Pesquisador norte-americano desenvolve projeto inédito que reúne documentos com textos e narrativas de escravos brasileiros
Ana Clara Brant
Publicação: 11/07/2010 07:00 Atualização: 11/07/2010 16:09
Ele conhece como poucos a obra de Guimarães Rosa, inclusive desbravou as Gerais percorrendo todo o caminho do Grande Sertão Veredas. Encenou peças clássicas da dramaturgia brasileira, como Morte e vida severina, O pagador de promessas e Eles não usam black-tie e chegou a trabalhar ao lado de um dos papas das artes cênicas, Augusto Boal. Além disso, alfabetizou trabalhadores rurais no interior da Bahia, utilizando o método do mestre Paulo Freire e se prepara agora para concluir um trabalho inédito sobre os primeiros autores negros do país. É um trabalho interessante e se torna ainda mais peculiar por um detalhe: o protagonista de todos esses feitos é um norte-americano que vive no estado de Iowa, no Centro-Oeste dos Estados Unidos. Entretanto, é um apaixonado pelo Brasil. Robert Krueger, 67 anos, esteve recentemente em Brasília e recebeu o Correio para falar dessa pesquisa sobre narrativas e textos de escravos brasileiros.
Todo o trabalho começou há 28 anos quando Robert, que é um brasilianista (estrangeiro especialista em Brasil) e professor de português e espanhol em universidades norte-americanas, resolveu desenvolver uma coletânea com a mulher, Alida Bakuzis, também uma especialista em língua hispânica e lusa, reunindo narrativas e textos de escravos brasileiros. Entre os destaques estão documentos sobre uma santa negra e um outro datado de 1558 abordando a castidade de uma índia também escravizada.
Ele lembra que já foram publicados escritos nesse sentido no Brasil, mas textos dispersos encontrados por historiadores e pesquisadores. “Um historiador aqui, outro ali conseguiram alguma coisa nesse sentido e, na maioria das vezes, publicaram só fragmentos. Nós temos a única coletânea desse assunto e ainda temos a intenção de fazer uma antologia bilíngue. Alguns documentos antigos foram realmente escritos pelos escravos, uma raridade, já que a maioria era analfabeta, outros são testamentos ou até testemunhos orais, inclusive, depoimentos colhidos, muitas vezes, sob tortura”, revela.
Racismo
A coletânea vai se chamar Milhões de vozes, umas páginas preciosas: As narrativas e textos dos escravos brasileiros e deve ser lançada ainda este ano. Robert conta que sempre lutou contra o racismo nos Estados Unidos, e que só no seu país existem cerca de 6 mil narrativas escravas. Dessa forma, sentia falta desse tipo de literatura no Brasil, até porque foi uma das nações que mais escravizaram no mundo. “O Brasil teve escravos africanos como nenhum outro país. Percorremos arquivos públicos de vários lugares, como em Lisboa (na Torre do Tombo), no Porto, em Évora, nos Estados Unidos, na Inglaterra e em várias cidades do Brasil, conseguimos documentos raríssimos. A gente transcreve e interpreta o documento porque, muitas vezes, alguns estão até ilegíveis”, comenta o pesquisador.
Ao todo, Robert e Alida conseguiram reunir aproximadamente 370 documentos, uma quantidade considerada pequena em comparação à de textos escravistas publicados nos Estados Unidos. Para o brasilianista, esse número abaixo do esperado se deve a dois motivos: ao fato de a abolição no Brasil ter sido tardia e devido ao catolicismo, que era a religião predominante entre os negros por aqui, não exigir que seus fiéis fossem alfabetizados. “Nos EUA, o movimento abolicionista foi liderado por protestantes. No protestantismo, a autoridade é um livro, a Bíblia. Já no catolicismo, não. Para ser um bom protestante é necessário saber ler. Por isso, a maioria dos abolicionistas norte-americanos era alfabetizada, porque eles eram protestantes. O oposto do Brasil”, explica. E acrescenta: “A segunda razão é que a abolição foi tardia, elitista e racista no Brasil. Os escravos não podiam participar das reuniões do movimento abolicionista. Muitos negros queriam participar, mas foram excluídos. Por isso se encontram tão poucos registros”.
Chicotealma: Liberdade Escrava.
Dramas dos escravos brasileiros. ©2009 Robert Krueger
Prefácio:
Todos os personagens que aparecem aos jovens da quadrilha RuaLua neste drama são verídicos, autênticas pessoas históricas--todos escravos afro-brasileiros, cujas histórias e vidas são de pura inspiração na nossa luta pela emancipação humana hoje em dia. Noventa porcento das palavras dos personagens são fiéis aos textos originais de sua própria autorização. Estes heróis na luta contra a escravidão sobre saem entre muitos outros cujas narrativas se juntam na primeira coleção de textos escritos ou ditados por escravos brasileiros e compilado pelo dramaturgo.
Entra a quadrilha RuaLua: TIAMBO, negro, forte, 17 anos, líder, maduro, cauteloso, protetor, bom coração; MANA, moça negra, 16 anos, astuta, generosa, protetora da menor Bemvinda; COMETA, rapaz branco, 15 anos, suspeitoso, distante, rebelde mas de bom intento; BEMVINDA, menina cabocla, 13 anos. Catando pelo lixo.
TIAMBO: (Entra, examinando o lixo, chama.) Ó gente, ó RuaLua, vem! Aqui tem hotel e merenda!
(Entram Mana com Bemvinda, e Cometa. Olham, examinam o lugar, o lixeiro e os cartões, comem coisas.)
MANA: Bom, aqui acampamos.
BEMVINDA: (Saboreando e imaginando) Quase me lembra a comida de casa.
(Todos comem, alguns em pé, famintos.)
COMETA: (Vigila a viela. Com seu “spray can” apaga uma pichação racista, queixando.) Sacanagem! (Pinta com vingança o logo do grupo.) Os “RUALUA--Uma Raça Humana Unida!” porra!
TIAMBO: (Mexendo nos cartões, descobre Mariano e Chatinha) Que diabo!!! (ficando para tras).
Mariano e Chatinha emergem, defensivos, cautelosos, e Tiambo e Cometa tomam posição de defesa.
MARIANO: ´Tá bem, moços. Somos de paz.
MANA: Calma, tem espaço p´ra todos.
TIAMBO: Relaxe. Vamos preparar as camas (começando a distribuir cartões).
MANA: Na minha terra valemos os velhos. Quantos anos têm a senhora?
CHATINHA: Olha, eu tenho cento e oito anos e três mezes e vinte e nove dia.
MARIANO: Eu, cento e vinte e dois.
TIAMBO: Mentira, porra!
MANA: Calma. Onde nasceu?
CHATINHA: Eu nasci nas mata. Os meus pais eram índio. A Minha mãe foi panhada a laço... pra vim pra fazenda do barão...pra fazê chibata. (Tira a chibata da cuía e dedilha as tiras)...quando matava boi, tirava aquelas couro porque a chibata tem que sê de couro cru...na fazenda eu fui escrava.
COMETA: (Incrédulo, sarcástico) E o avô?
MARIANO: Fui nascido e me criei no Paraná. Mas, depois da Libertação, nois não tinha nada, saímos sem nada...Andava que nem passarinho, voando.
BEMVINDA: Como nós na roça, sem nada. Como era a vida na fazenda, no tempo da escravidão?
MARIANO: Era trabaiando!! De cedo à noita. Era no enxadão. Comendo em cuia de purungo. E o feitor, ali, com bacaiau...o chicote.
Terceira cena: Rosa Egipcíaca, uma puta negra santa brasileira.
TIAMBO: E os feitores, eles romperam os seus ritos, seus batuques?
MARIANO: (matutando longinquamente, franzindo) Eles invadiam nossas cerimonias, festas. Faziam um baile. E os capangas, ali com revolvão, facanzão, chicote, ali juntos. E tiravam as roupas...cantava o bacaiau...fosse moça, fosse casada. E manda tirar a roupa de um homem ou de uma moça, e fazer dançar pelado, ali... É hoje que falo, e até não gosto nem de me alembrá.
Chatinha tira um punhado de mágica farinha de mandioca da cuia e o lança num arco no ar contra a parede o pó da farinha cintilante; imagens barrocas devagar aparecem na parede.
Três monjas ao redor da escrivaninha no convento do Recolhimento do Parto, preocupadas com papéis, relíquias, manuscritos, íconos religiosos.
MARIA TERESA: (Sentada e refletindo à escrivaninha, pluma na mão, recita em estilo de leiloeiro de escravos.) Rosa, uma pobrinha courana africana de seis anos, raptada numa agradável tarde de soneca...sobrevive a ínfama passagem do meio atlântico...aterrada no Rio em 1725, batizada Rosa, e vendida (agudo golpe de tambor)...
ROSA: Em compahia do meu primeiro senhor estive até a idade de catorze anos, o qual me deflorou e tratou comigo torpemente.
ANA: (Ditando para Maria Teresa) 1733, vendida (agudo golpe de tambor) como escrava prostituta da Dona Ana Garcês de Moraes, mãe do grande poeta Santa Rita Durão, em Infeccionado, Minas Gerais. Servindo de escrava venérea ficou poluída com o veneno do Sodoma e Gamora das Minas Gerais do ouro. (Pantomimos coreografam a orgiástica violação de Rosa.)
ROSA: Andando com escaldo tumor no ventre...até que, indo à capela, onde estava o meu próximo dono, Padre “Xota Diabos”, fazendo exorcismos.
Todo o trabalho começou há 28 anos quando Robert, que é um brasilianista (estrangeiro especialista em Brasil) e professor de português e espanhol em universidades norte-americanas, resolveu desenvolver uma coletânea com a mulher, Alida Bakuzis, também uma especialista em língua hispânica e lusa, reunindo narrativas e textos de escravos brasileiros. Entre os destaques estão documentos sobre uma santa negra e um outro datado de 1558 abordando a castidade de uma índia também escravizada.
Ele lembra que já foram publicados escritos nesse sentido no Brasil, mas textos dispersos encontrados por historiadores e pesquisadores. “Um historiador aqui, outro ali conseguiram alguma coisa nesse sentido e, na maioria das vezes, publicaram só fragmentos. Nós temos a única coletânea desse assunto e ainda temos a intenção de fazer uma antologia bilíngue. Alguns documentos antigos foram realmente escritos pelos escravos, uma raridade, já que a maioria era analfabeta, outros são testamentos ou até testemunhos orais, inclusive, depoimentos colhidos, muitas vezes, sob tortura”, revela.
Racismo
A coletânea vai se chamar Milhões de vozes, umas páginas preciosas: As narrativas e textos dos escravos brasileiros e deve ser lançada ainda este ano. Robert conta que sempre lutou contra o racismo nos Estados Unidos, e que só no seu país existem cerca de 6 mil narrativas escravas. Dessa forma, sentia falta desse tipo de literatura no Brasil, até porque foi uma das nações que mais escravizaram no mundo. “O Brasil teve escravos africanos como nenhum outro país. Percorremos arquivos públicos de vários lugares, como em Lisboa (na Torre do Tombo), no Porto, em Évora, nos Estados Unidos, na Inglaterra e em várias cidades do Brasil, conseguimos documentos raríssimos. A gente transcreve e interpreta o documento porque, muitas vezes, alguns estão até ilegíveis”, comenta o pesquisador.
Ao todo, Robert e Alida conseguiram reunir aproximadamente 370 documentos, uma quantidade considerada pequena em comparação à de textos escravistas publicados nos Estados Unidos. Para o brasilianista, esse número abaixo do esperado se deve a dois motivos: ao fato de a abolição no Brasil ter sido tardia e devido ao catolicismo, que era a religião predominante entre os negros por aqui, não exigir que seus fiéis fossem alfabetizados. “Nos EUA, o movimento abolicionista foi liderado por protestantes. No protestantismo, a autoridade é um livro, a Bíblia. Já no catolicismo, não. Para ser um bom protestante é necessário saber ler. Por isso, a maioria dos abolicionistas norte-americanos era alfabetizada, porque eles eram protestantes. O oposto do Brasil”, explica. E acrescenta: “A segunda razão é que a abolição foi tardia, elitista e racista no Brasil. Os escravos não podiam participar das reuniões do movimento abolicionista. Muitos negros queriam participar, mas foram excluídos. Por isso se encontram tão poucos registros”.
Chicotealma: Liberdade Escrava.
Dramas dos escravos brasileiros. ©2009 Robert Krueger
Prefácio:
Todos os personagens que aparecem aos jovens da quadrilha RuaLua neste drama são verídicos, autênticas pessoas históricas--todos escravos afro-brasileiros, cujas histórias e vidas são de pura inspiração na nossa luta pela emancipação humana hoje em dia. Noventa porcento das palavras dos personagens são fiéis aos textos originais de sua própria autorização. Estes heróis na luta contra a escravidão sobre saem entre muitos outros cujas narrativas se juntam na primeira coleção de textos escritos ou ditados por escravos brasileiros e compilado pelo dramaturgo.
Entra a quadrilha RuaLua: TIAMBO, negro, forte, 17 anos, líder, maduro, cauteloso, protetor, bom coração; MANA, moça negra, 16 anos, astuta, generosa, protetora da menor Bemvinda; COMETA, rapaz branco, 15 anos, suspeitoso, distante, rebelde mas de bom intento; BEMVINDA, menina cabocla, 13 anos. Catando pelo lixo.
TIAMBO: (Entra, examinando o lixo, chama.) Ó gente, ó RuaLua, vem! Aqui tem hotel e merenda!
(Entram Mana com Bemvinda, e Cometa. Olham, examinam o lugar, o lixeiro e os cartões, comem coisas.)
MANA: Bom, aqui acampamos.
BEMVINDA: (Saboreando e imaginando) Quase me lembra a comida de casa.
(Todos comem, alguns em pé, famintos.)
COMETA: (Vigila a viela. Com seu “spray can” apaga uma pichação racista, queixando.) Sacanagem! (Pinta com vingança o logo do grupo.) Os “RUALUA--Uma Raça Humana Unida!” porra!
TIAMBO: (Mexendo nos cartões, descobre Mariano e Chatinha) Que diabo!!! (ficando para tras).
Mariano e Chatinha emergem, defensivos, cautelosos, e Tiambo e Cometa tomam posição de defesa.
MARIANO: ´Tá bem, moços. Somos de paz.
MANA: Calma, tem espaço p´ra todos.
TIAMBO: Relaxe. Vamos preparar as camas (começando a distribuir cartões).
MANA: Na minha terra valemos os velhos. Quantos anos têm a senhora?
CHATINHA: Olha, eu tenho cento e oito anos e três mezes e vinte e nove dia.
MARIANO: Eu, cento e vinte e dois.
TIAMBO: Mentira, porra!
MANA: Calma. Onde nasceu?
CHATINHA: Eu nasci nas mata. Os meus pais eram índio. A Minha mãe foi panhada a laço... pra vim pra fazenda do barão...pra fazê chibata. (Tira a chibata da cuía e dedilha as tiras)...quando matava boi, tirava aquelas couro porque a chibata tem que sê de couro cru...na fazenda eu fui escrava.
COMETA: (Incrédulo, sarcástico) E o avô?
MARIANO: Fui nascido e me criei no Paraná. Mas, depois da Libertação, nois não tinha nada, saímos sem nada...Andava que nem passarinho, voando.
BEMVINDA: Como nós na roça, sem nada. Como era a vida na fazenda, no tempo da escravidão?
MARIANO: Era trabaiando!! De cedo à noita. Era no enxadão. Comendo em cuia de purungo. E o feitor, ali, com bacaiau...o chicote.
Terceira cena: Rosa Egipcíaca, uma puta negra santa brasileira.
TIAMBO: E os feitores, eles romperam os seus ritos, seus batuques?
MARIANO: (matutando longinquamente, franzindo) Eles invadiam nossas cerimonias, festas. Faziam um baile. E os capangas, ali com revolvão, facanzão, chicote, ali juntos. E tiravam as roupas...cantava o bacaiau...fosse moça, fosse casada. E manda tirar a roupa de um homem ou de uma moça, e fazer dançar pelado, ali... É hoje que falo, e até não gosto nem de me alembrá.
Chatinha tira um punhado de mágica farinha de mandioca da cuia e o lança num arco no ar contra a parede o pó da farinha cintilante; imagens barrocas devagar aparecem na parede.
Três monjas ao redor da escrivaninha no convento do Recolhimento do Parto, preocupadas com papéis, relíquias, manuscritos, íconos religiosos.
MARIA TERESA: (Sentada e refletindo à escrivaninha, pluma na mão, recita em estilo de leiloeiro de escravos.) Rosa, uma pobrinha courana africana de seis anos, raptada numa agradável tarde de soneca...sobrevive a ínfama passagem do meio atlântico...aterrada no Rio em 1725, batizada Rosa, e vendida (agudo golpe de tambor)...
ROSA: Em compahia do meu primeiro senhor estive até a idade de catorze anos, o qual me deflorou e tratou comigo torpemente.
ANA: (Ditando para Maria Teresa) 1733, vendida (agudo golpe de tambor) como escrava prostituta da Dona Ana Garcês de Moraes, mãe do grande poeta Santa Rita Durão, em Infeccionado, Minas Gerais. Servindo de escrava venérea ficou poluída com o veneno do Sodoma e Gamora das Minas Gerais do ouro. (Pantomimos coreografam a orgiástica violação de Rosa.)
ROSA: Andando com escaldo tumor no ventre...até que, indo à capela, onde estava o meu próximo dono, Padre “Xota Diabos”, fazendo exorcismos.
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