terça-feira, 27 de outubro de 2009

Terceiro Mundo, quando convém

domingo, 25 de outubro de 2009, 01:14 | Versão Impressa

Terceiro Mundo, quando convém

Mas autoimagem favorita deixa o Brasil profundamente confuso

Hans Ulrich Gumbrecht*

Pouquíssimos lugares no mundo, imagino, não ficaram felizes com a eleição do Brasil para sede dos dois próximos megaeventos atléticos, a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Acredito até que as nações que foram rivais do Brasil nessas competições possam facilmente viver com suas derrotas - pois parece ser o sintoma de um altíssimo grau de desenvolvimento social que segmentos crescentes da população prefiram calma e segurança à excitação, à visibilidade internacional e ao orgulho nacional proporcionados pela Copa do Mundo e a Olimpíada. Visto dessa perspectiva, o Brasil é muito mais patriótico à moda antiga que Estados Unidos, Japão e até mesmo Espanha. E isso me agrada bastante.


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Mas embora amplos segmentos das sociedades americana, japonesa ou espanhola possam estar aliviados por evitar o estresse diário decorrente desses megaeventos, muitas outras nações ficaram num ânimo comemorativo quando o Brasil, aparente azarão, foi escolhido: não foi novamente uma cidade europeia (após Londres em 2012 e Barcelona em 1992); não a muito rica e aparentemente consumista Tóquio; e, sobretudo, não foi Chicago e os Estados Unidos, que, a despeito de seu presidente afro-americano internacionalmente muito popular, continuam fazendo o papel de bode expiatório do pacifismo internacional e de qualquer outro tipo de autocrítica ocidental. Quem, por contraste, não adoraria o Brasil, lar do samba e do mais exuberante carnaval; o Brasil, a nação dos mais habilidosos e elegantes jogadores de futebol; o Brasil que afirma nunca ter sido racista e cujo "rei" secular é, aliás, um astro negro do futebol do passado; o outrora conflagrado Brasil, a nação que reconquistou a liberdade e valores democráticos das trevas de um governo militar repressivo.

Todos no planeta capazes de ler ou ao menos assistir TV, incluindo os que não estão muito seguros de encontrar o Brasil num mapa do mundo, estão apaixonados por essa imagem do Brasil - que, é claro, é a imagem de um país do Terceiro Mundo. Os problemas só surgem do fato de que ninguém fica mais contente de se fingir de país do Terceiro Mundo que a própria classe média brasileira e os próprios políticos brasileiros. Ou, mais precisamente: embora os intelectuais brasileiros e a classe média à qual pertencem cultivem uma pretensão apaixonada por se apresentarem como pobres e subdesenvolvidos, rejeitam enfaticamente, ao mesmo tempo, todo estrangeiro que queira vê-los dessa mesma perspectiva.

Felizmente o Brasil está profundamente confuso sobre sua autoimagem favorita, pelo menos de uma maneira. Pois se o país fosse terceiro-mundista de fato, ele não teria o poder financeiro e a infraestrutura tecnológica requeridas para gerir o Campeonato Mundial de Futebol e a Olimpíada com um intervalo de dois anos. Mas qual é o problema, então, dessa confusão - além de sua notável estranheza? O problema é a complacência. Durante as últimas décadas, o Brasil e muitos brasileiros desenvolveram um duplo padrão sobre o próprio status dentro da comunidade internacional. Sempre que for conveniente, para obter vantagens econômicas ou políticas, o Brasil insiste justamente em seu papel como país desenvolvido e altamente industrializado; mas, se for conveniente permanecer cego ante certos problemas internos, os brasileiros e seus políticos são perfeitamente capazes de condescender num tipo de identidade terceiro-mundista.

Não há hoje nada de mais terceiro-mundista certamente que a tolerância do Estado ao crime organizado - e os eventos no Rio de Janeiro, há apenas uma semana, mostraram que, em condições normais, a tolerância ao crime organizado ainda é em muito o padrão no Brasil. Pois a violência que explodiu nas favelas da zona norte do Rio não foi uma violência contra o Estado, para não falar de uma violência como reação a um Estado opressor; foi uma violência respingando de uma guerra civil em curso entre duas grandes organizações criminosas, uma guerra civil que está sendo ativamente ignorada pelo governo e pela mídia enquanto permanecer confinada a certas fronteiras territoriais. Em outras palavras: o Executivo e o Judiciário do Brasil - e, nesse sentido foi irônico que o presidente brasileiro reagisse aos eventos do Rio na presença de seu congênere colombiano. O Estado brasileiro efetivamente cedeu parte do território nacional a organizações criminosas com as quais mantém relações extraoficiais baseadas em negociações similares aos acordos e negociações entre Estados soberanos.

Para um país de Terceiro Mundo essa é uma situação bastante normal, e por essa mesma razão a autoimagem favorita dos brasileiros permite que o eleitorado e o governo permaneçam deliberadamente cegos quando se trata da violência interna factualmente tolerada. Essa situação será um perigo real que impedirá centenas de milhares de espectadores de virem ao Brasil para os megaeventos atléticos? Não creio. Prevejo e espero que a indústria de turismo nacional consiga efetivamente produzir a enorme receita que já está prevendo. Isso porque o presidente Lula e seus ministros estão provavelmente corretos quando apontam para os Jogos Pan-Americanos no Rio, há dois anos, quando essas favelas de alto risco foram temporariamente ocupadas - mantidas calmas com sucesso - por forças militares. Ninguém perguntou, é claro, o que a ocupação significava para a grande maioria daqueles habitantes de favela que não estão envolvidos no crime organizado.

Além dessa questão, a de quem está realmente pagando o preço existencial para o Brasil estar na berlinda internacional, há uma outra questão mais simbólica. Durante os séculos da Antiguidade grega e romana, os dias dos Jogos Pan-Helênicos - sobretudo, os dias dos Jogos de Olímpia - eram dias sagrados, dias de trégua geral. A comunidade internacional retornou a essa antiga condição quando suspendeu os Jogos Olímpicos durante a 1ª Guerra Mundial e a 2ª Guerra Mundial, isto é, em 1916, 1940 e 1944. Hoje, essas guerras entre nações se tornaram muito improváveis, por mais que ainda possamos temê-las. Imaginar guerras entre Rússia e Estados Unidos, Estados Unidos e República Popular da China, ou, mais realisticamente, entre Irã e Israel, ainda podem ser pesadelos para nós - mas há instituições poderosas, razões poderosas e, sobretudo, transformações poderosas nos enquadramentos políticos de nossa mente que tornam esses confrontos improváveis. As guerras constantes de hoje não são guerras entre nações, não são guerras que podem ser "declaradas" a um inimigo visível. Elas são antes conflitos permanentes ou entre organizações terroristas e a comunidade internacional de nações ou entre o crime organizado e autoridades de Estados individuais. Se levássemos a sério essa mudança profunda da "guerra" como um fenômeno, a possibilidade de realizar Jogos Olímpicos seria suspensa permanentemente.

Assim, embora o Brasil, de conformidade com sua autoimagem preferida de país do Terceiro Mundo, seja perfeitamente capaz de organizar megaeventos atléticos altamente lucrativos - paralisando temporariamente a guerra interna com o crime organizado -, o verdadeiro desafio seria essa nação tentar e conseguir um autêntico status de Primeiro Mundo mediante o abandono de qualquer política de tolerância. Mais do que à comunidade internacional de turistas de classe média, os políticos brasileiros (em especial aqueles que se afirmam "de esquerda") e a classe média brasileira devem esse esforço à maioria daqueles concidadãos cumpridores da lei que ainda vivem em favelas.

*Professor de literatura na Universidade de Stanford e autor de Elogio da Beleza Atlética (Cia. das Letras)


http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,terceiro-mundo-quando-convem,456051,0.htm

AÇÃO AFIRMATIVA É necessária uma nova Abolição?

Observatório da Imprensa.

AÇÃO AFIRMATIVA
É necessária uma nova Abolição?

Por Muniz Sodré em 27/10/2009

Há uma questão atravessada na garganta de grupos empenhados na defesa das políticas afirmativas da cidadania negra. Trata-se de saber por que os jornalões (nome talvez mais palatável do que "grande mídia impressa") brasileiros não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial. Como bem se sabe, esses jornais vêm dando largo espaço a jornalistas e intelectuais decididos a demonstrar que as ações afirmativas constituem uma nova forma de racismo, já que raça não existe e, ademais, como a população brasileira é predominantemente miscigenada, todos os nossos concidadãos teriam a sua cota de negritude. Logo, não faria qualquer sentido ficar procurando saber quem é negro ou branco para proteger o primeiro.

Foi essa a questão debatida nos dias 14 e 15 de outubro, durante o seminário "Comunicação e Ação Afirmativa: o papel da mídia no debate sobre igualdade racial", realizado na Associação Brasileira de Imprensa por entidades como Comdedine, Cojira e Seppir. É bem sabido que há vozes discordantes das opiniões oficiais dos jornalões, por parte de jornalistas de peso, alguns dos quais pertencentes aos quadros desses mesmos jornais. É o caso de Elio Gaspari, Miriam Leitão e Ancelmo Gois. Estes dois últimos, aliás, foram palestrantes no seminário.

Uma instituição retrógrada

Na mesa sobre "a responsabilidade social da mídia e o debate sobre raça" – que dividi com a jornalista Márcia Neder, da revista Claudia –, comecei afirmando que há certas visibilidades que nos cegam. O sol, por exemplo, se tornado excessivamente visível (olhado de frente), nos impede de enxergar. Mas há também objetos sociais que, se tornados visíveis demais, podem bloquear a visão de quem antes acreditava ver. Parece-me ser este o dilema da cor, do fenótipo escuro, na atualidade brasileira, onde vislumbro um caso de cegueira cognitiva.

De fato, a questão vem sendo tratada como ser pró ou contra o racialismo. A maioria dos favoráveis a propostas como o Estatuto da Igualdade Racial, cotas para universitários etc., lastreia os seus argumentos com as razões do anti-racismo; os desfavoráveis, embora reconhecendo a existência episódica e anacrônica de incidentes racistas, tentam fazer crer que vivemos no melhor dos mundos em termos de conciliação das diferenças étnicas e que seria, portanto, um retrocesso civilizatório racializar a população. Curioso é que esses mesmos argumentos desfavoráveis, sem que seus autores se dêem conta, são racialistas em última análise, ao apelarem para as noções de miscigenação biológica.

Por outro lado, de modo geral, todos se habituaram a pensar na escravidão ora como uma mácula humanitária, ora como um anacronismo, uma instituição retrógrada na história do progresso. Vale, entretanto, apresentar uma opinião de outro matiz, a de Alberto Torres, autor de O Problema Nacional Brasileiro. Foi um dos grandes explicadores do Brasil entre o final do século 19 e início do 20.

A saudade do escravo

Conservador em termos sociais (refratário à urbanização e à industrialização), propugnador de uma República autoritária, Torres revela-se, entretanto, interessante em termos metodológicos e teóricos. Diz em seu livro que "a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu. (...) Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos e fundou toda a produção material que ainda temos".

Torres era, insisto, autoritário e conservador. Gerou epígonos como Oliveira Vianna, esse mesmo que chegou a justificar em sua obra o extermínio do "íncola inútil", isto é, do habitante das regiões empobrecidas do país. Era, entretanto, um conservador diferente: discordava das teses sobre a inferioridade racial do brasileiro, não era racista. Sua frase sobre a escravidão é algo a ser ponderado, principalmente quando cotejada com o dito de Joaquim Nabuco: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (...) Ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância" (Minha Formação).

É célebre essa passagem sobre a memória afetiva da escravidão – a saudade do escravo. Ela é a superfície psicológica do fato histórico-econômico de que as bases da organização nacional foram dadas pelo escravismo. Por isso, vale perguntar que apreensão os brasileiros fazem desse fato, pouco mais de um século depois da Abolição.

Perpétuos cães de guarda

Alguns pontos devem ser considerados:

1. A palavra "apreensão" não diz respeito a concepções intelectuais, e sim, à incorporação emocional ou afetiva do fenômeno em questão. No interior de uma forma social determinada, nós apreendemos por consciência e por hábito o seu ethos, isto é, a sua atmosfera sensível que nos diz, desde a nossa mais tenra infância, o que aceitar e o que rejeitar.

2. A reinterpretação afetiva da "saudade do escravo", que envolve (a) as relações com empregadas domésticas e babás (sucedâneas das amas-de-leite); (b) o afrodescendente como objeto de ciência (para sociólogos e antropólogos); (c) imagens pasteurizadas da cidadania negra na mídia.

Diferentemente da discriminação do Outro ou do racismo puro e simples, a saudade do escravo é algo que se inscreve na forma social predominante como um padrão subconsciente, sem justificativas racionais ou doutrinárias, mas como o sentimento – decorrente de uma forma social ainda não isenta do escravagismo – de que os lugares do socius já foram ancestralmente distribuídos. Cada macaco em seu galho: eu aqui, o outro ali. A cor clara é, desde o nascimento, uma vantagem patrimonial que não deve ser deslocada. Por que mexer com o que se eterniza como natureza?

Nada, portanto, da velha grosseria racista, da velha sentença de "pão, pano e pau" proferida pelo padre Antonil a propósito dos negros. Não há mais lugar histórico para o "pau" desde a Abolição, ou melhor, desde a Lei Caó. O argumento explicitamente racista não leva ninguém a lugar algum no império das tecnologias do self incrementadas pelo mercado e pela mídia.

Mas é imperativo para o senso comum da direita social que as posições adrede fixadas não se subvertam. O escravismo é mais uma lógica do lugar do que do sentido. É dele que, de fato, têm saudade os que acham um escândalo racial proteger as vítimas históricas da dominação racial. E os jornalões, intelectuais coletivos das classes dirigentes, não fazem mais do que assim se confirmarem ao lhes darem voz exclusiva em seus editoriais e em suas páginas privilegiadas, ao se perpetuarem como cães de guarda da retaguarda escravista. É oportuno prestar atenção à letra da canção de Cartola ("Autonomia") em que ele afirma a necessidade de "uma nova Abolição".

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=561CID001


domingo, 25 de outubro de 2009

O dia 27 de outubro, Dia de Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra

O dia 27 de outubro, Dia de Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra
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Noticias de Saúde

Fonte: Sociedade Oasis -

saude-populacao-negraO dia 27 de outubro, Dia de Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra, marca o compromisso que temos na implementação de ações que reduzam as desigualdades no acesso aos serviços de saúde e nos índices de doenças da população negra.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem olhado com atenção esse tema.


Em 2004, criou um comitê técnico para discussão sobre o assunto, que logo conseguiu a ampliação do tratamento da anemia falciforme, uma doença genética freqüente nesta população.


No fim do ano passado, foi aprovada a Política Nacional de Saúde da População Negra. O novo texto é um marco para o atendimento à saúde da população negra. Por meio dele, o governo federal reconhece a existência do racismo institucional e a desigualdade étnico-racial.

Pronunciamento do Ministro da Saúde -José Gomes Temporão

Doença falciforme, hipertensão arterial, diabete mellitus, miomas uterinos, glaucoma, deficiência da enzima glicose-6-fosfato desidrogenase são doenças com maior incidência nas pessoas negras. O quadro de saúde da população negra é agravado em razão da pobreza crônica vivida pelas pessoas negras e do racismo camuflado existente no Brasil. Assim mulheres e homens negros adoecem mais e morrem mais em todas as idades.


Doença Falciforme

Descoberta há cerca de 95 anos, a doença falciforme continua sendo desconhecida da grande maioria da população. É uma doença hereditária: pode ser passada dos pais para os (as) filhos(as). Uma das características é a anemia crônica.

Uma das conseqüências da doença é o atraso da entrada na puberdade, ou seja, a primeira menstruação tende a ocorrer mais tarde do (por volta dos 16 anos de idade). Mulheres falcêmicas também apresentam gravidez de alto risco, com maiores chances de complicações na hora do parto.

Para aquelas que não têm a opção de usar métodos anticoncepcionais mais apropriados, alternativa são, fazer uso do preservativo masculino ou feminino a cada relação ou substituir a pílula por um anticoncepcional injetável, o que pode levar à diminuição do fluxo menstrual. Mesmo sendo portadora de doença falciforme, engravidar é um direito da mulher e somente ela poderá decidir se deseja ou não ter um(a) filho(a), após ser informada quanto aos cuidados com seu corpo durante a gestação e que pode ter uma criança falcêmica.

Miomas Uterinos

São tumores que se formam no útero, mas que não se espalham para outras regiões do corpo e podem ocorrer em 20% das mulheres entre a primeira menstruação e a menopausa. As mulheres negras apresentam mais chances de desenvolver a doença, que pode aparecer a partir dos 25 anos de idade. Os sintomas mais comuns são perda de sangue, dores pélvicas e alterações no peso. O tratamento pode ser cirúrgico, retirando-se somente o mioma (miomectomia) ou todo o útero (histerectomia). Depois da retirada do útero, a mulher pode passar a ter ondas de calor, ressecamento da vagina, flacidez das mamas e a chance de ter osteoporose também aumenta.

Mortalidade Materna

É a morte de uma mulher durante a gravidez, parto ou durante aborto espontâneo ou provado até 42 dias após o final da gestação, independentemente da duração ou da localização da gravidez. A mortalidade materna tardia é aquela que ocorre depois dos 42 dias do parto até um ano após o fim da gravidez.

Vários fatores expõem as mulheres negras à mortalidade materna: pressão alta, falta de profissionais de saúde com capacidade de atender às especificidades da saúde da mulher negra. A taxa de mortalidade materna entre as mulheres negras é seis vezes maior do que entre as brancas.

Tratamento desigual durante a gravidez

Alguns números demonstram o tratamento diferenciado às mulheres negras e brancas durante a gestação. De cada 100 mulheres negras, 30 procuram mais de um hospital para realizar o pré-natal, enquanto esta taxa cai para 18, entre as mulheres brancas. De cada 100 mulheres negras, 12 não receberam anestesia na hora do parto. Este número diminui para 7 entre as mulheres brancas.

As doenças citadas, aliadas ao descaso do poder público e às condições precárias de moradia e de vida têm agravado a saúde da população negra, cujo quadro deve mudar quando o Estado reconhecer que todos (as) têm direito à saúde, respeitando a diversidade entre povos e regiões.

Jornalista alemão se veste de negro e descreve o racismo na Alemanha em filme

Jornalista alemão se veste de negro e descreve o racismo na Alemanha em filme

Por UOL
O jornalista alemão Günter Wallraff realizou muita coisa na sua carreira. Ele revelou à população alemã como os chamados "trabalhadores hóspedes", imigrantes da Turquia, da Grécia, da Itália, da Espanha e de outros países que vieram para cá nas décadas de 50 e 60 e ficaram, são discriminados neste país. Ele revelou também os métodos de trabalho questionáveis do "Bild", o jornal tabloide mais vendido da Alemanha, e como os funcionários de centros de chamadas telefônicas são explorados. O seu projeto mais recente parece ser também o mais nobre. "Quero descobrir como é ser negro na Alemanha." O projeto envolve um livro, "Aus der schönen neuen Welt" ("Saído do Belo Novo Mundo"), e um filme, "Schwarz auf Weiss" ("Preto no Branco"), que será lançado em cinemas da Alemanha nesta quinta-feira (22/10). Para as filmagens, Wallraff fez com que um profissional o cobrisse de maquiagem marrom-escura, usou lentes de contato castanhas e uma peruca afro. Depois, usando o pseudônimo Kwami Ogonno, ele faz uma viagem pela Alemanha. O filme revela o grau assustador do racismo, tanto o explícito quanto o latente, na Alemanha. Quando ele vai a festivais, as pessoas recusam-se a tomar cerveja no mesmo banco em que ele se encontra. Proprietários de imóveis recusam-se a
alugar apartamentos para ele. As pessoas não parecem fazer cerimônia em chamá-lo pela palavra pejorativa alemã equivalente a "preto". E hooligans no leste da Alemanha chegam a ameaçá-lo com violência física.



http://zumptv.blogspot.com/2009/10/jornalista-alemao-se-veste-de-negro-e.html

ENTREVISTA FILÓ:

Black Rio - FILÓ: uma nova postura do negro, num contexto de repressão e autoritarismo
Asfilófio de Oliveira Filho (Filó), produtor da primeira banda Black Rio, esteve, desde o início, no centro dos agitados bailes soul dos anos 70, no Rio de Janeiro. Num momento do país em que as liberdades civis foram suprimidas, milhares de jovens negros reafirmaram sua identidade e fizeram dos bailes um exercício de liberdade, desafiando a repressão e o autoritarismo.
Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br
Foto: Januário GarciaPáginas e mais páginas de histórias. Aos 60 anos e 40 deles dedicados à cultura negra, Asfilófio de Oliveira Filho - o produtor cultural Filó, contribuiu decisivamente para a criação dos bailes black nos anos 1970. Viu nascer a primeira roda de samba do Brasil, no Clube Renascença. E conviveu com grandes nomes da dramaturgia e da MPB: Elizete Cardoso, Roberto Ribeiro, Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara, Zezé Motta, Zózimo Bulbul, Nei Lopes, Elis Regina, Belchior. Só pra citar alguns. Consciência negra, atitude, diversão e arte desviaram o caminho do jovem engenheiro. Dividia-se entre a administração da agência de automóveis da família e o agitado circuito Zona Norte-Zona Sul do Rio-e-Baixada Fluminense. Filó é figura histórica do showbusiness nacional. E tudo começou com a juventude reunida no clube negro Renascença. Embalou mais de um milhão de jovens do Rio de Janeiro no ritmo da Black Music. Ergueu a Soul Grand Prix. Disputou as paradas de sucesso e venda de LPs de Coletâneas de Soul, superando Roberto Carlos por semanas. Foi colunista do Jornal do Brasil e da Última Hora. Não escapou da repressão da ditadura, passou pelo DOPS. Virou alvo da grande mídia. Mas essa é mais uma das muitas revelações dessa entrevista ao Ìrohìn, que teve a participação de Carlos Alberto Medeiros (Coordenadoria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Rio de Janeiro) e Januário Garcia (excepcional fotógrafo e ativista) também personagens desse período que continuam na ativa.

Ìrohìn - Fale um pouco de você e de sua família.
Filó - Nasci no Rio, em 1949. Fui criado em várias comunidades, mas me fixei no Jacaré, próximo à Vila Isabel e ao Méier. Sou de família pobre: pai mecânico e mãe empregada doméstica. Meu pai conseguiu comprar e vender carros. Tornou- se dono de agência de automóveis e sócio de grandes empresários da época. Essa ascensão possibilitou a mim e à minha irmã a entrada na universidade. Fiz engenharia civil, na Fundação Souza Marques, que até hoje é de propriedade de família negra. Mas antes já tinha feito mecânica na Escola Técnica Nacional. A partir dos 17 anos, era o organizador da estrutura contábil administrativa da empresa, porque meu pai não tinha nem o primeiro grau (atual ensino fundamental).

Ìrohìn - Como começou seu envolvimento com a área cultural?
Filó - Com a comunidade. Aos 18 anos, ganhei um carro e comecei as andanças pelo Rio. Os negros tinham dificuldade de deslocamento. Zona Norte era Zona Norte, Zona Sul era Zona Sul, a Baixada era Baixada. Segregação socioespacial! O que unia eram as festas da Penha, os piqueniques na Praia de Guaratiba e Paquetá. Oportunidade para conhecer os sambistas, as tias, as comidas... Lembro que eu ia pro Irajá e quem mandava lá era o Nei Lopes. Saíamos da Zona Norte pra Zona Sul - no Beco da Fome, onde os artistas se reuniam. Lindaura era a tia do local. Servia três ou quatro pratos, só para os artistas que circulavam por ali: Toni Tornado, Tim Maia, Simonal. Era o meu point. Tinha vários amigos, como o Roberto Ribeiro, que estava começando.

Ìrohìn - Você já era sócio do Renascença?
Filó - Sim. Naquele momento, o Renascença era voltado para a família. Os diretores eram advogados, aposentados, engenheiros. Tinham posição, mas eram pessoas discriminadas em outros locais. Aconteciam festas básicas, como Miss Renascença, reuniões de almoço, baile da flor, baile de debutante. Havia pouco espaço para nós, jovens, e isso foi se tornando pesado. Chegamos ao ponto de que o grupo decidiu assumir o comando cultural do Renascença. Na época, Volnei da Almeida, Maneca, o falecido Haroldo de Oliveira e Airton Guimarães. Esse grupo fez com que o Renascença se transformasse num ponto cultural.
Medeiros - O pessoal tradicional do Renascença fazia festas tocando música erudita. A idéia era se diferenciar do negro pobre e do branco de classe média.
Filó - Exatamente. Havia a seguinte divisão: de agosto até março era o período do samba. As escolas de samba comandavam. Todos nós tínhamos as nossas alas. Grande parte do Renascença saía na ala Comigo Ninguém Pode da Mangueira. E eu estava lá. Mas tinha a galera do Salgueiro e da Portela. Acabou o carnaval, o que acontecia? Os grandes bailes! Era Ed Lincoln, Lafaiete. O esquema era cabelo gomado, visual todo trabalhado, sapatos de bico fino.

Ìrohìn - Como a dramaturgia entrou no clube? Qual o seu papel no grupo?
Filó - A palavra era transformação. Zona Sul, Zona Norte do Rio e Renascença começavam a mudar. E isso se deu através da cultura. Foi criado um grupo de teatro negro com Haroldo de Oliveira, Zózimo Bulbul, Zezé Motta, Geraldo Rosa. Montamos a peça Orfeu Negro com patrocínio da Letra S/A, que bancou um cenário sem cobertura, ao ar livre, no Renascença. Foi o maior sucesso. A música era do Paulo Moura e do Martinho da Vila. Só fera! Aquilo ali fez com que as portas se abrissem para essa galera jovem. Trabalhava como ator, mas minha praia era produção. Fiz iluminação e sonorização.

Ìrohìn - Aí você percebeu que tinha um potencial para a produção?
Filó - A partir do momento que se abriu espaço para a juventude, começamos a fazer uma atividade nas quintas-feiras. O ICBA (Instituto Cultural Brasil-Alemanha), através do nosso parceiro Itamar Fagundes, cedia equipamento e materiais. Convidamos a massa toda da comunidade local negra, principalmente das favelas do Macaco, Andaraí e Salgueiro. Havia uma onda de doença de Chagas, os barbeiros, e fazíamos palestras para a comunidade. Para atrair o pessoal, colocávamos filmes. E aquilo ali virou sucesso, todo mundo queria ouvir um som, começava a balançar. Aí começaram a nascer as atividades de domingo,os bailes . O Renascença se fortalece a partir dessa movimentação de saúde e cidadania. Nada de fazer festa pra ganhar dinheiro, nada disso. Tinha o samba do Bola Preta. Só que a casa não era nossa, não tinha identidade racial. Levamos esse desenho pro Renascença e montamos a primeira roda de samba do Brasil. Foi aí que o Renascença explodiu, ganhamos dinheiro pra caramba.

Ìrohìn - As rodas de samba aconteciam nos finais de semana?
Filó - Nas sextas-feiras acontecia uma roda de samba comandada por Elizete Cardoso. Só fera! Elizete Cardoso, Maestro Cipó. Surgiram Dona Ivone Lara, Emílio Santiago, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho. Tudo começando ali. E as grandes feras, Paulinho da Viola, Martinho já tinha estourado com a música Casa de Bamba. Elizete Cardoso era quem comandava. A roda de samba se tornou sucesso. Eu entrava com a produção, o visual, o som. O Renascença explodiu dessa forma. Tínhamos o Almeida na publicidade. Conseguimos fazer um projeto gráfico maravilhoso. Não havia computador, era tudo feito à mão.

Ìrohìn - Samba, teatro negro. E a agitação dos bailes Black e da Soul Music?
Filó - Era 1970, 1971. Costumam atribuir a Big Boy e Ademir Lemos, no Canecão, o surgimento do soul no Brasil. Mas isso não é verdade! O fato é que nós tínhamos intervenções no subúrbio por conta de vários outros companheiros, que se reuniam pra fazer festas nas casas. Baile não tinha, eram reuniões. O mesmo que acontecia no Rio acontecia em Salvador, com Vovô do Ilê Aiyê e Jorge Watusi. Paralelamente a isso, a Rádio AM 860 tocava black music. Quem era? Big Boy. Ele tocava eminentemente o rock! Botava lá um “James Brownzinho” no final do baile. Então ele não era o black da hora, só que tinha o material. Outra coisa. O primeiro baile não foi no Canecão. O primeiro baile foi na Zona Norte! O Big Boy só fazia no Canecão, porque a sua clientela era eminentemente branca. Só que houve a oportunidade de James Brown vir ao Brasil, ao vivo no Canecão. Foi aí que eles se projetaram.

Ìrohìn - Os bailes do Renascença eram conhecidos como “Noite do Shaft”. Por que a escolha desse nome?
Filó - Porque na época tinha um filme americano em que um ator negro interpretava, pela primeira vez, um detetive, figura central. A trilha musical era de Isaac Hayes, um dos nossos ícones. Aquela música foi fantástica. Aquilo ali mexeu. Pegávamos uma Kodak e fotografávamos. A garotada que ia ao baile anterior se via nas semanas seguintes. Eu cortava, fotografava e fazia o slide. Ali a gente tinha a foto do Januário ao lado do James Brown, do Isaac Hayes. Assim a gente associava a questão da auto-estima. E havia também as mensagens: “Eu estudo, e você?”, “Família negra”, “Seu brilho está em como você se vê”. O cara está dançando aqui e está se vendo lá. Era auto-estima pura. E tinha a hora da parada do baile, música lenta, e nessa hora você passava a mensagem, que era o nosso forte. Eu deixei de ser DJ para ser o MC. Todo mundo se vendo e olhando para o público. Nossa auto-estima era, até então, muito ruim, dentro de casa a gente se autodiscriminava. Se o cabelo estivesse passando um centímetro, já era macaco. Os moleques davam cascudo na gente. A gente tava cansado daquela onda. Aquilo era muito careta.
Medeiros - Os americanos estavam bombardeando com essas imagens de black.
Filó - Foi quando surgiram os blacks. E começamos a assumir dentro de casa. Cinco anos depois, meu pai já usava black, minha mãe deixou de alisar o cabelo. Mudou o contexto da família negra, o visual, e a auto-estima foi lá em cima! Os artistas mais sensíveis nós conseguimos atrair porque eles se reuniam no Teatro Tereza Raquel ou no Teatro Opinião às segundas-feiras. Participavam Milton Gonçalves, Zezé Motta, Haroldo Oliveira, Zózimo Bulbul. Uma porção de gente reunida e discutindo questão racial, mas sob observação da ditadura. Conseguimos atraí-los para o Renascença. A primeira festa do Shaft foi um grande sucesso. Em paralelo, tinham as reuniões - que eu posso falar melhor, porque eu participava - mas na festa todo mundo estava lá. Na criação do IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras) a gente se reunia na Universidade Cândido Mendes.

Ìrohìn - Quando foi criado o IPCN?
Medeiros - Em 1974, conheci Filó. As coisas estavam efervescendo. Aconteceu a primeira reunião na Cândido Mendes relativa ao 13 de maio, no Centro de Estudos Afro-asiáticos em Ipanema, com José Maria e Luiz Pereira à frente do processo. Depois, foi criado a Simba (Sociedade Brasil-África) e, em 75, foi fundado o IPCN.

Ìrohìn - E quando você percebeu mais concretamente a presença da repressão?
Filó - A repressão começa lá atrás, a partir do momento em que recebo meu diploma em 74. Um ano antes eu já tinha sido ameaçado. ‘Corta esse cabelo, tira essa bata africana, esse chinelo que na verdade é um tamanco, tira essa mochila, se não você não vai passar’. Era meu professor de Cálculo, e eu era o único aluno não militar. Tony Tornado na época falou: ‘Revolucione, estou contigo! Tinha que botar aquela beca e o chapéu. Eu tinha um terno todo branco, ele me deu um chapéu amarelo deste tamanho. “Negrão, é contigo”! Na hora em que eu fui chamado pra pegar o diploma, tiro a beca, pego o diploma, boto o chapéu e levanto o punho erguido.

Foto: Januário GarciaÌrohìn - Havia repressão aos bailes?
Filó - Antes da repressão bombar, a Soul Grand Prix estava crescendo e lançou o primeiro LP, que ganhou disco de ouro. Era uma coletânea de música soul e vendemos mais de 106 mil cópias em poucas semanas. Chegamos à frente do Roberto Carlos. A capa tinha uma black em cima duma moto - um negócio revolucionário na época. O primeiro disco foi lançado em 74/75; o segundo, em 76; e o último, em 77/ 78. Os bailes estavam atingindo um milhão de jovens no Rio de Janeiro - até então ninguém estava sabendo. Até que começam a se preocupar. Quando a coisa começou a pegar fogo, passamos a ser o foco da repressão. Aqueles que não tinham estrutura não podiam fazer o baile por algum motivo. E nós, o que fizemos? Viramos empresa. Pagamos impostos, não podiam dizer não porque pagávamos impostos.
Medeiros - Em 1976, sai uma reportagem que acabou dando nome ao movimento que até então não tinha nome. Uma reportagem no Jornal do Brasil, Black Rio, de quatro páginas, mostrando aquele fenômeno que já estava rolando há anos na Zona Norte.
Filó - Passamos a escrever regularmente como JBlack a ponto do Zé Reinaldo, na época como diretor da Última Hora, me conceder um documento dizendo que eu poderia, por trabalhos prestados, ser um jornalista, que na época não existia.

Ìrohìn - Como você foi parar no DOPS?
Filó - Eu tinha uma sala na Central do Brasil, onde era o escritório da Soul Grand Prix. Bateu um cara, você via que o cara não era black, mas botou uma roupa de black. Os caras queriam introduzir a droga pra incriminar a gente. Aí não deu.. A TV Globo e outras emissoras começaram a desqualificar e ridicularizar todos os negros. Elis Regina resolve conversar conosco, porque gravou “Black is beautiful” do Marcos Valle. E alguns artistas começaram a cantar a questão da negritude nesse âmbito do soul, Tim Maia, Simonal. Nesse burburinho, os caras me chamam pra uma conversa e quando eu vi me botaram um capuz preto. Só lembro que me jogaram dentro do camburão e rodaram pela cidade. Eu fui parar dentro do DOPS. Eles tiraram o capuz, jogaram uma luz que não me permitia ver ninguém, e perguntavam: “Cadê o milhão de dólares que a CIA te deu? Quem é?”. Era uma das lendas urbanas daquela época. A estratégia era a violência verbal e emocional. Já tínhamos lançado o segundo disco na Warner, onde o Janu (Januário Garcia) entra para fazer a produção das várias capas. Tínhamos também o Volnei trabalhando. Todos profissionais, ganhando legal. E tinha Gil, Candeia, Zezé Mota, Belchior. A Soul Grand Prix contratando oficialmente. Tudo na legalidade. Só que a imprensa...
Medeiros - A revista “Veja” até dizia que a nossa forma de atuar era divertida. O jornal Movimento, que era jornal da resistência, fez uma reportagem de última página dizendo que, entre outras coisas, o soul era o pior tipo de música americana. Eles não sabiam nem o que era soul. Discoteca estava começando, eles não sabiam o que era discoteca e o que era soul e confundiam tudo.
Filó - Antes disso a gente só tinha uma opção, que era o rock brasileiro: The Pops, The Brazilian Beetles, tudo imitação dos Beatles. No livro “Anos 70. Dicionário da música brasileira”, de Nelson Motta e de Ana Maria Bahiana, o Black Rio faz parte da música popular brasileira. Nelson Motta sempre falou isso. Somos o divisor de água entre a música americana e a MPB. Fizemos uma experiência com uma música americana, adaptamos com elementos brasileiros e virou um sucesso nos bailes blacks. A partir dessa música foi criada a banda Black Rio
Medeiros - Filó foi produtor da primeira banda Black Rio e depois veio a Warner e colocou essa música “Locomotivas” na novela Locomotivas da rede Globo (1977).
Filó - E aquilo explodiu de tal forma que virou business. Deixou de ser uma questão de “divertimento de negro pobre”. E, naturalmente, a elite se posicionou. Era Nei Lopes, Filhos de Gandhy, Quilombo e Soul. Aquilo ali era uma coisa fantástica. Rompemos com a visão de que nós não podíamos, nós conseguimos muito. E convivendo com a TV Globo num contexto autoritário.

Ìrohìn - Afinal de contas, qual o problema em se tomar como referência a produção cultural de negros norte-americanos e, a partir dessas referências, negros brasileiros mobilizarem outros negros, fortalecerem a identidade de outros negros? Vamos fazer uma síntese, Medeiros? Que balanço seria possível fazer?
Medeiros - Recentemente, a pesquisadora Márcia Conti lançou um livro sobre os bailes blacks, com base num estudo de 1994. Ela ouviu lideranças negras e notou que os bailes tiveram importância na identidade. É a ênfase na identidade negra que faz com que as pessoas melhorem a sua auto-estima, essa é a grande força do Soul. O Soul é uma espécie de trilha sonora da luta negra americana dos anos 1960. Lembro-me das primeiras vezes em que fui ao baile do Filó, vi gente chorar. Chegar e chorar, porque você se deparava com milhares de cabeças com cabelos afros balançando. Esse choro diz muito do impacto que tudo isso teve naquela época sobre quem pôde de alguma forma participar do processo, ir aos bailes.

Foto: Januário GarciaÌrohìn - E você, Filó, não pretende registrar em livro toda essa experiência?
Filó - Não só a minha fala. O importante seria recuperarmos a fala de todos que viveram o período, cada um tem um olhar. Pra você ter uma idéia, o nosso DJ foi um branco. Por que ele era branco? Porque ele trazia as informações da zona Sul. O nome dele era Luiz Stelzer, conhecido como Luizinho do Jockey Soul. Tocava na zona Sul, tinha uma visão e gostava da música Black. Ele era dançarino, abria os bailes das boates top e gostava de ouvir James Brown. Aquele nicho musical a gente trazia pra zona Norte para as nossas festas, porque a maioria era comprada nas importadoras. Sinfonie, Modern Sound, que eram os locais onde você comprava os discos importados. Era caríssimo. A outra opção era alguém trazer os discos dos Estados Unidos, alguém como aeromoça, piloto. Era assim que era o processo. Foi um momento de desconstrução do pensamento social brasileiro, segundo o qual não há racismo no Brasil, porque o negro sabe o seu lugar. E foi nesse momento que o negro saiu do lugar dele. Desconstruiu.

Ìrohìn - Quais os filhotes do soul?
Filó - Conscientemente falando é o Movimento Hip-Hop. Você tem algumas células que são fundamentais, como a célula da Bahia, através do Blackitude, movimentos como a Casa do Hip-Hop em São Paulo, que criou um consciência e reconhece o soul como um pai. Aqui, o Atitude Consciente deu o primeiro passo para a implantação do Hip- Hop no Rio. Paralelo a isso, temos os filhos não conscientes, mas que são também uma realidade. E uma realidade é o funk. O que faltou ao funk? A liderança que o soul tinha. A comunicação que o soul tinha e que o funk não soube absorver. Não tem essa liderança e, infelizmente, foi para um outro lado.

*Edson Cardoso entrevistou (Rio 04.06.09) e Isabel Clavelin editou








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