domingo, 2 de agosto de 2009

Neopaganismo evangélico

São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009





+(c)ultura

Neopaganismo evangélico


Teologia pentecostal se afasta da tradição judaico-cristã ao atribuir ao mal uma potência independente de Deus e dos homens


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Estava passeando pela TV quando dei com um culto da Igreja Mundial do Poder de Deus. Teria rapidamente mudado de canal se não tivesse acabado de ler o interessante livro de Ronaldo de Almeida, "A Igreja Universal e seus Demônios - Um Estudo Etnográfico" [ed. Terceiro Nome, 152 págs., R$ 28], que me abriu os olhos para o lado especificamente religioso dos movimentos pentecostais. Até então, via neles sobretudo superstição, ignorando o sentido transcendente dessas práticas religiosas.
No culto da TV, o pastor simplesmente anunciou que, dado o aumento das despesas da igreja, no próximo mês, o dízimo subia de 10% para 20%. Em seguida, começou a interpelar os crentes para ver quem iria doar R$ 1.000, R$ 500 e assim foi descendo até chegar a R$ 1.
Notável é que o dízimo não era pensado como doação, mas simplesmente como devolução: já que Deus neste mês dera-lhe tanto, cabia ao fiel devolver uma parte para que a igreja continuasse no seu trabalho mediador. Em suma, doar era uma questão de justiça entre o fiel e Deus.
Em vez de o salário ser considerado como retribuição ao trabalho, o é tão só como dádiva divina, troca fora do mercado, como se operasse numa sociedade sem classes. Isso marca uma diferença com os antigos movimentos protestantes, em particular o calvinismo, para os quais o trabalho é dever e a riqueza, manifestação benfazeja do bom cumprimento da norma moral.
Se o salário é dádiva, precisa ser recompensado. Não segundo a máxima franciscana "é dando que se recebe", pois não se processa como ato de amor pelo outro. No fundo vale o princípio: "Recebes porque doastes". E como esse investimento nem sempre dá bons resultados, parece-me natural que o crente mude de igreja, como nós procuramos um banco mais rentável para nossos investimentos.
O crente doa apostando na fidelidade de Deus. Os dísticos gravados nos carros, "Deus é fiel", não o confirmam? Mas Dele espera-se reciprocidade, graças à mediação da igreja, cada vez mais eficaz conforme se torna mais rica. Deus é pensado à imagem e semelhança da igreja, cujo capital lança uma ponte entre Ele e o fiador.

Anticalvinismo
Além de negar a tradicional concepção calvinista e protestante do trabalho, esse novo crente não mantém com a igreja e seus pares uma relação amorosa, não faz do amor o peso de sua existência.
Sua adesão não implica conversão, total transformação do sentido de seu ser; apenas assina um contrato integral que lhe traz paz de espírito e confiança no futuro. Em vez da conversão, mera negociação. Essa religião não parece se coadunar, então, com as necessidades de uma massa trabalhadora, cujos empregos são aleatórios e precários?
Outro momento importante do livro é a crítica da Igreja Universal ao candomblé, tomado como fonte do mal. Essa crítica não possui apenas dimensões política e econômica, assume função religiosa, pois dá sentido ao pecado praticado pelo crente. O pecado nasce porque o fiel se afasta de Deus e, aproximando-se de uma divindade afro-brasileira, foge do circuito da dádiva. Configura fraqueza pessoal, infidelidade a Deus e à igreja.
Nada mais tem a ver com a ideia judaico-cristã do pecado original. Não se resolve naquela mácula, naquela ofensa, que somente poderia ser lavada pela graça de Deus e pela morte de Jesus, mas sempre requerendo a anuência do pecador.
Se resulta de uma fraqueza, desaparece quando o crente se fortalece, graças ao trabalho de purificação exercido pelo sacerdote. O fiel fraquejou na sua fidelidade, cedeu ao Diabo cheio de artimanhas e precisa de um mediador que, em nome de Deus, combata o Demônio. O exorcismo é descarrego, batalha entre duas potências que termina com a vitória do bem e a purificação do fiel.

Paganismo
Compreende-se, então, a função social do combate ao candomblé: traduz um antigo ritual cristão numa linguagem pagã. Os pastores dão pouca importância ao conhecimento das Escrituras, servem-se delas como relicário de exemplos. Importa-lhes mostrar que o Diabo, embora tenha sido criado por Deus, depois de sua queda se levanta como potência contra Deus e, para cumprir essa missão, trata de fazer o mal aos seres humanos.
O mal nasce do mal, ao contrário do ensinamento judeu-cristão que o localiza nas fissuras do livre-arbítrio. Adão e Eva são expulsos do Paraíso porque comeram o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e assim se tornam pecadores, porque agora são capazes de discriminar os termos dessa bipolaridade moral.
Essa teologia pentecostal se aproxima, então, do maniqueísmo. Como sabemos, o sacerdote persa Mani (também conhecido por Maniqueu), ativo no século 3º, pregava a existência de duas divindades igualmente poderosas, a benigna e a maligna. Isso porque o mal somente poderia ter origem no mal. A nova teologia pentecostal empresta o mesmo valor aos dois princípios e, assim, ressuscita a heresia maniqueísta, misturando o cristianismo com a teologia pagã.



JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.




http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0208200904.htm

Crítica a uso de bases militares explora antiamericanismo

São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009






ANÁLISE

Crítica a uso de bases militares explora antiamericanismo

Chávez conseguiu que América Latina desviasse atenção das armas vendidas pela Suécia à Venezuela encontradas com as Farc para reclamar de fato trivial

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

O presidente venezuelano Hugo Chávez é um gênio da propaganda. Conseguiu que a América Latina desviasse a atenção de um fato seríssimo -a Colômbia ter achado com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) foguetes antitanque AT-4 que foram vendidos pela Suécia ao Exército da Venezuela-, para começar a reclamar em uníssono contra um fato trivial: um pequeno aumento do número de militares americanos em cinco bases colombianas.
Chávez sabe explorar habilmente o antiamericanismo sempre latente na região.
Há vários motivos para um fato ser sério e outro, trivial. Armas das Forças Armadas de um país serem encontradas com a narcoguerrilha em um país vizinho é algo sério, ilegal e que mereceria investigação. Permitir que militares de um país amigo façam operações conjuntas e utilizem bases é algo trivial e legítimo em qualquer parte do mundo, desde que aprovado pelo governo local.
O aumento do número de militares e civis americanos na Colômbia já era esperado desde que o Equador decidiu não renovar a permissão para os EUA usarem a base aérea de Manta. Para os EUA poderem continuar fazendo voos com os aviões-radar de alerta antecipado E-3 Sentry AWACs e de patrulha marítima P-3 Orion, precisariam de novas bases.
Pode-se argumentar que os EUA vão mais que "triplicar" o número de militares. Mas o número em si é pequeno: de 250 para 800 militares, além de 600 contratados civis. Não é bem uma invasão.
A localização das bases também deixa claro que o foco é em operações contra traficantes, não um "cerco" à Venezuela, como reclamou Chávez. Há um fluxo de droga por mar e ar.
Duas das bases onde operam ou operarão os americanos estão no litoral do Caribe -a base naval Bolívar, em Cartagena, e a base aérea Alberto Pouwels, em Malambo (Barranquilla). Uma está no Pacífico -base naval Bahía Málaga, ideal para substituir Manta. E duas estão no interior -base aérea Palanquero, em Puerto Salgar, e base aérea Apiay, em Villavicencio.
Um detalhe óbvio está ausente: desde quando os EUA precisariam de bases na América Latina se quisessem intervir militarmente na região?
Há só uma superpotência militar no planeta hoje. Nenhum outro país tem o alcance global das Forças Armadas dos EUA.
Ter bases próximas de onde se queira atacar é útil, mas não essencial. Se quisessem bombardear Caracas e Chávez, não seria preciso uma base na Colômbia. Basta lembrar que os EUA usaram porta-aviões para atacar o Afeganistão em 2001.
Um porta-aviões nuclear USS Nimitz tem 100 mil toneladas de deslocamento. Carrega 85 aeronaves e quase 6.000 tripulantes. Basta um para varrer a Força Aérea Venezuelana do mapa. A Marinha dos EUA tem dez destes navios e um mais velho, o USS Enterprise.
O antiamericanismo era típico da época em que de fato os EUA intervinham militarmente na América Latina. Antes da Segunda Guerra, era rotina ter fuzileiros navais ocupando países como Cuba, Haiti, República Dominicana, Nicarágua. Depois, houve na Guerra Fria o apoio explícito a ditaduras para evitar novas Cubas.
Mas, com a redemocratização do continente a partir dos anos 80, desaparecem motivos e pretextos para intervenções.
Uma curiosa exceção aconteceu em dezembro de 1989, quando o então presidente americano George H. W. Bush ordenou a invasão do Panamá para derrubar o ditador e narcotraficante Manuel Noriega.
O mais novo porta-aviões nuclear dos EUA chama-se USS George H. W. Bush -nome que decerto desagrada a Chávez.



http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0208200905.htm


Inação de Obama acua imigrantes nos EUA

São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009


Inação de Obama acua imigrantes nos EUA

Grupos conservadores procuram dificultar a vida de irregulares para promover uma "autodeportação"

ANDREA MURTA
DA REDAÇÃO

Eleito com o apoio de grupos pró-reforma migratória e com um discurso favorável ao alcance da cidadania pelos estimados 12 milhões de irregulares nos EUA, o presidente Barack Obama não só protelou o debate do tema nos primeiros seis meses de governo como ainda fortaleceu algumas políticas da gestão anterior.
O resultado é que grupos conservadores se viram fortalecidos na tarefa de dificultar ao máximo a vida de imigrantes sem documentos, na esperança de que eles voltem voluntariamente a seus países -tática apelidada de "autodeportação".
Entre as ações mais polêmicas da nova Casa Branca estão aumento de acordos que permitem a policiais de municípios agir como agentes de imigração e o investimento em programas que checam o status legal de presos para deportar os que estão no país ilegalmente -ambas defendidas pelo ex-presidente George W. Bush.
No caso da checagem do status migratório dos presos, o governo recentemente alocou US$ 195 milhões para o próximo ano para expandir o programa dos atuais 70 condados (inclusive nas regiões de Miami e San Diego) para o restante do país até 2012, quando passará a custar US$ 1 bilhão por ano.
Mas a política mais criticada pelos grupos pró-imigrantes é mesmo a atuação de policiais locais como agentes de imigração. "Comunidades que ajudaram a eleger o presidente Obama acreditavam que haveria mudanças. Há uma crescente sensação de traição pelo fato de o governo estar abraçando e fortalecendo as políticas mais contraproducentes da era Bush", disse em comunicado na última semana Chung-Wha Hong, diretora da ONG Coalizão da Imigração de Nova York.

De grão em grão
O adiamento da reforma migratória favorece advogados como Kris Kobach, um dos líderes do movimento anti-imigração ilegal nos EUA. Kobach se tornou, nos últimos anos, o mais conhecido defensor de Estados e municípios interessados em coibir a presença de irregulares em seus territórios.
Ele acredita que a melhor forma de agir não é nem tentar deportar os 12 milhões de irregulares nem oferecer uma anistia. "O caminho é aumentar gradualmente a fiscalização, para que se torne mais difícil aos irregulares violar a lei. Assim, eles deixarão o país por conta própria", disse à Folha.
Nos tribunais, ele argumenta a favor de legislações regionais que, entre outros, punam proprietários que alugam imóveis a irregulares e empregadores que os contratam. Ele também defende a obrigatoriedade do uso do "e-verify", um programa de computador no qual empregadores checam na base de dados do governo se um empregado estrangeiro tem autorização para trabalhar nos EUA.
Kobach rejeita críticas de que usa os tribunais para mudar políticas federais. "O que faço é ajudar instâncias locais a definir a lei onde ela é vaga."
Segundo ele, não houve mudanças visíveis nos casos em que ele leva aos tribunais desde que Obama assumiu. Ele reclama, porém, da percebida diminuição do ritmo de batidas dos agentes de imigração em locais de trabalho em busca de ilegais, tática que sob Bush teve aumento de mais de 966% entre 2002 e 2008.
Até agora, os números não o decepcionaram. Dados da ICE (agência federal de imigração) indicam aumento de 18% nas deportações em entre outubro de 2008 e junho último, em relação ao mesmo período do ano fiscal anterior. O número assume nova dimensão quando se leva em conta que em 2008 houve recorde em deportações, com 349 mil casos.
Do outro lado da disputa, grupos pró-imigrantes alertam sobre riscos de deixar a questão migratória nas mãos de agentes locais. Segundo Foster Maer, advogado do grupo Latino Justice, "se policiais agem como agentes de imigração, as pessoas param de denunciar crimes por medo de ser questionadas sobre seu status legal, o que as torna mais vulneráveis a ataques e abusos".
O advogado, que já enfrentou Kobach nos tribunais, diz que "tornar a vida dos imigrantes mais difícil não os afastará dos EUA". "O que veremos é o crescimento de uma subclasse, especialmente de latinos, que vai se afundar cada vez mais em um submundo", disse à Folha


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0208200906.htm

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Presidente do STF indefere liminar requerida pelo DEM contra cotas raciais da UnB

Notícias STF

Sexta-feira, 31 de Julho de 2009

Bresidente do STF indefere liminar requerida pelo DEM contra cotas raciais da UnB

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, indeferiu, nesta sexta-feira (31), pedido de liminar formulado pelo partido Democratas (DEM) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, em que contesta as cotas raciais de 20% para negros, instituída pela Universidade de Brasília em seus concursos vestibulares.

Antes de decidir, o ministro Gilmar Mendes havia solicitado pareceres da Procuradoria Geral da República (PGR) e da Advocacia Geral da União (AGU). Ambas se manifestaram contra a concessão da liminar e pela constitucionalidade dos atos administrativos praticados pela UnB, que a tornaram a primeira instituição de ensino superior federal a adotar o sistema de cotas raciais.

Decisão

Em sua decisão, o presidente do STF sugere que ações afirmativas, como as cotas raciais, deveriam ser limitadas no tempo e diz acreditar que “a exclusão no acesso às universidades públicas é determinada pela condição financeira”.

Observa que “nesse ponto, parece não haver distinção entre ‘brancos’ e ‘negros’, mas entre ricos e pobres”. Com base nesse raciocínio, questiona se “a adoção do critério da renda não seria mais adequada para a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil”, reportando-se à “Síntese de Indicadores Sociais 2006”, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) segundo a qual o “critério de pertencimento étnico-racial é altamente determinante no processo de diferenciação e exclusão social”.

Os dados do levantamento indicam, também, que a taxa de analfabetismo de negros (14,6%) e de pardos (15,6%) continua sendo, em 2005, mais que o dobro que a de brancos (7,0 %).

O ministro ressalta que “o tema não pode deixar de ser abordado desde uma reflexão mais aprofundada sobre o conceito do que chamamos de ‘raça’. Nunca é demais esclarecer que a ciência contemporânea, por meio de pesquisas genéticas, comprovou a inexistência de ‘raças’ humanas. Os estudos do genoma humano comprovam a existência de uma única espécie dividida em bilhões de indivíduos únicos”.

Gilmar Mendes admite que a questão é polêmica, mas pondera que o Plenário do STF deverá pronunciar-se, em momento oportuno, sobre o inteiro teor do pedido de medida cautelar e o cabimento da ação, bem como sobre a eventual possibilidade de seu conhecimento como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), em razão da peculiar natureza jurídica de seu objeto.

O ministro afirma que o questionamento feito pelo Partido Democratas “é de suma importância para o fortalecimento da democracia no Brasil”. Ainda segundo ele, “as questões e dúvidas levantadas são muito sérias, estão ligadas à identidade nacional, envolvem o próprio conceito que o brasileiro tem de si mesmo e demonstram a necessidade de promovermos a justiça social”.

Entre outras indagações colocadas na ação, ele destaca as seguintes: “Até que ponto a exclusão social gera preconceito? O preconceito em razão da cor da pele está ligado ou não ao preconceito em razão da renda?”

E, também, “como tornar a universidade pública um espaço aberto a todos os brasileiros? Será a educação básica o verdadeiro instrumento apto a realizar a inclusão social que queremos: um país livre e igual, no qual as pessoas não sejam discriminadas pela cor de sua pele, pelo dinheiro em sua conta bancária, pelo seu gênero, pela sua opção sexual, pela sua idade, pela sua opção política, pela sua orientação religiosa, pela região do país onde moram etc”?

Ele pondera que, apesar da importância do tema em debate, “neste momento, não há urgência a justificar a concessão da medida liminar”.

Lembra, nesse sentido, que o sistema de cotas raciais foi adotado pela UnB desde o vestibular de 2004 e se vem renovando a cada semestre. Recorda, ainda, que a interposição da ADPF do Democratas ocorreu após a divulgação do resultado final do vestibular 2/2009, quando já encerrados os trabalhos da comissão avaliadora do sistema de cotas.

“Assim, por ora, não vislumbro qualquer razão para a medida cautelar de suspensão do registro (matrícula) dos alunos que foram aprovados no último vestibular da UnB, ou para qualquer interferência no andamento dos trabalhos na universidade”, concluiu, indeferindo o pedido de liminar, que deverá ser referendado (aprovado) pelo Plenário.

Leia a íntegra da decisão;

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStfArquivo/anexo/ADPF186.pdf


FK/IC


http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStfArquivo/anexo/ADPF186.pdf


NOTAS SOBRE O RACISMO À BRASILEIRA

Racismo à Brasileira - Roberto da Matta

Afrobrasileiros e suas Lutas


Anais do Seminário Internacional
"MULRTICULTURALISMO E RACISMO: O PAPEL DA AÇAO AFIRMATIVA NOS
ESTADOS DEMOCRATICOS COMTEMPORANEOS"

Por Roberto Da Matta

NOTAS SOBRE O RACISMO À BRASILEIRA


Esta minha intervenção tem dois aspectos ou dimensões. De um lado, quero falar de fatos sociais concretos - alguns,aliás ,bem conhecidos do nosso racismo-, como sua manifestação implícita, disfarçada e de difícil discussão, como se, entre nós, brasileiros, falar de racismo fosse um tabu, de acordo com aquela tendência que Florestan Fernandes chamou, com propriedade,"o preconceito de ter preconceito". De outro, quero me concentrar nas inter-relações dos fatos sociais com os ideais políticos, alvo que - se bem entendo - move este encontro e tem suas dificuldade específicas, sobretudo quando se trata de um tema tão dramático quanto pungente, quando a justa vontade de erradicar o preconceito certamente embaça a discussão de suas características históricas e de sua organização sociológica ou cultural.

Para tanto,quero começar relembrando um episódio de diz respeito ao assunto .
Em 1968, quando estava em Cambridge , Massachusetts, realizando , na Universidade de Harvard, meu doutorado em antropologia social, fiquei sabendo da visita de um grupo de estudantes brasileiros. Eram lideres estudantis, convidados pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos, que realizavam um programa de visitas a centros culturais norte-americanos e , em Harvard, participavam de seminários e debates.

Carente de noticias do país e de contato com compatriotas - aquela época, é bom lembrar, não havia e-mail,nem fax,nem sedex, os estudantes não podiam viajar tanto quanto hoje - , fui ao local da reunião.

Lá, em um vasto salão harvardiano , dois negros americanos, se não me engano, ambos políticos locais e ligados ao chamado Movimento Negro que estava surgindo, disseram dissertavam sobre suas experiências aos jovens lideres estudantis brasileiros. Lembro-me bem de que o objetivo dos políticos americanos era compartilhar, a partir da grande experiência liberal americana1 ,as conquistas dos negros em relação ao establishment branco, mudando legislações e provocando, por meio de um ativismo pacifico, democrático e consistente, a integração política e judiciária dos Estados Unidos como nação e, no limite da esperança , como sociedade.

Ao término do discurso dos americanos, os estudantes brasileiros iniciaram uma série de perguntas-comentários provocadoras e um tanto impertinentes. Diziam, por exemplo, que as mudanças políticas mencionadas não eram efetivamente transformações de estrutura, que continuava fundada no mercado. Alegavam que a modificação aparente do quadro dos direitos das minorias não mudava o cerne do problema : a estrutura do capitalismo fundada na exploração do trabalho, continuava em vigor. Insinuavam, como era comum naquela década, que, para mudar as relações raciais, seria necessário primeiro modificar todo o "sistema"por meio de uma revolução .

Depois de cerca de trinta minutos de impasse ideológico, um dos palestrantes negros resolveu endurecer e disse mais ou menos o seguinte, olhando durante sua platéia de brasileiros:

Curioso que vocês cobrem tanto do nosso sistema. O fato é que estamos trabalhando com o que podemos para mudar as relações raciais por aqui. Vocês, que se dizem uma democracia racial, são muito piores, em termos práticos. Pois vejam só: no meio de mais ou menos oitenta estudantes brasileiros, eu vejo apenas sete ou oito negros. A grande maioria é branca. Onde está a tal "democracia racial" de vocês ?.Após a reunião, fui me encontrar com o grupo e logo descobri a perturbação dos brasileiros diante do seguinte problema: quem era o negro que os americanos haviam descoberto entre eles? Pois, como me disse um dos estudantes, com exceção de uma ou duas pessoas, não havia preto "entre eles"...
Essa historia tem o mérito de revelar o coração do problema, pois situa com dramaticidade um fato social básico: como as sociedades classificam suas eventuais variedades étnicas .

Pois, se falamos de relações raciais de uma perspectiva sociológica, é preciso distinguir de saída a miscigenação como fato empírico, isto é, como o resultado biológico do encontro sexual de brancos, negros e índios - para ficar na trilogia clássica da fábula racial brasileira -, do modo pelo qual cada sociedade trabalha esse resultado, reconhecido-o ou não como em fato social concreto. Como não há sistema valor, moralidade, mitologia ou sistema de classificação que seja "natural" ou mais próximo de uma natureza humana, pois todos são arbitrários, existe uma variedade intrigante nos modos de lidar com os mestiços.O que chama a atenção quando se compara a existência classificatória americana com a brasileira, é o fato de que, embora existam "mulatos" ou "mestiços", tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, na sociedade brasileira esses mestiços tem um reconhecimento cultural e ideológico explicito, quanto que, no caso americano, eles se submergem como "brancos" ou como "negros ". O resultado é que o sistema americano persegue a distinção e a compartimentalização dos tipos étnicos em grupos autocontidos,contrastantes, autônomos e socialmente coerentes, isto é, sem mistura. Lá o sistema tem repulsa pela ambigüidade, pelo mais ou menos e pelo meio-termo. Assim, ou se é "branco" ou se é "negro", "hispânico" , "judeu","italiano" ou "irlandês" etc. Já no Brasil, o sistema de classificação privilegia o meio-termo e a ambigüidade como valor, tendendo, em princípio, a funcionar com base na hierarquia e no gradualismo.

Dadas essas "escolhas" histórico-sociais, há exclusão , no caso dos Estados Unidos, exclusão que se exprime no princípio do "diferentes, mais iguais"; enquanto que , no Brasil, o sistema inclui hierarquiza de modo complementar, de acordo com o princípio do desigual ,mais justo". Com isso, o sistema brasileiro estabelece que, entre brancos e negros, há uma gradação complexa e mais: que todas as etnias de fato se complementam para a formação do "povo brasileiro", pois o que falta em uma, existe de sobra na outra, conforme tentei revelar alhures, em um ensaio no qual tento elucidar a nossa "fabula de três raças".2

_______________________________________________

1.Neste contexto, vale acentuar que considero importante a distinção entre nação - ou Estado-Nacional - e sociedade como duas distintas e até mesmo contraditórias de coletividade. De modo breve, a nação é uma coletividade fundada na idéia de soberania, de territorialidade e de leis explícitas. Sua unidade especial básica é o indivíduo - o cidadão -, que nela é dotado de autonomia, liberdade, igualdade política e jurídica e responsabilidade. Já a sociedade dispensa o território, tem leis implícitas - geralmente conceituadas como mandamentos, tabus, pecados ou normas normais indiscutíveis e dadas pelos deuses e heróis civilizadores - e sua unidade fundamental é a família, o clã, a aldeia ou um elo social. Uma sociedade pode estar em guerra com sua nação, como parece fazer prova, hoje, o caso de Uganda e Burundi. Normalmente, nação e sociedade estão em conflito, pois os ideais nacionais nem sempre são realizados pela sociedade nas suas práticas. Nesse sentido, o caso do Brasil é interessante, porque fomos uma nação que adotou princípios igualitários, mas tínhamos uma sociedade hierarquizada, constituída que era por nobres, cidadão livres e escravos. Para maiores considerações sobre esse ponto, veja -se Da Matta, Conto de mentirosos: Sete ensaios de antropologia brasileira, Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

2.Cf . Roberto Da Matta, Relativizando: Uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro,Rocco.

Um dos mais lúcidos estudiosos de sistemas raciais, o sociólogo Oracy Nogueira, fala de um contraste entre um "preconceito de marca", típico do Brasil, e de um "preconceito de origem", vigente nos Estados Unidos. Outros, como o historiador social norte-americano Carl Degler , elaborara a distinção explicitando historicamente o "mulato" como uma válvula de escape; ou, em termos de minha interpretação, afirmando que, no caso brasileiro, o mulato era um lugar social reconhecido e marcado e não algo vazio de sentido como acontece nos Estados Unidos.

O problema básico porém - problema sem o qual a questão racial não pode ser entendida --, jaz no estilo cultural por meio do qual as duas sociedades elaboram, constroem e lidam com as suas diferenças. Desse modo não se nega a presença de "mestiços", nem nos Estados Unidos, nem na África do Sul. Tampouco se nega a presença de iniqüidade no caso brasileiro, que foi e tem sido igualmente injusto e violento para com os "diferentes ", sobre tudo os negros. Mas se salienta que a mestiçagem é percebida de modo diverso nessas sociedades. E mais: que compreender o modo pelo qual cada sistema ordena suas percepções sociais é um fato social fundamental para construção de medidas orientadas para a implementação de mais oportunidade e mais igualdade para todas as minorias.

No caso do Brasil, a idéia de hierarquia tem duas características:

1. Ela atua por meio de uma lógica complementar que, embora limite a ascensão dos "diferentes", não os dispensa como tal. Ou seja : a complementaridade se exprime em uma ideologia segundo a qual negros, brancos e índios formam um triângulo racial e se complementam. Assim, não há Brasil sem negros índios ou brancos. Quer dizer, se o sistema admite que o branco é o elemento superior, essa superioridade não é simples nem linear, como no caso americano. Pois, no caso brasileiro, admite-se também que o branco não é superior em tudo. Na ideologia racial brasileira, brancos, negros e índios são desiguais, mais complementares.

Curioso acentuar que a fábula exclua outras etnias, como se os libaneses, os japoneses, os italianos, entre outros, que, do ponto de vista de uma "historia empírica"do Brasil, também contribuíram para a formação da nossa sociedade, não existissem socialmente.
Com isso, o negro complementa o branco e vice- versa, havendo entre eles um elo ideologicamente reconhecido: uma relação fundada no controle e na exploração,mas também na ideologia compensatória de que o negro possui qualidades ausentes dos brancos e no fato de que um é necessário para o outro. Não é por acaso que a grande região popular brasileira, a Umbanda, integre no seu panteão como figuras poderosas, personagens como os Pretos Velhos, os Zé Pelintras e os caboclos, respectivamente negros e índios.

2. Esse estilo de relacionamento racial fundado na inclusão promove o reconhecimento da graduação, o que origina um cálculo complexo da determinação étnica do Brasil. Provavelmente pelos fatos de que a experiência com o escravo foi universal, permeando todos os grupos sociais; que os negros formavam uma quase maioria da população, gerando uma inevitável consciência de que todos se ligavam pela cor da pele e de que saíamos gradualmente do regime de trabalho escravo, transformando o escravo em cliente e em sub-cidadão, o racismo à brasileira tende a se manifestar de modo implícito, dando ou tirando negritude ou indianidade ou estrangeirice de qual quer pessoa.

Em uma palavra, tara-se, como já indicativa Oracy Nogueira, de um sistema de preconceito no qual o contexto é determinante. Assim, se fulano deixa de atuar de acordo com esse código implícito, ele poderá ser "enegrecido" ou "acaboclado". Desse modo, um pessoa pode ser alvo de muitas classificações raciais, que gera uma notável insegurança classificatória, insegurança que, ao lado da importância da casa como entidade social básica, engendrou uma enorme intimidade entre grupos etnicamente diversos.

Tudo isso, provavelmente, inibiu a segregação espacial dos grupos sociais por meio do critério racial ou da origem nacional, como é o caso dos Estados Unidos. Houve também a inibição da implementação da ideologia racial no plano legal. E, ainda, a criação de grupo de militância anti-negros, anti-judeus, anti-italianos, anti-hispânicos, etc. - grupos que se fundaram no ódio racial implementado como um estilo freqüente de lidar com as diferenças, como é o caso da Ku-Klux-Klan, no Estados Unidos.

Assim, embora exista preconceito no Brasil, não existe entre nós um sistema de segregação ou de separação racial implementada e legitimado por leis escritas. A demais, o sistema, coerentemente, gerou uma ideologia de mistura e ambigüidade - na figura da mulata e do mulato, por exemplo, e nas regiões populares, que se constituem em um elemento integrador de todo sistema, valorizando mais a confissão humana - sofrimento, culpa, pecado, caridade, amor, etc. - como explicadores da situação social de cada um mais do que a própria raça, como ocorre nos Estados Unidos.

A mim, parece-me complicado equacionar os dois sistemas, ignorando suas diferenças básicas: o fato de que, nos Estados Unidos, há uma precisão classificatória que é coerente com a orientação geral do sistema; e que, no Brasil, há o reconhecimento social e simbólico do intermediário, que gera uma alta indeterminação étnica. Vale acrescentar, ademais, que cada um desses sistemas tem suas vantagens e desvantagens, e cada qual deve encontrar " saídas" diferenciadas para o estabelecimento de uma maior igualdade de oportunidade para seus membros. No caso americano, deve estar precavido contra o sectarismo; no brasileiro, contra uma acomodação que, propositadamente, troca reconhecimento da mestiçagem como ausência de preconceito e, no limite da segregação de oportunidades.

Será, pois, a partir desses constatações que se deve discutir o sistema racial brasileiro. Um sistema, repito, que tanto se funda na paradoxal dificuldade de classificar negros e brancos, quando se estrutura no fato de que cada categoria racial conhece o seu lugar em uma hierarquia.Legislar positivamente para tal sistema demanda apanhar a sua inteligência sociológica.
Seria tudo isso um empecilho à ação afirmativa, à democracia ou à igualdade de oportunidades ? Claro que não! Mas seria preciso levar em conta o seguinte :

1. Que ação afirmativa seja concebida a partir do sistema e considere a origem e o fato de que o nosso sistema é gradativo e, mais que isso,contextual e relativamente eletivo.Pessoas ficam "brancas" ou "negras" de acordo com suas atitudes, sucesso e, sobretudo, relacionamentos.

2. Que se deve ter em conta as dificuldades do programa de "ação afirmativa" dentro da realidade americana como, aliais, alguns dos participantes do seminário chamaram a atenção. Do mesmo modo que a "mulataria" não acabou com o nosso preconceito, a "ação afirmativa" também não liquidou o lado negativo das relações raciais nos Estados Unidos. Ao contrário, ela a tem reforçado, embora tenha provocado maior participação de negros em certas instituições e ambientes daquela sociedade.

3. Finalmente, cabe considerar se mudar a lei seria realmente o ponto mais importante, sobretudo em um país onde as leis mudam com mais facilidade que práticas sociais.
Nesse sentido, caberia perguntar se, ao lado dessa discussão jurídica,não se deveria aprofundar o seguinte:

1 .Realizar uma campanha nacional, utilizando sobretudo a televisão, na qual os brasileiros se vissem confrontados com os seus mecanismos implícitos de exclusão racial.Nesse tipo de campanha, valeria a pena valorizar figuras de negros historicamente importantes, ressaltando o lado étnico e, também, denunciando as mil formas de hipocrisia pelas quais a discriminação se exerce no Brasil.

2. Ressaltar o fato de que a idéia de que temos uma "democracia racial" é algo respeitável. Quanto mais ou seja, porque, apesar do nosso tenebroso passando escravocrata, saímos do escravismo com um sistema de preconceito, é certo, mas sem as famosas " Leis Jim Crow " americanas, que implementavam e, pior que isso, legitimavam o racismo, por meio da segregação no campo legal.

Não se trata - convém enfatizar para evitar mal entendidos - de utilizar a expressão no seu sentido mistificador, mas de resgatá-la como um patrimônio que seja capaz de fazer com que o Brasil - nação, honrando com seu comprometimento igualitário, possa resgatar a sua imensa divida com esses negros que tiveram o mais passado fardo na construção do Brasil - sociedade.



http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/racismo-a-brasileira-roberto-da-matta