domingo, 4 de julho de 2010

A Produção Intelectual das Mulheres Negras e o Epistemicídio: Uma breve contribuição

quarta-feira, 9 de junho de 2010
A Produção Intelectual das Mulheres Negras e o Epistemicídio: Uma breve contribuição

Jaqueline Lima Santos (1)

A primeira vez que escutei esta palavra estranha, epistemicídio, levantei várias hipóteses sobre o seu significado. "Episteme" estaria ligada ao conhecimento, e "cídio" me lembrou a palavra homicídio, que significa "crime que mata outrem", logo cheguei à conclusão que o epistemicídio seria o assassinato do conhecimento de alguém. E quem seria este alguém que está sujeito ao epistemicídio? Nesse texto pretendo trazer uma breve apresentação do conceito, e posteriormente tratar da produção intelectual das mulheres negras.
Em busca de referências para entender melhor o epistemicídio, encontrei trabalhos da filósofa Sueli Carneiro(2), que citavam o sociólogo Boaventura de Souza Santos(3), idealizador do conceito. Segundo Sueli Carneiro, epistemicídio é um conceito que se refere às formas de conhecimento que não estão estabelecidas.
Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da auto-estima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio (Carneiro, 2005). (4)
Em seu livro "Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social"(5), Boaventura de Souza Santos defende que a produção de conhecimento ocidental, colocada como hegemônica, precisa ser deslocada do lugar de ciência única e legítima, pois "a compreensão de mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental de mundo".
Segundo Boaventura, essa ciência ocidental, o saber no Norte (dos países denominados "desenvolvidos"), acabou se tornando predominante nas relações do Sul (países periféricos), o que teve como conseqüência a produção de teorias fora do lugar, que não se ajustam as realidades sociais locais, e, apesar de diversas experiências estarem sendo desenvolvidas no Sul, elas continuam sendo pensadas através da perspectiva do Norte. As universidades do Sul ainda seguem o modelo do Norte, e ao olhar para o Sul a partir do saber do Norte as teorias acabam por reproduzir as desigualdades entre Sul e Norte.
Para o conhecimento do Norte, ao longo da história, foram construídos mecanismos para sua legitimação e negação dos conhecimentos alternativos e científicos das comunidades não ocidentais, tornando-os objetos de pesquisa. Para mudar este quadro, Santos propõe que reinventemos a emancipação social a partir do Sul, o que permitiria um pensar organizado fora dos centros hegemônicos, através daquilo que ele propõe como "Sociologia das Ausências", uma maneira de enfrentar o desperdício de experiências sociais que é o mundo.
(...) uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como não-existente, como uma alternativa não crível, como uma alternativa descartável, invisível a realidade hegemônica do mundo. (BOAVENTURA, 2007, P. 28-29).
A lógica positivista ocidental impôs que a ciência é independente da cultura. Boaventura contraria esta idéia propondo que nós devemos ser objetivos e não neutros:
Objetividade, porque possuímos metodologias próprias de ciências sociais para ter um conhecimento que queremos que seja rigoroso e que nos defenda de dogmatismos. E, ao mesmo tempo, vivemos em sociedades muito injustas, em relação as quais não podemos ser neutros. (BOAVENTURA, 2007, P. 32).
Segundo Boaventura há cinco formas de produzir ausência em nossa racionalidade ocidental que as ciências sociais compartem. A primeira seria a monocultura do saber e do rigor – aquela para a qual existe um único saber científico, os outros não têm validade, eliminam as realidades fora dos padrões ocidentais, os saberes populares. "(...) Essa monocultura do rigor baseia-se, desde a expansão européia, em uma realidade: a da ciência ocidental". Essa monocultura do saber e do rigor ao negar as outras formas de se produzir conhecimento, produz o que Boaventura chama de "epistemicídio": "a morte de conhecimentos alternativos". A segunda seria a monocultura do tempo linear: "(...) a idéia de que a cultura tem um sentido, uma direção, e de que os países desenvolvidos estão na dianteira". Parte do pressuposto que tudo que existe nesses países desenvolvidos estão à frente dos outros países, eles se colocam na condução da história. A terceira monocultura da naturalização das diferenças: Naturaliza as condições das diferenças, como se as hierarquias fossem frutos de classificações naturais, "(...) não se pensa diferenças com igualdade; as diferenças são sempre desiguais". A quarta seria a monocultura da escala dominante: Coloca a Hegemonia do global, universal, invisibiliza o local, o particular. A quinta e última forma de produzir ausências seria a monocultura do produtivismo capitalista: a idéia de que o ciclo de produção determina a produtividade humana, tudo que não é produtivo na lógica ocidental é considerado improdutivo e estéril. Ser improdutivo é a maneira de produzir ausência.
A sociologia das ausências seria o mecanismo pelo qual o que esta ausente passe a estar presente. "Há cinco formas de ausência que criam esta razão metonímica, preguiçosa e indolente: o ignorante, o residual, o inferior, o local ou particular e o improdutivo" (BOAVENTURA, 2007).
Se queremos inverter essa situação – por meio da sociologia das ausências- temos de fazer com que o que está ausente esteja presente, que as experiências que já existem, mas são invisíveis e não-críveis estejam disponíveis; ou seja, transformar objetos ausentes em objetos presentes". (BOAVENTURA, 2007, P. 32).
O fato de não sabermos trabalhar com os objetos ausentes é uma herança do positivismo. Boaventura afirma que a falta da ausência é um desperdício, e propõe a substituição das monoculturas pelas ecologias no procedimento da Sociologia das Ausências, com o objetivo de tornar as experiências ausentes em experiências presentes.
São cinco as Ecologias para tornar as experiências ausentes em experiências presentes: A primeira é a ecologia dos saberes – Fazer com que o saber científico dialogue com todos os saberes, fazendo um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica. Essa ecologia contraria a idéia de ciência única e valoriza outros saberes, os conhecimentos tradicionais. A segunda é a ecologia das temporalidades – reconhecer a existência de outros tempos além do tempo linear. Se reduzirmos todas as temporalidades a temporalidade linear afastamos todas as outras coisas diferentes das nossas. Ex: O tempo dos antepassados nas comunidades africanas, "os que estão antes estão conosco". Cada um tem o seu tempo. A terceira é a ecologia do reconhecimento – somente aceitar as diferenças depois que as hierarquias forem descartadas. Descolonizar as mentes para entender o que é produto da hierarquia e o que não é. A quarta é a ecologia da transescala – Articulação em nossos projetos das escalas locais, nacionais e globais. O local pode ser embrionário se pode conduzir ao nacional. A quinta e última é a ecologia das produtividades – recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção, das organizações populares, cooperativas, movimentos sociais que a ortodoxia capitalista desacreditou.
O que Boaventura nos propõe é a valorização das diversas possibilidades de pensar a vida, das diversas formas de produzir conhecimento, e que uma não seja mais importante que a outra. Outro mundo é possível dentro das diversas possibilidades.
Não podemos reduzir a heterogeneidade do mundo em homogeneidade, e por isso o autor propõe o "procedimento de tradução" para entender a realidade do outro: "é traduzir saberes em outro saberes, traduzir práticas e sujeitos uns aos outros, é buscar inteligibilidade sem "canibalização", sem homogeneização". É preciso compreender sem destruir a diversidade.
E porque esta discussão é importante aqui? A universidade é um espaço de produção de conhecimento para a sociedade, ela produz a ideologia dominante, logo ela sustenta a existência de uma elite, as relações de poder. Hoje estamos reivindicando a inclusão de grupos historicamente excluídos nesses espaços, mas queremos que eles reproduzam as mesmas relações de dominação e desigualdades que estão postas? Ou queremos que sejam capazes de transformar, a partir das respectivas realidades vivenciadas em suas comunidades, as maneiras conservadoras, pautadas em um modelo de pensar único e universal, que estruturam a sociedade? É preciso que esses grupos possam valorizar as suas diferentes experiências, e não entrem na universidade para se tornarem meros receptores do conhecimento hegemônico, ocidental. Precisamos formar questionadores, que busquem a valorização do saber marginalizado, saberes que estão historicamente ligados com o seu passado e o passado de seus ancestrais, com a situação dos seus semelhantes nos dias de hoje. É preciso valorizar as diferentes experiências sociais, evitando o desperdício tão criticado por Boaventura.
Segundo Sueli Carneiro:
O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia, foi também um epistemicídio. Eliminaram-se povos estranhos porque também tinham formas de conhecimento estranhas. E eliminaram-se formas de conhecimento estranhas porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos". Adequada aos dias correntes, essa idéia permite pensar a incapacidade de diversos grupos sociais conviverem com a diversidade, criando mecanismos desiguais de reprodução social. No caso dos negros, o epistemicídio atua como um conjunto de práticas educacionais desfavorecedoras e constrangimentos sociais quotidianos, visando obstar a trajetória do sujeito negro como sujeito de conhecimento. Impossibilitando esse papel, trava-se um processo social de emancipação do sujeito e de seu grupo.(6)
Em 7 anos de universidade, levando em consideração a graduação e o mestrado, na área de Ciências Humanas, tive pouco contato com intelectuais negras e negros, africanas e africanos, que transgrediram o pensamento tradicional, e posso afirmar que se não fosse o meu interesse em buscar a contribuição que os mesmos trouxeram para a minha área de pesquisa, teria, ao longo desses anos, uma formação totalmente branco-ocidental. Posso dizer também que o pouco contato que tive com produções intelectuais indígenas, partiu do meu próprio interesse. Outro dado relevante é que de todo o referencial teórico apresentado a mim pela universidade, as produções de mulheres não superaram os 10%, e se levar em consideração a produção intelectual das mulheres negras, esta foi nula, nunca nenhum professor me indicou uma referência teórica deste segmento, mesmo sabendo da existência de Lélia Gonzalez, Maria Firmino dos Reis, Maria Nazareth Fonseca, Petronilha Betriz Gonçalvez, Nilma Lino Gomes, Sueli Carneiro, bell hooks (7), Patrícia Hill Collins, Edna Roland, Deise Benedito, Margareth Menezes, Maria Inês Barbosa, Maria Beatriz Nascimento, Vilma Reis, Jurema Werneck, Fernanda Lopes, Luiza Bairros, Ilma Fátima, Conceição Evaristo, Mãe Menininha dos Gantóis, Makota Valdina, Maria Nilza Iracy, Luiza Bairros, Matilde Ribeiro e tantas outras Aqualtunes, Dandaras e Acotirenes que produzem conhecimento em seus diferentes campos: na academia, na música, no terreiro, na comunidade, na política, nas ruas e etc.
Em muitos momentos, ao citar o trabalho dessas autoras, ativistas, artistas, que produzem, de uma forma ou de outra, conhecimento sobre a nossa sociedade e em prol da mesma, fui questionada sobre a objetividade de seus trabalhos, isto porque, a maioria delas não separam sua condição social de mulher negra de suas produções intelectuais. Cansei de ter que intervir, na maioria das vezes, no sentido de provar que as produções intelectuais dessas mulheres trazem grande contribuição para a sociedade, e que na produção intelectual não existe um olhar que não seja comprometido, todo discurso, todo o enunciado, parte de algum lugar, e está comprometido com algo, principalmente nas Ciências Humanas onde o conhecimento não é algo exato, está em constante construção.
Pude perceber que as pessoas que me questionavam, sendo a maioria homens brancos, falavam também de um lugar, do lugar em que legitimavam seu espaço dentro da universidade, como o único produtor e legítimo dono de conhecimento, que continuava subjugando-nos como objetos de pesquisa. Não seria esse também um olhar comprometido? Comprometido com a dualidade ocidental, com o colonialismo, com a dominação?
As mulheres negras, desde a colonização do Brasil, trouxeram diversas contribuições intelectuais que constituem a formação do país. Hoje continuam inseridas nos diversos espaços, sejam eles políticos, acadêmicos, comunitários, em movimentos sociais, culturais, comunidades tradicionais e etc. Ignorar essas contribuições e trajetórias de vida é o mesmo que cometer o epistemicídio. Segundo Sueli Carneiro, anular e tornar invisíveis seus conhecimentos faz parte de um "conjunto de estratégias que terminam por abalar a capacidade cognitiva das pessoas negras, que conspiram sobre a nossa possibilidade de nos afirmarmos como sujeito de conhecimento, ou seja, todos os processos que reiteram que nós somos, por natureza, seres não muito humanos, e portanto, não suficientemente dotados de racionalidade, capazes de produzir conhecimento e, sobretudo, ciência".
Para finalizar, reafirmo as colocações de Sueli Carneiro em sua palestra realizada no evento "Resposta ao Racismo: Um Seminário na UNICAMP", em que a autora afirma que a experiência das (os) estudantes negras (os) nos espaços de orientação educacional é uma experiência de obstáculos:
"Desde os primeiros estágios, ele tem de se defrontar com, pelo menos, uma tríade de desafios: "A branquitude do saber, a profecia auto-realizadora e a autoridade da fala [brancas]", que articulam intrincadamente as idéias de racialidade, saber e poder, gerando submissão, abandono escolar, desprezo pela atividade intelectual e a franca percepção do não-lugar. "O processo de discriminação contra crianças negras constitui uma prática pedagógica", nos diz a autora. O sujeito negro é forçado a perceber desde cedo os fantasmas com os quais terá de lutar, hostilizado por eles continuamente. A confrontação final desse embate pedagógico, segundo a filósofa, se dá na Universidade. Apoiando-se nos intelectuais negros e ativistas estadunidenses bell hooks e Cornel West(4) – ambos interessados em discutir a situação do intelectual negro como sujeito de conhecimento e os mecanismos sociais que obstam essa realidade – afirma que o enfrentamento nesse espaço ocorre sem mediações. O dilema do intelectual negro, para usar uma expressão de West, se constitui, entre outras ações, em superar a visão de ser um herói solitário. Ele deve agregar à sua produção de conhecimento uma ação comunitária, capaz de diferenciar seu produto intelectual, com uma perspectiva negra. Isso, em grande medida, significa correr o risco de sair do padrão esperado e controlado pelo ambiente universitário, provocando, portanto, uma insubordinação às expectativas acadêmicas em relação a esse intelectual negro.(8)
Espero que possamos desconstruir a lógica cartesiana de um único lugar, uma única possibilidade, uma única resposta, uma única verdade, e que os conhecimentos ditos "periféricos" e "subalternos" também sejam deslocados para o centro de nossas formações.
__________
(1) Jaqueline Lima Santos é estudante de mestrado em Ciências Sociais – Antropologia pela UNESP, pesquisadora do NUPE – Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão, militante do Movimento Negro Unificado (MNU), do Fórum de HIP HOP do interior e da AMO.
(2) Sueli Carneiro possui doutorado em Educação pela FE - Universidade de São Paulo (2005). Atualmente é coordenadora executiva do Geledes Instituto da Mulher Negra. Tem experiência em pesquisa e atuação nas áreas de raça, gênero e direitos humanos.
(3) Boaventura de Souza Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de Coimbra, Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
(4) Em Legítima Defesa – Sueli Carneiro. Fonte: http://www.geledes.org.br/.
(5) SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. São Paulo: Boitempo, 2007.
(6) Trecho da apresentação de Sueli Carneiro no evento "Respostas ao Racismo: Um seminário na Unicamp", retirado da matéria elaborada por Mário Augusto Medeiros da Silva e publicada no Portal Irohin: www.irohin.org.br.
(7) Escreve seu nome com letras minúsculas como forma de protesto a condição social que lhe é colocada como mulher negra.
(8) Mário Augusto Medeiros da Silva (2009), "Respostas ao Racismo: Um seminário na Unicamp", publicada no Portal Irohin: http://www.irohin.org.br/.


http://jaquelinecontraoepistemicidio.blogspot.com/2010/06/producao-intelectual-das-mulheres_09.html

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