domingo, 20 de fevereiro de 2011

AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil - AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA DE RESERVA DE VAGAS NO ENSINO SUPERIOR

AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil
AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA DE RESERVA DE VAGAS NO ENSINO SUPERIOR
Fernanda Duarte
Juíza federal
Doutora em Direito
Pesquisadora do INCT-InEAC/UFF

A Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE  - se sente honrada em participar deste momento histórico.
É inegável a relevância que o tema da igualdade racial (ou de sua falta) traz para o debate público nacional, contribuindo para um amadurecimento democrático da sociedade brasileira como um todo. 
Há um cenário de exclusão – já explicitado por dados de pesquisas científicas -  que marginaliza   (quer por discriminação de cor ou  raça, quer por razões econômicas, ou por quaisquer outros motivos ) -  parte expressiva da  sociedade brasileira.
Tal situação desqualifica a cidadania brasileira e demanda intervenção imediata, pelo menos  do Poder Público,  já mais do que tardia.
Entretanto, é inegável também que as formas de combater e superar essa exclusão histórica e  endêmica abrigam diferentes estratégias e visões, inclusive muitas vezes antagônicas, espelhando a diversidade de posicionamentos pessoais e políticos, como deve ser em uma democracia saudável e plural. Os especialistas que me antecederam colocam-se como testemunho dessa pluralidade de discursos e possibilidades de ações.
Habilitada para participar nesta audiência pública sobre ação afirmativa, convocada pelo Supremo Tribunal Federal,  a AJUFE entende que sua melhor e maior contribuição para o presente debate deve ter como paradigma o respeito ao princípio do livre convencimento motivado que dirige a atividade judicante de seus associados e que, de igual forma, norteia as decisões tomadas por essa Corte. Assim, não represento aqui minha opinião pessoal,  mas falo em nome da Associação – que  para esse tema específico não adota a defesa ou a condenação do sistema de cotas, posto que não é possível extrair-se um posicionamento único e consensual entre os juízes federais.
            Desta forma, nesta breve  intervenção a AJUFE buscará explicitar os desafios a serem enfrentados pelo Judiciário que, em épocas de judicialização da  política,  precisa refletir e definir os limites de sua atuação frente aos Poderes eleitos do Estado e ao mesmo tempo manter firme seu compromisso com a proteção efetiva dos direitos fundamentais – razão que justifica e legitima a existência de juizes em um estado democrático de direito.
Para tanto, dois são os eixos de nossa intervenção.
Em primeiro lugar, apresentaremos um pequeno levantamento dos casos já julgados em segunda instância em todas as cinco Regiões que integram o Poder Judiciário Federal.
Em seguida, trataremos dos desafios que se colocam e que provocam intervenção hoje do Supremo Tribunal Federal.
No que toca ao levantamento das decisões, nossos dados foram colhidos do Portal da Justiça Federal, administrado pelo Conselho da Justiça Federal, em 02 de março passado. Em caráter descritivo, temos hoje na Justiça Federal, 32 casos julgados em segundo grau, por órgão colegiado, sendo o mais antigo julgado em 2005.  Os casos, são os mais diversos possíveis, envolvendo apelações em ações cíveis,  em mandados de segurança e em ações civis públicas para a implementação de cotas e se distribuem de forma assimétrica nas cinco regiões que compõem a base geográfica da Justiça Federal.
Há 8 casos no TRF da 1a. Região, nos quais a tendência do tribunal foi no sentido de referendar o sistema de cotas.
Há 2 casos no TRF da 2a. Região nos quais foi reconhecido que a matéria demanda disciplina legal.
Não há registro de casos no TRF da 3a. Região.
Há 21 casos no TRF da 4a. Região. A maioria maciça dos julgados referenda o sistema de cotas.
Há 1 caso no TRF da 5a. Região no qual também restou decidido que o sistema de cotas é matéria sujeita à reserva legal.
Assim, embora nos casos considerados prevaleça um entendimento que abriga a política de cotas, a matéria é ainda pouco debatida na maior parte das Regiões que compõem a Justiça Federal. E de acordo com o caso em concreto implicam na consideração, por parte do juiz, de aspectos específicos para validação do sistema ou não – sendo extremamente sensível o problema da razoabilidade do percentual a ser reservado, assim como o critério a ser utilizado para a identificação dos beneficiários da medida afirmativa.
Quanto ao segundo eixo --  os desafios -- temos três níveis de reflexão, que embora possam ser apresentados de forma separada, na verdade se encontram intrinsecamente imbricados, se determinando mutuamente. Temos  a questão jurídica em si; a questão política que sub-jaz ao jurídico  e o papel que nossa Corte deve assumir.
No que toca a questão jurídica,  de forma simplificada, nos parece que o debate gira entorno da constitucionalidade da adoção de ações afirmativas, calcadas no sistema de cotas reservadas ao grupo desfavorecido, com base na aplicação do princípio da igualdade. A medida da constitucionalidade das cotas está em fazer ver o julgador que o tratamento diferenciado adotado é razoável e se justifica em razão de seus fins. Se admitido que nossa Constituição abriga a adoção de ações afirmativas, toca ao juiz examinar, basicamente :
1)    se a medida atende aos fins a ela se destina, isto é fomenta o combate à exclusão e à discriminação, mediante a inclusão, compensação ou reparação de grupos historicamente marginalizados – as chamadas minorias ; ou se a medida reforça o preconceito, impingindo mais fissuras em nosso tecido social.
2)    se o indivíduos  favorecidos pela medida integram essa minoria e para o qual se busca a superação. Aqui a questão se torna delicada, pois quais são os grupos marginalizadas a serem escolhidos:  Negros? Afro-descendentes? Índios? Pobres? Carentes? E como se “reconhece”,  se identifica tais sujeitos? Auto-declaração? Renda per capita? Alunos oriundos da rede pública de ensino? Como  e quem  controla esse sistema de identificação, coibindo os abusos?
3)    se o percentual das cotas é proposto na sua medida exata, deixando ao concurso universal a disputa por vagas em número suficiente. O que é a medida exata? Índices do IBGE, que retratam os espectros racial e social brasileiros? O percentual adotado pelo legislador , vez que porta-voz da vontade popular?O percentual estabelecido pelas autoridades universitárias, com escopo no princípio da autonomia universitária?
4)    E no que toca ao ensino superior, indaga-se se o nosso  sistema tradicional de acesso  por mérito pode ser compatibilizado com um regime de cotas que diferencia o mérito de uns e de outros. Amplia ou reduz o acesso? Amplia para quem e reduz para quantos?
Na verdade, a resposta a essas indagações jurídicas tem por pressuposto questões de natureza política que trazem à baila paradoxos da nossa sociedade que nem sempre queremos enfrentar – ou que nem sempre queremos ver.  Por outro lado, implicam em concepções de mundo que expressam visões distintas  do que seja a Igualdade e a Justiça. Ademais, em uma cultura como a nossa, hierarquizada e desigual, como descrita por Roberto DaMatta,  como entender as cotas: privilégios ou medidas de restauração de uma igualdade perdida? Como afinal distribuir os bens de nossa cultura com base em critérios de isonomia?
Especificamente no que toca às cotas raciais, o tema coloca em discussão o mito da democracia racial brasileira. As cotas combatem o preconceito? Ou geram mais preconceito? Uma idéia fora do lugar? Reconhecimento de diversidade? Ou uma resposta a uma demanda política legitimamente organizada que no espaço público se traduz na capacidade de gerar ações políticas e jurídicas  que sufragam suas reivindicações?
O tema evidencia a necessidade de que algumas afirmações sejam investigadas e explicitadas. Afinal de contas o preconceito é racial ou a exclusão é sócio-econômica? O que de fato somos e como nos relacionamos com o OUTRO e  como valoramos o OUTRO?
Em nossas relações de força , quem pode mais e quem pode menos? Somos assimétricos, reproduzindo  relações verticais que aprofundam o fosso das desigualdades e privilégios ?
            Por fim, o terceiro desafio, diz respeito ao papel que o Supremo Tribunal Federal assumirá e que, de certa feita, define paulatinamente os rumos, propósitos e limites de nossa jurisdição constitucional.
Na verdade, antes de decidir sobre a constitucionalidade das cotas, o Supremo Tribunal deverá decidir a quem cabe, nessa tema , melhor decidir. Quem nesse tema tormentoso melhor representa os anseios da sociedade brasileira? Os juízes?  Ou a própria sociedade representadas pelo Legislativo e pela Universidade?  Deve a Corte, sob a pecha de seu inevitável caráter contra-majoritário, assumir para si a decisão política, traduzida no debate jurídico? Ou deve a Corte assumir uma postura de deferência para com demais centros de poder envolvidos na questão, reconhecendo que os mesmos são o fórum adequado para o exercício do debate democrático que leva à  melhor deliberação?
            Se assegurado o procedimento democrático que gerou as estruturas normativas ora em cheque deve o Supremo decidir substancialmente sobre essa matéria, substituindo-se a essas instância? Ou deve a Corte resguardar a autonomia dessas mesmas instâncias, posto que na ausência de violações não há que se falar em intervenção judicial?
Enfim, se admitirmos que outros atores participam da construção da Constituição,  a força normativa da constituição pode estar para além das barras dos tribunais, sugerindo uma nova dinâmica de relação entre os três poderes do Estado e a própria sociedade civil?
            Muitas são as perguntas a serem feitas.
            E são as respostas dadas em relação a essas indagações difíceis e inquietantes que servirão de arcabouço para a construção ou adoção de uma ou de outra tese jurídica a favor ou contra o sistema de cotas raciais e sociais.
São essas questões que a sociedade brasileira vê hoje postas a mesa, cujo debate agora se desloca para esfera judicial. São essas respostas que o Judiciário precisa construir, refletindo com serenidade e maturidade sobre as implicações de suas decisões . Para tanto, é preciso saber escutar, para melhor decidir!
Por fim, a AJUFE - Associação dos Juízes Federais do Brasil agradece a oportunidade e confia que a decisão de questão tão sensível,  sobre os limites de nossa igualdade , a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal, será um elemento de fortalecimento para todos nós, cidadãos brasileiros, compromissados com a  consolidação de uma  democracia aberta  ao diálogo plural, marcado por posições antagônicas, mas com espírito de acolhimento e respeito para com todas as divergências. 
           
Brasília, 05 de março de 2010

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