domingo, 10 de maio de 2009

Vencida a violência, pobreza mina o Haiti

Às vésperas do quinto aniversário de sua intervenção, ONU começa a planejar a retirada de suas tropas a partir de 2011
"Resolvemos a segurança e no dia seguinte os haitianos nos perguntaram: E agora? Como isso vai afetar minha família?", narra brasileiro
Facções rebeldes controladas, índices de criminalidade inferiores aos de cidades como Rio e São Paulo, desemprego e escassez de ajuda financeira internacional. Esse é o retrato do Haiti quase cinco anos após a chegada de militares a serviço da ONU, que hoje estudam a retirada a partir de 2011.A Folha esteve no Haiti e constatou que as gangues chimères foram desbaratadas, e os combates entre militares brasileiros das Nações Unidas e rebeldes -que ocorriam a cada três dias em meados de 2005- são parte do passado do país.De acordo com a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), a taxa de homicídios no país em 2008 foi de 5,09 para cada 100 mil habitantes. A taxa de São Paulo referente ao mesmo ano foi de 10,7 casos, e a do Rio, 35.Para a Organização Mundial da Saúde, a partir de 10 casos por 100 mil habitantes, há "nível epidêmico de assassinatos".Mais de 70% dos 2.848 crimes reportados à Minustah e à PNH (Polícia Nacional do Haiti) no ano passado tiveram motivação patrimonial. As extorsões mediante sequestro, por exemplo, que atingiram 160 casos só no mês de dezembro de 2005 -no auge dos confrontos- caíram para dez no mesmo período de 2008.A ONU admite que há subnotificação de crimes, mas diz que a violência já não tem a motivação política do período posterior à queda do ex-presidente Jean Bertrand Aristide.Mas, apesar da paz atual, parte dos rebeldes continua solta, e o armamento apreendido foi irrisório -o que indica que armas ainda podem estar escondidas."Temos de manter um patrulhamento forte e um bom sistema de inteligência para que os [rebeldes] remanescentes não tentem se reorganizar", diz o general brasileiro Alberto dos Santos Cruz, ex-comandante das forças de paz.Hora da viradaCom mais de 20 anos de carreira na ONU, o também brasileiro Luiz Carlos da Costa ocupa hoje o segundo mais importante cargo civil da Minustah (representante adjunto do secretário-geral Ban Ki-moon).Ele aponta que o Haiti vive hoje um período decisivo, no qual a capacidade de geração de empregos será decisiva para determinar a salvação do país ou o fracasso da missão."Nós resolvemos o problema da segurança e no dia seguinte os haitianos nos perguntaram: E agora? Como isso vai mudar o dia a dia da minha família?"A taxa de desemprego ultrapassa 60%, e metade da população tem menos de 18 anos de idade. Além disso, uma crise de alimentos e furacões causaram prejuízos de US$ 1 bilhão.Para tirar o país desse caos, o governo haitiano elaborou um plano de resgate de saúde, educação e infraestrutura ao custo de US$ 900 milhões em ajuda financeira internacional no período de dois anos. Os 20 países doadores, porém, devem enviar apenas US$ 324 milhões.A esperança de gerar empregos recai agora sobre uma iniciativa norte-americana de abolir pelos próximos nove anos as taxas sobre todos os produtos têxteis do Haiti que entrarem nos Estados Unidos.Plano de retiradaNesse contexto, segundo Costa, a ONU quer iniciar uma retirada gradual dos 7.000 militares (1.200 deles brasileiros) do país a partir do fim de 2011.A expectativa é que, até lá, o efetivo da polícia nacional cresça de 9.200 para 14 mil homens -a quantidade mínima para substituir as tropas internacionais. "Pelo menos 15% das funções de segurança do país já estão sendo desempenhadas hoje pela polícia haitiana", diz.O treinamento desse contingente é responsabilidade de 2.000 policiais da ONU, que já cortaram cerca de mil integrantes corruptos dos quadros iniciais da PNH.O armamento e os equipamentos da polícia são doações provenientes dos Estados Unidos e do Canadá.Até 2011, os capacetes azuis ainda farão a segurança das próximas eleições presidenciais (novembro de 2010) e permanecerão no país por mais 12 meses, para garantir que o presidente eleito fique no poder."A partir de 2011 haverá uma presença das Nações Unidas no Haiti, mas com uma mudança de perfil. Haverá uma redução no número de tropas e talvez seja mantido o número de policiais [da ONU]", diz Costa.A retirada gradual, que não tem prazo final, dependerá de decisões conjuntas do governo haitiano e do Conselho de Segurança da ONU. E ela só será possível se a situação econômica do país melhorar.Sheila Laplage, a porta-voz da premiê Michele Pierre-Louis, disse à Folha que, por enquanto, o governo do Haiti não se manifestará sobre os planos de retirada de tropas.
São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009
LUIS KAWAGUTI. EM PORTO PRÍNCIPE

Multilateralismo e ações afirmativas

uma questão de reparação histórica. Deve ser política de Estado até que tenhamos uma sociedade com relações étnicas mais equilibradas

O BRASIL está honrado por sua participação na Conferência de Revisão da 3ª Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, realizada em Genebra, na Suíça. Nossa delegação, formada por representantes governamentais e da sociedade civil, ficou satisfeita por ter contribuído na redação de um documento forte, porém equilibrado, que trouxe avanços em relação à terceira conferência, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001.O documento de Genebra não singulariza qualquer país, trata de forma adequada as tragédias do passado, condena a islamofobia, o antissemitismo e outras formas de intolerância e coloca no centro do debate as vítimas do racismo e da discriminação.Entre as conquistas, tivemos o destaque conferido à aplicação de políticas de ação afirmativa, a abertura para a discussão de temas ligados à orientação sexual e a importância do combate à intolerância religiosa.Mais do que qualquer nação, o multilateralismo foi o verdadeiro vencedor da conferência. E o Brasil, com base no consenso alcançado, poderá aprofundar e diversificar as políticas públicas de promoção da igualdade racial, inclusive no campo externo.Ganhou impulso, por exemplo, o Plano de Ação Conjunta Brasil-Estados Unidos de Combate ao Racismo.Em reunião realizada na última semana, em Washington (EUA), foram aprofundados os eixos centrais da cooperação entre os dois países, entre os quais estão educação multirracial, preservação da memória e acesso à justiça e ao crédito.No plano interno, vamos seguir em nossa luta cotidiana pela construção do Plano Nacional de Igualdade Racial, que se traduz em diretrizes para a aprovação da Lei Orçamentária. No Congresso, vamos continuar o diálogo sobre os projetos de lei que criam o Estatuto da Igualdade Racial e o sistema de cotas raciais para o acesso às universidades públicas.Temos consciência de que a aplicação das ações afirmativas no Brasil é uma questão ainda distante do consenso. A garantia dos direitos das comunidades quilombolas e a política de cotas raciais nas universidades, para ficar em dois exemplos, afetam diretamente setores que não querem dividir com mais ninguém o acesso à terra, ao saber e às benesses de nosso desenvolvimento.As ações impetradas na Justiça pelo partido Democratas contra o sistema de cotas e a titulação das terras quilombolas são uma prova disso.Curiosamente, os membros desse mesmo partido, que fez parte da coalizão que sustentava o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, nunca se pronunciaram contra o decreto que, no apagar das luzes daquela administração, criou cotas de 20% para negros no serviço público federal.Hoje, esse segmento político, com aliados em outros partidos e na mídia, desconsidera a enorme dívida do Estado e da sociedade brasileira em relação ao segmento negro da população. Preveem, em exercícios de futurologia, que as cotas vão acirrar o conflito racial em nosso país.No entanto, o projeto de lei que estabelece a política de cotas atende a uma realidade já consagrada, a partir da autonomia universitária, em 23 universidades federais, 25 universidades estaduais e três centros federais de educação tecnológica.A aprovação do sistema de forma espontânea a partir dos conselhos universitários comprova a aceitação da medida no seio da sociedade.Nenhum incidente envolvendo ódio racial foi registrado nessas instituições. Pelo contrário, seis anos após a adoção pioneira dessa política na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e na UnB (Universidade de Brasília), podemos afirmar que a medida foi bem recebida no ambiente acadêmico, principalmente graças à abertura e à generosidade da juventude brasileira.As políticas de ação afirmativa devem passar ao largo da discussão político-ideológica, ao contrário do que quis fazer crer um pré-candidato à Presidência da República, em artigo publicado recentemente nesta Folha.É, na verdade, uma questão de reparação histórica, que deve ser consolidada enquanto política permanente do Estado brasileiro até que tenhamos uma sociedade com relações étnicas mais equilibradas. O que significa igualdade de oportunidades para todos.Para tanto, é preciso tratar os desiguais de forma desigual, elevando os desfavorecidos ao mesmo patamar de partida dos demais.
EDSON SANTOS , 54, deputado federal pelo PT-RJ (licenciado), é o ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
debates@uol.com.br
São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

Edson Santos: Multilateralismo e ações afirmativas
TENDÊNCIAS/DEBATES. Folha de São Paulo.