Quinta, 13 de agosto de 2009, 08h18 Atualizada às 08h25
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Estava viajando e não tomei conhecimento do episódio ao vivo. Li pela primeira vez sobre ele na coluna de Bárbara Gancia na Folha de 31/07/2009. Ela contou que "na madrugada do último sábado, o integrante do "CQC" (Danilo Gentili) usou os 140 caracteres do Twitter para enviar a seguinte mensagem: 'Agora no TeleCine King Kong, um macaco q depois q vai p/cidade e fica famoso pega 1 loira. Quem ele acha q é? Jogador de futebol?'".
Vi que houve desdobramentos. A piada foi considerada racista, uma associação militante fez uma representação junto ao Ministério Público, que acertadamente arquivou o processo, houve alguns protestos, cartas de leitores expressando posições etc. Acho que o debate mais detalhado ocorreu entre Gentili e Hélio de la Peña, da turma Casseta e Planeta. Tudo isso pode ser lido no Google.
A tarefa que me imponho, aqui, consiste em tentar ler o texto de Gentili, considerado racista por alguns. Em resumo, achou-se que ele qualificou negros de macacos. Minha questão, portanto, é esta.
O que diz o texto? Simula que anuncia ou conta a seus "seguidores" (não esqueçamos que o suporte impõe textos de poucos caracteres, e que, para uma piada, isso, em geral, não deveria ser problema) que há um filme em cartaz. Trata da história de um macaco que vai para a cidade, fica famoso e "pega" uma loira. Esse é o resumo da história.
Segue-se um comentário, em forma de pergunta(s): Quem esse macaco pensa que é (para pegar uma loira)? Ele pensa que é um jogador de futebol (e não um simples macaco)?
O que está entre parêntese, na minha leitura, a meu ver, é o que todo mundo lê nesse texto, apesar de estar "apagado". Assim, creio que se pode dividir o texto de Gentili em duas partes: a que fornece a sinopse do filme e as duas perguntas, comentários indiretos. Na primeira, obviamente não há nada de racismo. Não sei qual a mensagem das diversas versões de King Kong (a sinopse é obviamente de um filme como esses), mas certamente não são filmes racistas (mesmo que fossem lidos como estranhamento da "paixão" do gorila exatamente por loiras... e não por morenas ou negras ou asiáticas).
Para encontrar racismo no texto, ele deve ser procurado na segunda parte, nas perguntas, ou em alguma conexão delas com a primeira parte. Mas o que pode haver de racismo em "ele pensa que é jogador de futebol para pegar uma loira depois de ficar famoso"? O que o texto diz, mais ou menos indiretamente, é que jogadores de futebol, por serem famosos, têm "acesso" a mulheres, ou mais acesso a elas do que outros homens ou do que eles mesmos antes de serem famosos. Loiras, aqui, não quer dizer necessariamente 'loiras' - elas apenas representam mulheres, por questões que requereriam explicação mais longa. Mas pense nas ditas piadas de loiras.
Não há nada de racismo em perguntar se um macaco que fica famoso pensa que é um jogador de futebol para ter um comportamento similar ao destes "artistas". A única possibilidade de encontrar racismo nesse texto é considerar que jogador de futebol é necessariamente negro e, em seguida, encontrar uma relação entre o macaco que adota o comportamento do jogador (negro?) e o próprio jogador.
Ora, essa relação não está no texto. Nem mesmo em seus implícitos ou "metonímias" (loira por mulher, jogador por jogador negro).
Ou seja, achar racismo no texto é resultado de uma superinterpretação, de uma associação que só é possível porque os ânimos estão acirrados e qualquer faísca acende a fogueira. Mas há tanto racismo aqui quanto em expressões como "período negro" da história, ou seja, nenhum. Assim como não há machismo em history (que alguns acham que há por causa da presença de his na palavra)...
Agora, a questão do humor. Ou duas questões sobre humor. A primeira: por que o texto de Gentili seria engraçado? Se nos faz rir, o que é que ele tem que provoca o riso? Dizer que jogadores pegam loiras porque ficam famosos? Dizer que loiras (mulheres) saem com jogadores só porque são famosos?
Se eu risse, talvez fosse mais pela segunda opção do que pela primeira: ela contém uma causa de riso que os clássicos mencionam desde sempre: um rebaixamento. Aqui, haveria um rebaixamento das mulheres, das quais frequentemente se diz que, ao contrário dos homens, só "saem" por amor - há até livros que dizem que mulheres amam, enquanto homens fazem sexo etc. Mas nem sei se essa afirmação implica atualmente algo negativo em relação às mulheres. Na outra opção, não há nada. E certamente não há grande sacada no texto de Gentili, nada que cause a tal admiratio, que talvez seja a razão mais sofisticada para o riso humano. Em resumo: nem racismo, nem graça.
Que o texto tenha causado tanto protesto indica apenas que a sociedade está, em certos casos, muito atenta a qualquer deslize. Somos muito mais sensíveis ao comportamento politicamente correto do que a outras questões (a corrupção, por exemplo). Acho mesmo que há exageros, no caso. Mas, principalmente, péssimas análises.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso e Questões para analistas de discurso.