice o ex-deputado estadual Carlos Dias, ninguém mais, ninguém menos que o autor da lei do Ensino Religioso Confessional do Rio. A escola, nesse momento, representa um mercado religioso a ser dividido e conquistado por esta aliança que deixa de lado antigas divergências em benefício de interesses religiosos e políticos estratégicos dentro e fora da escola.
Logo depois de assumir, o ex-secretário de Educação do Rio, Nelson Maculan, declarava aos jornais, no dia 13/4/2006, que pretendia acabar com o ensino religioso confessional e nunca mais tocou no assunto. Parece que o problema também não existe para a nova secretária Tereza Porto. O silêncio só interessa aos setores envolvidos na aliança católico-evangélica, que, devagar e em surdina conseguiu acabar com a laicidade do Estado do Rio. Aos professores e professoras que defendem que escola não é lugar de qualquer religião, nenhum silêncio interessa.
Jornalista, Doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ.
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