quinta-feira, 20 de agosto de 2009

LUIZ GAMA, ADVOGADO EMÉRITO

LUIZ GAMA, ADVOGADO EMÉRITO

Fábio Konder Comparato*

“Será sempre a honra do Instituto dos Advogados”, escreveu Joaquim Nabuco,[1] “poder dizer que a série dos seus primeiros presidentes [...], Montezuma, Carvalho Moreira, Caetano Alberto Soares, Urbano Pessoa, Perdigão Malheiros, quando ainda fora não se tratava da emancipação, foi toda de abolicionistas. Numa época em que o princípio da escravidão era acatado por todos como um mistério sagrado, aqueles nomes representam o protesto solitário do Direito”.

Vossa Excelência, Sr. Presidente Henrique Cláudio Maués, retoma hoje a boa tradição desta Casa, ao apresentar publicamente a Medalha Luiz Gonzaga Pinto da Gama, criada nesta gestão com desenho de autoria do Arquiteto Oscar Niemeyer.

A nobreza de uma profissão define-se pelo seu objeto. Em momento histórico no qual a advocacia, contaminada pelo espírito capitalista, degenera sempre mais em atividade empresarial, é justo e necessário lembrar a figura ímpar de Luiz Gonzaga Pinto da Gama.

Vendido pelo pai como escravo quando tinha dez anos, analfabeto até os dezessete, aprendeu Direito como autodidata, e acabou por consagrar os melhores anos de sua vida à libertação de escravos pela via judicial. Em menos de quinze anos de atuação no foro, logrou livrar do cativeiro mais de cinco centenas de seres humanos,[2] feito sem similar na história mundial da advocacia.

Esse causídico fora do comum, porém, jamais obteve o diploma de bacharel em Direito. Bem que, após servir durante seis anos como cabo da Força Pública da Província de São Paulo, tentou ingressar na histórica Academia de Direito do Largo de São Francisco. Devido à sua condição étnica, porém, a estudantada o repeliu com “dichotes lorpas”, como escreveu seu grande amigo Raul Pompéia. A ironia da História é que Luiz Gama, no final da vida, acabou por partilhar seu escritório de advocacia com dois ilustres catedráticos da Faculdade cujo ingresso lhe fora recusado: os doutores Januário Pinto Ferraz e Dino Bueno.

Para apreciar, em sua justa medida, essa figura de advogado exemplar, nada melhor do que recorrer ao modelo clássico.

No De Oratore, tratado sobre a arte oratória, ou capacidade de convencer pela palavra oral, na tribuna política ou no foro, Cícero assinala as qualidades pessoais requeridas para o desempenho dessa arte, e põe em relevo os princípios fundamentais que a regem. Como sempre, de acordo com o seu estilo consagrado, tanto as qualidades, quanto os princípios, são em número de três.

Comecemos pelas qualidades pessoais do bom orador judicial. Cícero fala em acumen, que poderíamos traduzir por argúcia ou agudeza de espírito; ratio, vale dizer, habilidade racional no argumentar; e diligentia, isto é, zelo ou aplicação constante (II, 147/148). Sublinha que tais qualidades, fruto de um esforço da vontade, pressupõem obviamente o ingenium, o talento natural do grande orador. Mas observa que, sem uma constante diligência ou zelo esforçado, o engenho retórico inato jamais chegará a manifestar-se.

Pois bem, em Luiz Gama encontramos a demonstração acabada da advertência feita pelo grande romano sobre a importância sobrelevante do zelo ou aplicação pessoal, nessa matéria.

Com efeito, sem desenvolver uma extremada diligência, como poderia alguém, analfabeto até os dezessete anos e escravo até os dezoito, alcançar, pouco mais de dez anos depois, um apreciável conhecimento da ciência do Direito, sobre o qual soube assentar um completo domínio da arte advocatícia? Não é difícil imaginar o tempo considerável, noites a dentro, que o jovem amanuense da Secretaria de Polícia da Província de São Paulo consagrou à sua instrução por meio da leitura solitária, a fim de poder se ombrear, na condição de solicitador provisionado, com os mais notáveis advogados do foro paulista.

No tocante aos princípios fundamentais da arte oratória, Cícero enumera o probare, ou seja, a capacidade de provar a verdade do que se afirma; o conciliare, vale dizer, a arte de atrair ou granjear a simpatia daqueles a quem o orador se dirige; e o movere, isto é, a destreza em suscitar nos ouvintes a justa emoção para o caso (De Oratore, II, 15).

Quanto à comprovação da verdade dos fatos alegados, os argumentos classificam-se, nos processos judiciais, como se sabe, em duas espécies: razões de direito e provas de fatos.

Entre as razões jurídicas avulta a norma escrita, o direito positivo.

Sucede que, entre nós, máxime durante o período imperial, sempre houve uma nítida separação entre o direito oficial e o não oficial. O direito oficial é o que se apresenta como ordenamento civilizado, a ser exibido com orgulho aos estrangeiros e venerado liturgicamente por doutores e magistrados. Já o direito não oficial, embora sub-reptício, é o efetivamente aplicado, porque conforme aos costumes tradicionais e ao quadro de valores das classes dominantes.

O direito oficial brasileiro tem sido, ao longo dos séculos, algo semelhante àquilo que os franceses denominam um trompe l’oeil; ou seja, uma pintura cujos artifícios de perspectiva produzem, nos que a contemplam, uma ilusão óptica de relevo.

A Constituição de 1824, por exemplo, declarou “desde já abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (art. 179, XIX).

Em 1830, porém, foi promulgado o Código Criminal, que previu a aplicação da pena de galés, a qual, conforme o disposto em seu art. 44, “sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o delito, à disposição do Governo”. Escusa dizer que essa espécie de penalidade, ao que parece considerada não cruel, só se aplicava de fato aos escravos.

E havia mais. Apesar da expressa proibição constitucional, os escravos foram, até às vésperas da abolição, marcados com ferro em brasa, e regularmente sujeitos à pena de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o máximo de 50 (cinquenta) açoites por dia. Mas essa disposição legal, como reportam os cronistas da época, nunca foi respeitada. Era comum o pobre diabo sofrer até duzentas chibatadas diárias; sem falar dos castigos mutilatórios, como todos os dentes quebrados, dedos decepados, seios furados.

Diante desse quadro jurídico abominável, Luiz Gama soube atuar com dignidade e destreza. Adversário implacável da escravidão, condenando-a a todo tempo e sem apelo, na imprensa e na tribuna livre, enquanto advogado sempre usou com firmeza do direito oficial favorável à liberdade. Teve a argúcia – aquela acumen de que falou Cícero – de interpretar estritamente os textos legais em seus devidos termos, denunciando a impostura solene de doutores e magistrados, que defendiam o direito não oficial com argumentos de falsa erudição.

Um belo exemplo desse bom combate pela justa legalidade foi dado por Gama a respeito do tráfico negreiro.

Um alvará de 26 de janeiro de 1818, baixado pelo rei português ainda no Brasil, em cumprimento a um tratado celebrado com a Inglaterra, determinou a proibição do tráfico, sob pena de perdimento dos escravos, os quais “imediatamente ficarão libertos”. Tornado o país independente, firmou-se com a Inglaterra nova convenção, em 1826, pela qual o tráfico que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Durante a Regência, sob pressão dos ingleses, a proibição foi reiterada pela lei de 7 de novembro de 1831.

Mas o direito oficial permaneceu letra morta, continuando a vigorar tão-só “para inglês ver”. Como lembrou Luiz Gama em artigo de jornal, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério; eram os africanos, sem embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos!...”[3]

Diante desse comportamento indigno dos sucessivos governos brasileiros, e tendo em vista a iminente expiração do tratado de 1826, o Parlamento britânico votou em 1845 o bill Aberdeen, o qual, reiterando a qualificação do tráfico negreiro como pirataria, autorizou o apresamento dos tumbeiros e de sua carga, até mesmo em águas brasileiras, com o julgamento da tripulação pelas Cortes do Almirantado, em Londres.

Viu-se, portanto, o governo imperial constrangido a abandonar sua política de vistas grossas em relação ao comércio de seres humanos. Levou, porém, um lustro até fazer votar, em 4 de outubro de 1850, e aplicar efetivamente, a Lei Eusébio de Queiroz, que impunha o julgamento dos traficantes e compradores de africanos como contrabandistas.

Esse diploma legal, todavia, determinava expressamente a libertação apenas dos africanos boçais, isto é, daqueles que não sabiam exprimir-se na língua portuguesa.

Diante disso, alguns tribunais e certos jurisconsultos, entre os quais sobressaía o Conselheiro Nabuco de Araújo, sustentaram que a nova lei havia revogado as de 1818 e de 1831; o que implicava manter na escravidão cerca de um milhão de africanos ou seus descendentes, desembarcados criminosamente no Brasil há vários anos, e que haviam aprendido a falar o nosso idioma.

Contra essa interpretação supinamente tendenciosa, Gama lembrou o “princípio invariável de direito”, a “regra impreterível de hermenêutica”, de que “as leis novas, quando são consecutivas e curam de fatos anteriormente previstos, interpretam-se doutrinalmente por disposições semelhantes, consagradas nas leis antigas.” Sublinhou, mais, que o legislador de 1831 não podia revogar o alvará de 1818, dado que ele fora editado em cumprimento de um tratado celebrado entre Portugal e a Inglaterra, e que “os tratados, enquanto vigoram, por tácita convenção, constituem leis para o mundo civilizado.” E concluiu:

“A lei de 1831 é complementar da de 1818; a de 1850, pela mesma razão, prende-se intimamente às anteriores; sem exclusão da primeira, refere-se expressamente à segunda, é a causa imediata da sua existência; é, para dizê-lo em uma só expressão técnica, relativamente às duas anteriores – uma lei regulamentar.”[4]

Até aí, no tocante ao princípio do probare, isto é, a comprovação pelo advogado da verdade do que alega, conforme a lição de Cícero no De Oratore.

Já quanto ao outro princípio da arte retórica, invocado pelo grande romano, qual seja, o de procurar o advogado conciliar as boas graças do julgador, Luiz Gama jamais lhe atribuiu grande importância. Ele sempre esteve ciente de que os magistrados do seu tempo pertenciam, se não por nascimento, pelo menos sob o aspecto da mentalidade, à classe dominante dos grandes proprietários rurais; e que, nessas condições, o seu apoio incondicional à escravidão não encontraria nenhum obstáculo nos textos legais, ainda que perfeitamente unívocos.

Foi por isso que optou, corajosamente, por outra via de atuação. Em lugar de se curvar diante do obscurantismo da toga, resolveu afrontá-lo.

No atual Estatuto da Advocacia preceitua-se que “nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão” (art. 31, § 2º). Luiz Gama foi o primeiro, entre nós, a cumprir com destemor esse dever indeclinável do advogado. Abriu assim o caminho que veio a ser trilhado, durante o período do infame Tribunal de Segurança Nacional da ditadura getulista, pelas figuras exemplares de Sobral Pinto, Mário Bulhões Pedreira e Evandro Lins e Silva.

Já antes de obter a provisão de solicitador, em 1869, Luiz Gama empenhou-se denodadamente em proteger os negros ilicitamente tidos como escravos. O que lhe valeu a exoneração do cargo público que ocupava na Secretaria de Polícia de São Paulo.

Logo que expedida a provisão de solicitador, fez publicar em jornais de São Paulo o seguinte anúncio:

“O abaixo assinado aceita, para sustentar gratuitamente perante os tribunais, todas as causas de liberdade que os interessados lhe quiserem confiar.”[5]

Em novembro de 1869, um escravo fugido de Minas Gerais, de nome Jacinto, bateu às portas de Gama. Alegava ter sido desembarcado no Brasil em 1848; portanto, dezessete anos após a promulgação da mencionada Lei de 7 de novembro de 1831, que considerava livres todos os africanos entrados no território nacional a partir da data de sua promulgação.

Luiz Gama ajuizou, perante o juiz municipal suplente Antonio Pinto do Rego Freitas, uma ação declaratória de liberdade de Jacinto, requerendo preliminarmente o procedimento de praxe do depósito judicial do negro.[6] O magistrado por duas vezes declarou-se incompetente, alegando que a demanda devia ser proposta na comarca do domicílio do senhor.

Indignado com essa atitude protelatória, típica do juiz que não tem coragem de julgar o mérito da demanda, Gama não teve dúvidas. Tomou da pena e peticionou novamente nos autos, declarando o despacho judicial “ofensivo da lei”. Requereu em consequência, pela terceira vez, que o juiz cumprisse o seu “rigoroso dever” e reformasse o “fútil despacho”, porque ele, mandatário, “tinha coragem e moralidade” para denunciar o “estúpido emperramento” do processo.[7]

A reação não se fez esperar. Luiz Gama foi submetido a processo-crime por injúria. Defendeu-se pessoalmente, e foi absolvido pela unanimidade dos jurados.

Ao mesmo tempo, fez questão de expor, em artigo de jornal, o procedimento caviloso das autoridades para pôr fim à demanda ajuizada pelo negro Jacinto:

“Enquanto eu sustentava, com tenacidade e energia, o direito desse infeliz, o Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia, por misterioso acordo com o Presidente [da Província], expedia ordem secreta ao Exmo. Sr. Conselheiro Delegado da Capital, para mandar apreender clandestinamente o desgraçado africano, e entregá-lo manietado ao reclamante, suposto senhor, a fim de conduzi-lo para a província de Minas, por dois expressos postos à espera nas cercanias desta cidade!...

E ousa afirmar o Exmo. Sr. Chefe de Polícia que eu dou a escravos proteção ilegal!...

Sua Excelência sofre das vistas, e tem a simplicidade de crer que o mundo é composto de cegos.”[8]

Como se percebe, não é de hoje, neste país, o costume da prática de atos ilegais em sigilo. Ele deita raízes em inveterada tradição.

O próprio Luiz Gama conta um episódio, ocorrido em meados da década de 50 do século XIX, que ilustra à perfeição a supramencionada separação entre o direito oficial e o não oficial.

Àquela época, veio a São Paulo um fazendeiro do interior da província, trazendo cartas de recomendação de chefes políticos, em busca de dois escravos fugidos, os quais, por serem boçais, isto é, incapazes de se exprimir no idioma pátrio, haviam sido apreendidos por um inspetor de quarteirão e declarados livres, em aplicação da Lei Euzébio de Queiroz.

Nada tendo conseguido junto às autoridades locais, o fazendeiro seguiu então para a Corte, e lá entrevistou-se com o Ministro da Justiça, o respeitado Senador e Conselheiro Nabuco de Araújo. Pouco tempo depois, o Presidente da Província recebia um “aviso-confidencial” do Ministro, onde Sua Excelência reconhecia que os negros haviam sido “muito bem apreendidos e declarados livres pelo delegado de polícia [o superior hierárquico de Luiz Gama], como africanos ilegalmente importados no Império”.

Mas, prosseguiu o Ministro:

“Cumpre, porém, considerar que esse fato, nas atuais circunstâncias do país, é de grande perigo e gravidade; põe em sobressalto os lavradores, pode acarretar o abalo dos seus créditos e vir a ser a causa, pela sua reprodução, de incalculáveis prejuízos e abalo da ordem pública.

A lei foi estritamente cumprida; há, porém, grandes interesses de ordem superior que não podem ser olvidados e que devem de preferência ser considerados.

Se esses pretos desaparecerem do estabelecimento em que se acham, sem o menor prejuízo do bom conceito das autoridades e sem a sua responsabilidade, que mal daí resultará?”[9]

Para infelicidade do Ministro, o “aviso confidencial” caiu nas mãos do secretário do Delegado de Polícia da capital paulista, um certo Luiz Gonzaga Pinto da Gama.

Consideremos agora, por derradeiro, o terceiro princípio da arte oratória ou advocatícia, recomendado por Cícero: o movere, ou seja, o dom de comover ou emocionar o auditório, ou os juízes.

Ainda aí, Luiz Gama revelou o seu inexcedível talento de causídico. Tal como no concernente ao conciliare, ele percebeu que a classe dominante brasileira era, à época, rigorosamente impermeável a qualquer sentimento de comiseração pelos negros escravos; mas Gama também sabia que todo juiz, em maior ou menor grau, teme a repercussão de suas decisões na opinião pública. A solução, por conseguinte, era clara: impunha-se expor publicamente os horrores do sistema servil. Foi o que fez, sem cessar, até o fim de sua vida, consagrando-se à atividade colateral de jornalista.

O assunto preferencial desses embates foi a alforria, forçada ou voluntária, de escravos, quando contestada pelos ex-senhores ou seus herdeiros.

Luiz Gama teve oportunidade de ajuizar várias ações contra tentativas de reescravização de alforriados, bem como de denunciá-las na imprensa. Assim foi, por exemplo, em 1869, em relação ao Bispo de São Paulo, D. Antonio Joaquim de Mello – “conde romano, do Conselho de S. Majestade o Imperador”, lembrava Gama. O prelado, havendo manumitido 7 escravos, resolveu vendê-los, anos depois, como cativos.[10]

Mas na maior parte dos casos, a controvérsia estabelecia-se quanto à interpretação de cláusula testamentária, pela qual se estipulava que, na abertura da sucessão, determinado escravo ficaria livre, sob a condição de servir, durante certo tempo, a um herdeiro do de cujus.

Como sabido, em histórica sessão deste Instituto, realizada em 1857, discutiu-se a questão de saber se os filhos de escravas, libertadas sob a condição de prestarem serviços durante certo tempo, deveriam ser tidos como pessoas livres. A maioria dos membros do Instituto assim o entendeu, contra a opinião do seu Presidente, Augusto Teixeira de Freitas, o qual, inconformado, renunciou ao cargo.

Aos 18 de outubro de 1869, faleceu na capital paulista Dª. Maria Carlota de Oliveira Gomes, deixando testamento no qual constava cláusula de alforria de seu escravo Narciso, com a condição de prestar serviços durante dez anos à filha da testadora; serviços esses avaliados em 200 mil réis.[11] Imediatamente, a associação emancipadora de escravos Fraternização coletou a quantia entre os seus associados e exibiu o dinheiro para a alforria, perante a Provedoria de Escravos. O Provedor determinou a intimação dos interessados para que se pronunciassem a respeito, notadamente o consorte da herdeira, Rafael Tobias de Aguiar, membro eminente do patriciado paulista.

O que sucedeu em seguida foi dado a público por Luiz Gama, em artigo publicado no Correio Paulistano:

“Hoje, pelas 6 horas da manhã, o Sr. Dr. Rafael Tobias de Aguiar veio à cidade, mandou chamar a sua casa, na travessa de Santa Tereza, o pardo Narciso, que trabalha fora a jornal, mandou tosquiar-lhe os cabelos e aplicar-lhe seis dúzias de palmatoadas para curá-lo da mania emancipadora de que estava acometido!...

Não comentarei este fato. Deixo ao Sr. Rafael Tobias a impunidade deste delito e a justa admiração de seus concidadãos. Apenas acrescentarei que o Sr. Rafael Tobias de Aguiar pertence a uma das principais famílias de São Paulo; é nobre e rico; membro proeminente do Partido Liberal; formado em ciências sociais e jurídicas; já exerceu os cargos de deputado e de juiz municipal [...].

Cidadãos conspícuos de tão elevada hierarquia devem ser recomendados à consideração do país.”[12]

Furioso, o personagem ilustre respondeu, também pela imprensa:

“Provoco ao Sr. Luiz Gama e aos seus protetores para que chamem sobre mim a mão da justiça para o castigo que apliquei ao escravo Narciso.

Sou tudo o que o Sr. Luiz Gama em seu artigo diz que sou, e até liberal; mas não pertenço ao Partido Liberal da época, que põe à margem aqueles que com leite materno beberam idéias liberais.

Tenho mais escravos e hei de castigá-los sempre que merecerem. E convido ao Sr. Luiz Gama para em algumas destas ocasiões vir à minha casa apadrinhá-los.”[13]

Luiz Gama conseguiu o que queria: o assunto já não ficaria sepultado nos autos de um processo forense, fora do conhecimento geral. Declarou, pois, em réplica no mesmo Correio Paulistano:

“Ao pardo Narciso (a ele somente) cabe sindicar a ofensa de que foi vítima; ele que o faça se o quiser. Eu apenas sou e serei o defensor dos seus conculcados direitos.

Eu não mamei liberdade com leite.

Não aceito o convite que faz-me o senhor Dr. Rafael Tobias, de ir à sua casa, para assistir aos castigos que ele costuma infligir aos seus cativos. Declino de mim peremptoriamente tão elevada honra. Eu não sou fidalgo; não tenho instintos de carrasco.”[14]

Dessa trajetória de vida límpida e combativa, nós outros, advogados do século XXI, devemos tirar a indispensável lição ética.

Vivemos, como disse ao abrir este discurso, momento sombrio da história da advocacia, em que a nossa nobre profissão descamba, sempre mais, para a mercantilidade. Vemos multiplicarem-se as empresas de advogados, com filiais no país e no estrangeiro, cujo objeto, segundo os clássicos padrões da economia capitalista, consiste na máxima produção de lucros, para o constante acréscimo patrimonial. Essas macro-sociedades mercantis, na verdade, nada tem a ver com a prestação de serviço público e o exercício de função social, atributos essenciais da advocacia, como declarado em nosso Estatuto (art. 2º, § 1º).

Ao contrário, nesse contexto profissional deplorável, à semelhança do que ocorria na época da economia escravista, até mesmo as liberdades públicas passam a ser avaliadas economicamente. Kant fez questão de frisar que a pessoa humana, ao contrário das coisas, não tem preço, tem dignidade. De onde podemos concluir, em boa lógica, que atuar profissionalmente como advogado em favor dos ricos e poderosos, para sustentar a exploração dos ignorantes, fracos e pobres, é uma conspícua indignidade.

Dir-se-á que hoje, pelo menos, já não temos oficialmente, tal como na época de Luiz Gama, o aviltante instituto da escravidão. Mas, ouso perguntar: porventura, neste país, todos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos, como preceitua a Declaração Universal de Direitos Humanos?

De acordo com os últimos dados divulgados pelas Nações Unidas, o Brasil é o segundo país de pior distribuição de renda no mundo, superado nessa competição às avessas tão-só pela Serra Leoa. Segundo informes estatísticos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, da Presidência da República, 1% dos brasileiros mais ricos fruem de renda equivalente àquela partilhada pela metade de toda a nossa população.

Tal situação não é recente, como todos sabem. Mas já nos habituamos de longa data a tolerá-la, como uma espécie de fatalidade. Para quem não sofre das vistas nem tem a simplicidade de acreditar que o mundo é composto de cegos, como se referiu Luiz Gama ao Chefe de Polícia da Capital paulista, é evidente que essa extrema desigualdade social, já de há muito absorvida pela opinião pública, está na origem da completa disfunção dos mecanismos institucionais do nosso regime político.

A Constituição Federal abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. A realidade nacional, porém, desmente cabalmente tais qualificativos: o nosso País está longe de ser uma República, uma Democracia e um Estado de Direito.

Não é República, porque até hoje a famoso juízo de Frei Vicente do Salvador, proferido na primeira metade do século XVII, permanece em grande parte válido: “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.[15]

Não é um autêntico Estado de Direito, porque a Constituição e as leis não se aplicam por igual a todos os brasileiros. Os homens no poder, seus familiares e amigos estão sempre acima delas. Nossas Constituições declaram, invariavelmente, que todos são iguais perante a lei. Mas todos sabem que entre nós os poderosos, tal como proclamou o ditador suíno em Animal Farm, de George Orwell, são sempre mais iguais do que os outros.

De um verdadeira Democracia, enfim, nosso Estado encontra-se ainda muito longe.

A Constituição Federal declara que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único).

Como não perceber, todavia, que essa proclamação constitucional, à semelhança das leis repressoras do tráfico negreiro da época de Luiz Gama, é de índole puramente retórica, pois o povo brasileiro jamais esteve na posse de uma autêntica soberania?

Com efeito, que soberano é esse, destituído do poder de aprovar ou rejeitar as Constituições feitas em seu nome e por sua conta? Será preciso lembrar que até hoje, Constituição alguma, neste País, foi submetida ao referendo popular? Será necessário acrescentar que o povo, dito soberano, não tem nem mesmo o poder de iniciativa em matéria de emendas constitucionais, sem falar na possibilidade de ratificá-las ou recusá-las?

Que soberano é esse, cuja representação na Câmara dos Deputados é feita em parcelas estaduais de enorme desproporcionalidade, e por meio de um sistema eleitoral totalmente incompreensível para os eleitores? Como ocultar o absurdo de se dar ao Senado poder político maior que o da Câmara, quando ele não representa a unidade do povo soberano, mas a divisão federal do Estado em unidades artificialmente autônomas?

Que soberano é esse, proibido de manifestar sua vontade política por meio de referendos ou plebiscitos, sem a prévia autorização dos representantes que elegeu?

Que soberano é esse, desprovido do direito próprio de todo mandante, até mesmo nas relações de direito privado, de revogar o mandato outorgado e destituir o mandatário?

Escusa advertir que não tenho a menor intenção de equiparar esse medíocre status civitatis do nosso povo com a vera e própria escravidão. Mas quem ousará negar que ele corresponde, em tudo e por tudo, à manutenção da massa do povo em um estado de permanente menoridade absoluta?

A tarefa urgente que se impõe, portanto, à nossa categoria profissional, no presente momento histórico, não é outra, senão a denúncia aberta dessa ficção oficial de República, Democracia e Estado de Direito, ficção que mal esconde a realidade do regime oligárquico de sempre.

Meus caros colegas:

Em respeito à memória sagrada de Luiz Gama, e seguindo o seu luminoso exemplo, nós outros, Advogados do século XXI, temos o dever maior de nos levantar desde logo, nos quatro cantos do País, para defender, com toda a vibração d’alma, a dignidade do povo brasileiro.

Rio de Janeiro, 12 de agosto de 2009


* Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, titular da Medalha Rui Barbosa da Ordem dos Advogados do Brasil e da Medalha Teixeira de Freitas do Instituto dos Advogados Brasileiros.

[1] in Um Estadista do Império, Livro V, II.

[2] Cf. Carta por ele endereçada a Lúcio de Mendonça em 25 de julho de 1880, citada em Sud Menucci, O Precursor do Abolicionismo no Brasil (Luiz Gama), 1938, Companhia Editora Nacional, coleção Brasiliana, vol. 119, p. 26.

[3] Citado por Sud Menucci, op. cit., p. 171.

[4] Artigo publicado no jornal A Província de São Paulo em 18 de dezembro de 1880, e reproduzido em Sud Menucci, op.cit., pp. 165 e ss.

[5] Cf. Elciene Azevedo, Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial Cidade de São Paulo, Editora Unicamp, 1999, p. 193.

[6] Cf. Perdigão Malheiros, A Escravidão no Brasil, edição original em 1866, § 144.

[7] Cf. Elciene Azevedo, op. cit., p. 112.

[8] Citado por Elciene Azevedo, op. cit., p. 114.

[9] Citado por Sud Menucci, op. cit., pp. 184/185.

[10] Cf. Elciene Azevedo, op. cit., pp. 197/198.

[11] À época, refere Perdigão Malheiros, op. cit., § 48, a venda, troca e doação in solutum de escravos, até o valor de 200$000, podia fazer-se sem escritura pública.

[12] Cf. Elciene Azevedo, op. cit., pp. 207/208.

[13] Cf. Elciene Azevedo, op. cit., p. 208.

[14] Idem, ibidem, p. 209.

[15] História do Brasil, capítulo 2º.

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