segunda-feira, 15 de junho de 2009

Reparação, escravidão e leis raciais

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Opinião - Página 7

JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES
A ideia de que a população negra tem direito a uma reparação histórica tem sido usada para legitimar a racialização da sociedade brasileira. Há ao menos três aspectos questionáveis nessa reivindicação que, saliento, vem de ONGs e ativistas e não de nosso povo. Em primeiro lugar, o problema da designação “população negra”. O IBGE solicita aos indivíduos que se autoidentifiquem segundo uma das seguintes denominações: preto (7,4%), branco (49,4%), pardo (42,3%), amarelo (0,7%) ou indígena (0,1%). Isso permite ao Instituto quantificar as respostas, pois estudos já mostraram que, se deixadas livres, as pessoas escolheriam coisas como moreno-claro, clarinho, jambo, marrom-bombom e outras dezenas de expressões. Esse talvez seja o maior obstáculo à racialização do Brasil: os brasileiros não têm uma consciência racial. Diante disso, os racialistas tomaram a si a tarefa de criá-la, juntando capciosamente a população preta e a parda sob a designação de “negro”, manipulando estatísticas, disseminando a ideia de que os brancos oprimem os negros etc. Quando confrontados com a dificuldade de saber quem é negro, respondem que a polícia sabe. A demagogia é uma espécie de ato falho, pois o que pretendem mesmo é confiar o problema ao Estado, à polícia. Outro aspecto questionável da ideia de reparação é que, abolida a escravidão em 1888, não resta vivo nenhum escravo. Os racialistas resolvem esse problema apresentando a conta aos supostos descendentes dos senhores, os “brancos”. É uma ideia perversa, pois puniria indivíduos que nenhuma responsabilidade têm pelas atrocidades do passado. Além disso, não guarda nenhuma relação de coerência com a nossa história — esse o último aspecto a ser considerado. Todo aluno de graduação em História aprende que a escravidão, no Brasil, não estava baseada na ideia moderna de raça e que o mercado de escravos sempre esteve aberto à participação de pessoas de todas as cores, africanos libertos incluídos. Ainda na década de 1870, Joaquim Nabuco lamentava o que chamava de “o poder moral da escravidão”, isto é, a sem-cerimônia com que ela era vista por tanta gente como uma coisa natural. E explicava que isso acontecia porque qualquer um podia comprar um escravo: homem, mulher, nacional, estrangeiro, preto, branco, rico e remediado. A verdade é que nem preto era sinônimo de escravo, nem branco de senhor. Observe-se os números estimados a seguir: 4 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil, enquanto 400 mil foram levados para os EUA; em 1872, havia aqui 1 milhão e meio de escravos e lá, pouco antes da guerra civil, 4 milhões de cativos. Isso significa que no Brasil a fronteira entre livres e escravos era muito mais porosa. Como lamentava um presidente de província em meado do século XIX, as pessoas tinham o “costume” de alforriar os escravos. Isso se refletiu no nosso perfil cromático da população livre. Na primeira metade daquele século, apenas 5% da população livre do Sul dos EUA eram “de cor”, enquanto que entre nós chegava a 50%. E como vivia essa metade da população? Estudos demográficos mostram que do mesmo jeito que seus equivalentes “sem cor”. Trabalhavam, habitavam, casavam e tudo o mais segundo os mesmos padrões, inclusive no que diz respeito às chances de obter um escravo. Censos do final do século XVIII indicam que 1/3 da classe senhorial de Campos dos Goytacazes era formado por pessoas de cor. Isso se repetia na Bahia e em Pernambuco. Em Sabará, acreditem, por volta de 1830, 43% dos domicílios de pessoas de cor possuíam escravos. Além de cultivar certa cegueira cromática, o Brasil cedo se caracterizou também pela intensa miscigenação. Os racialistas dizem que foi fruto da violência sexual. Tolice. É claro que houve senhores que estupraram escravas — um senhor, de qualquer cor, podia tudo. Mas cedo surgiu uma população mestiça, pobre e livre. Há quem ache que nossa miscigenação é um pecado a ser confessado, reparado, consertado. Não é. É fruto da escolha de milhares e milhares de indivíduos de sucessivas gerações. Bem, mas se nosso passado correspondesse exatamente à caricatura repetida por aí? Valeria a pena enfrentá-lo criando leis raciais que vão dividir os brasileiros em negros e brancos, com direitos diferentes? A resposta, obviamente, é não. Não vale a pena nos transformarmos numa sociedade oficialmente racista, já basta termos que conviver com uns e outros racistas, de todas as cores, os quais, se Deus quiser, podem e devem ser educados e trazidos à razão. Ou punidos. JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). E-mail: joserobertogoes@....

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