terça-feira, 1 de setembro de 2009

As donas da história






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As donas da história
Inédito na história da teledramaturgia brasileira, próximas novelas da Globo terão duas atrizes negras como protagonistas, Taís Araújo e Camila Pitanga
Fabiano Chaves

Ao longo da história da teledramaturgia brasileira, o telespectador viu raramente atores e atrizes negros em papéis principais de novelas e outros tipos de produções para a telinha. Não que eles não estivessem lá. Ao contrário, grandes artistas negros do país sempre se fizeram presentes, mas em papéis secundários e, geralmente, interpretando personagens com o estereótipo "imposto" ao negro, como faxineiros, motoristas, empregados, escravos...

O cenário atual, no entanto, é de mudanças. Nos próximos meses, o telespectador vai ser testemunha de um fato inédito nos 59 anos de história da TV brasileira: duas novas novelas da Globo, com estreias previstas para setembro, terão atrizes negras como protagonistas.

Em "Cama de Gato", de Duca Rachid e Thelma Guedes, próxima novela das 18h, Camila Pitanga fará a personagem principal. Já no próximo folhetim das 21h, "Viver a Vida", de Manoel Carlos, que estreia dia 14, Taís Araújo será a heroína.

"Acho que a gente estava se devendo isso, em todos os níveis. E, na televisão, de alguma maneira isso era deixado um pouco de lado", afirma Camila, que acredita que o momento atual é resultado de um processo. "Estamos vivendo um outro momento, Obama está aí e representa bastante isso, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Não foi isso que fez com que fôssemos protagonistas, mas reflete uma conjuntura comum, pois vivemos no mesmo tempo", opina a atriz, que vai interpretar Rose, a sua primeira protagonista na carreira.

No caso de Taís Araújo, ser protagonista não é uma novidade em seu currículo. Em 1996, ela interpretou Xica da Silva, na novela homônima da extinta rede Manchete. Ali, a atriz tornou-se a primeira negra a viver a heroína de um folhetim da TV brasileira, embora fosse num personagem histórico que só caberia a uma artista afro-brasileira. Passados oito anos, aí, sim, Taís realmente fez história ao viver o papel principal de uma novela contemporânea, "Da Cor do Pecado" (2004), onde encarnou a jovem Preta.

Agora, ela se prepara para dar vida a uma personagem fetiche de Manoel Carlos: Helena - que em outras tramas do autor foi interpretada por Lilian Lemmertz, Maitê Proença, Regina Duarte (por três vezes), Vera Fischer e Cristiane Torloni.

Mas se ser protagonista não é novo na carreira da atriz, vale um registro importante. Taís Araújo é a primeira negra a ter o papel principal em um folhetim da Globo no horário nobre.

"Não creio que um fato ou algum acontecimento tenha permitido isso. Para mim, é uma honra estar à frente dessa personagem e creio que isso é muito mais fruto de um trabalho que já venho desempenhando há alguns anos. Por outro lado, é mais uma conquista e que precisa ser valorizada. Se não encaro isso como um peso, reconheço que é uma responsabilidade, até mesmo pela referência que novas gerações possam vir a ter."








Mudança
Momento de afirmação
Fabiano Chaves

Se o momento é único na TV brasileira, com duas atrizes negras protagonizando novelas da Globo simultaneamente, há, também, um elemento que parece caminhar no mesmo sentido de mudança: o personagem estereotipado geralmente atribuído a atores negros.

Em "Cama de Gato", mesmo sendo sua primeira experiência como protagonista, Camila Pitanga vive uma faxineira humilde e batalhadora. Até aí, nada fora do comum. Já na novela "Viver a Vida", Taís Araújo interpreta uma modelo rica e bem-sucedida, papel que poderia estar nas mãos de uma atriz branca.

Com um intenso trabalho de pesquisa sobre a trajetória do personagem negro nas novelas brasileiras, material que resultou no filme, e posteriormente no livro, "A Negação do Brasil", o cineasta Joel Zito Araújo considera a questão como uma situação especial, "principalmente considerando a dificuldade das emissoras em colocar protagonistas negros" em suas produções.
Araújo também enfatiza outro aspecto importante sobre os papéis geralmente desempenhados por atores negros e que, no caso da personagem de Taís Araújo em "Viver a Vida" - uma modelo rica - foge ao estereótipo.

"Parecia que a regra era o negro interpretando o estereótipo do negro, ou seja, o bandido, a faxineira, o escravo, e por aí vai. É como se fossem condenados a esses papéis. No momento em que a Taís, e sua personagem, é incorporada fora desse estereótipo, abre-se um novo leque de possibilidades", diz.

O cineasta comemorou a notícia das duas atrizes à frente dos papéis principais em suas respectivas novelas. "Fiquei muito contente com a notícia que a Taís Araújo será a protagonista da próxima novela das 21h. Não sabia que a Camila Pitanga também será e fico mais feliz ainda. Vou abrir uma champagne hoje à noite", celebrou o cineasta, ao conceder essa entrevista ao Magazine.

Ator mais antigo em atividade contínua na Globo, Milton Gonçalves exalta as qualidades profissionais das atrizes sobre qualquer acontecimento ou momento, para justificar a opção por elas como protagonistas de seus respectivos folhetins.

"Camila e Taís estão lá porque merecem. A Taís começou muito jovem e vem trilhando um caminho muito respeitável. Com a Camila é a mesma coisa. Ambas passaram por um processo de busca, de muito estudo e dedicação. Lutaram muito por esse espaço e têm méritos", coloca ele.

Com um vasto currículo na televisão brasileira, a atriz Chica Xavier celebra essa ocasião nas produções da emissora. "Estou agradecendo a Deus por poder assistir a isso com saúde e lucidez. Estou com 77 anos e, sinceramente, não esperava que duas atrizes negras protagonizassem novelas simultaneamente. Estou muito feliz com esse momento", exalta Chica que, em todos os anos de carreira e a diversidade de personagens que já interpretou, afirma nunca ter se imaginado interpretando uma protagonista.

A atriz também ressalta a questão do estereótipo do negro, até mesmo por sua própria experiência em interpretar personagens estereotipados. "São situações que temos que enfrentar. Foram poucas as ocasiões em que interpretei personagens que não eram escravas, faxineiras, entre outros. A Taís, interpretando uma personagem assim, arrogante e rica, penso que pode acabar com esse estereótipo geralmente atribuído aos negros. Isso é muito importante".


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