“Estava em casa fazendo almoço na cozinha. Parei para ir ao banheiro e fui atingido. Comecei a sangrar muito. Corri para o quarto com minha irmã de seis anos e ficamos deitados na cama. Na hora só torcia para minha mãe chegar logo. Fiquei com medo da polícia entrar e me ver sangrando e acabar sendo confundido com um bandido”, lembra.
Com a chegada da mãe, começou outra peregrinação; conseguir sair da favela para chegar ao hospital, já que todo o Complexo estava sob pressão policial. Ivo conta que perdeu a noção do quanto caminhou pelas ruas e becos da comunidade para fugir das balas. Mal eles sabiam que ao chegarem no “asfalto” entrariam em outro pesadelo:
“Chegamos ao ponto de ônibus e aí uma viatura nos parou dizendo que eles iam levar a gente para o hospital. Fomos para o Getúlio Vargas, na Penha, levei seis pontos no braço e já saí de lá algemado direto para delegacia”.
Mesmo sendo menor de idade, Ivo teve o nome e a imagem divulgados em diversos jornais. Ele foi acusado de estar em laje na Comunidade da Grota atirando nos policiais. Na época, estudava no Ensino Médio e fazia um curso de jardinagem no Museu da República, no Catete. Além disso, nunca teve passagem pela polícia:
“Estive em dois centros de recuperação e duas delegacias. Cheguei a ficar numa cela com mais de dez pessoas. Por diversas vezes me chamaram de marginal e insistiam para dizer que era traficante. Só pensava em sair dali logo e voltar a assistir as aulas porque estava em período de provas”.
Do lado de fora os pais de Ivo fizeram tudo o que podiam para libertar o garoto. Com ajuda de advogados da ONG Projeto Legal, dez dias após, conseguiram libertar o jovem. Absolvido, em 22 de agosto, Ivo recebeu uma Moção de Desagravo à honra: “Nem queria ir lá pegar. É só um papel. Perdi aula, perdi curso e fui chamado de bandido, isso não recupera”.
Josicleide: acusaram meu filho injustamente
Atualmente, os pais de Ivo entraram na justiça pedindo indenização pelos danos morais e físicos sofridos. A situação abalou tanto a família que a mãe do jovem, Josicleide Urbano da Silva, 42 anos, até hoje faz acompanhamento psicológico para superar o trauma.
“Acusaram meu filho de uma coisa que ele não é. Foi muita humilhação onde ele foi julgado. Olhavam a gente com cara de nojo. Partiu meu coração ver meu filho passar de cabeça baixa, algemado. Foi a pior coisa que aconteceu na minha vida. Tive até que procurar psicólogo porque estava em tempo de explodir, com isso tudo guardado dentro de mim”, fala.
Triste surpresa
Morador da Gamboa, próximo ao Morro da Providência, Centro do Rio, Antônio Carlos Machado Vieira Junior, 30 anos, também ilustrou manchetes de jornal. Em abril desse ano, ele foi acusado de “ser próximo à cúpula do tráfico”, Um dia depois de seu aniversário, Antônio viu sua vida virar de cabeça para baixo:
Antônio: acusado de ligação com traficantes
“Faço aniversário no dia 6 de abril e no dia 7 saiu a primeira matéria citando somente o apelido Jacaré, que também é o meu, mas com idade diferente da minha. No dia seguinte, a reportagem já trazia meu nome completo, com apelido. Minha vida virou um desastre. Dois policiais da Polinter chegaram ir à minha casa, mas eu não estava”.
Antônio é realmente ex-militar mas saiu, segundo documentos que comprovam, por ter cumprido o tempo de sete anos (1997-2004) e não porque foi expulso do exército como afirmavam as reportagens. Após ter seu nome divulgado e associado com o tráfico, Antônio foi direto a 4º DP explicar o equívoco.
“Se eu tivesse qualquer envolvimento com o tráfico não teria ido procurar a delegacia assim que li a notícia. Também fiz um curso de vigilante que para passar eles fazem levantamento de toda tua vida para saber se tem algum antecedente criminal e passei tranqüilamente. Hoje tenho medo de que alguma coisa possa me acontecer. Por isso entrei na justiça para limpar meu nome”.
Lugares diferentes, histórias semelhantes
Líder comunitário e atual Diretor da Infância e Juventude da FAFERJ (Federação das Associações de Favelas do Estado Rio de Janeiro), William de Oliveira, o William da Rocinha, 36 anos, encabeça a fileira dos acusados injustamente. Foi preso acusado de associação ao tráfico no dia 23 de fevereiro de 2005, quando passou seis meses na Polinter no Centro e no Instituto Penitenciário Ferreira Neto, em Niterói.
William de Oliveira ficou seis meses preso
“Fui preso e acusado de associação para o tráfico, tráfico, corrupção ativa e formação de quadrilha. No dia estava em reunião numa outra comunidade e eles me levaram de camburão até o Hotel Nacional, em frente à praia de São Conrado. Ali abriram a porta e diversos jornalistas já estavam esperando”.
Na época William era presidente da Associação de Moradores Pró- Melhoramentos para os Moradores da Rocinha. Para prender o líder comunitário foi montada uma mega operação que incluiu até dois helicópteros da polícia. William atribui a prisão ao fato de na época estar fazendo várias denúncias, juntamente com organizações da sociedade civil, de injustiças que aconteciam no local.
“Nem todo mundo está preparado para ouvir certas verdades. Fizemos acusações muito graves que careciam de uma ação imediata do governo. Eram pessoas inocentes sendo assassinadas, comércio falindo. Além disso, até os próprios policiais que ocupavam a favela estavam passando fome, ao relento”, lembra.
Lúcia acha que as pessoas estão mais informadas
A prisão de William gerou indignação em muitas pessoas que conheciam seu trabalho. Só na Rocinha foi feito um abaixo assinado com mais de dez mil assinaturas pedindo sua libertação. Fora da comunidade, outro abaixo assinado contou com adesão de artistas, políticos e organizações não governamentais. Durante todo esse períodoWilliam ficou preso aguardando julgamento.
“Cheguei a ficar preso em uma cela com mais de 60 pessoas num espaço que não cabia nem 20. O constrangimento que minha esposa passou, porque não é fácil ser esposa de um presidiário, são coisas que tentamos superar”, fala.
William lembra que a ajuda veio de várias pessoas e organizações não governamentais, entre elas o Viva Rio. Em 18 de outubro de 2007, o líder comunitário foi absolvido por unanimidade.“Vários amigos e pessoas que eu nem conhecia colocaram a mão no fogo por mim. Sempre tive a consciência tranqüila. A gente sempre trabalhou com muita transparência. O que passei não tem dinheiro no mundo que vai restituir. O mínimo que poderia acontecer era eu ser absolvido, não ter uma mancha no nome que me impeça de seguir”, diz.Para a moradora do Complexo do Alemão, Lúcia de Fátima Oliveira Cabral, 41 anos, que fez o curso Promotores Legais Populares, oferecido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Candido Mendes, para lideranças comunitárias que tiveram direitos violados, histórias como estas não são recentes, e que atualmente as pessoas estão buscando mais os seus direitos.“Histórias como essa acontecem nas comunidades há muitos anos nas comunidades. A diferença é que hoje, acredito que as pessoas estão mais informadas e sabem se defender melhor. A gente trabalha para que os moradores não tenham seus direitos podados, mas ainda tem muitas pessoas lutando para limpar seus nomes de acusações injustas”, fala.