quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

PROCESSO SELETIVO PARA PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS E EDUCAÇÃO: UMA PROPOSTA DE (RE)CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL

Prezadas e prezados,

Com muita satisfação, o Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) publica o edital de seleção de candidatos à segunda turma do curso de pós-graduação lato sensu "RELAÇÕES ETNICORRACIAIS E EDUCAÇÃO: UMA PROPOSTA DE (RE)CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL.

O Edital pode ser encontrado no sítio do CEFET/RJ (http://www.cefet- rj.br/ ), na página da Diretoria de Pós-Graduação (http://dippg. cefet-rj. br/ ; http://dippg. cefet-rj. br/index. php?option= com_content&view=article&id=94%3Acursospgls&catid=23%3Acolat& Itemid=70〈=br ).

Lembramos que o curso é TOTALMENTE GRATUITO.

Por gentileza, ajudem-nos com a divulgação.

Seguem as informações que constam no Edital:




PROCESSO SELETIVO PARA PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU:

RELAÇÕES ETNICORRACIAIS E EDUCAÇÃO: UMA PROPOSTA

DE (RE)CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL

O Diretor-Geral do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca -
CEFET/RJ, no uso de suas atribuições, torna público o presente Edital, contendo as normas
referentes ao processo seletivo para o Curso de Pós-graduação Lato Sensu: Relações Étnico-
Raciais e Educação: Uma Proposta de (Re)Construção do Imaginário Social, a ser
oferecido no CEFET/RJ - Avenida Maracanã, 229 - MARACANÃ - RIO DE JANEIRO


TÍTULO 1 - DO PROCESSO SELETIVO


1.1 O processo de seleção estará aberto para portadores de diploma de curso superior completo, das mais diversas áreas, reconhecido por órgão competente.
1.2 O processo seletivo compreenderá três etapas distintas:
A. Análise da validade dos documentos - de caráter eliminatório;
B. Análise do Curriculum Vitae comprovado - de caráter classificatório;
C. Prova escrita: Produção de texto argumentativo, de caráter classificatório.
Bibliografia básica para a prova escrita:
a) Lei 10.639/03 (http://www.planalto .gov.br/ccivil_ 03/leis/2003/ L10.639.htm);
b) Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(http://www.publicac oes.inep. gov.br/arquivos/ %7B2A0A514E- 6C2A-4657- 862FCD4840586714 %
7D_AFRO-BRASILEIRA. pdf );
c) "Que negro é esse na cultura negra?". In: HALL, Stuart. Da diáspora - Identidades
e mediações culturais. BH: Editora UFMG, 2006. p. 317-330
1.3 O exame de seleção acontecerá no dia 04/03/2010, às 18h 30min, nas dependências do
CEFET/RJ, em sala(s) a ser(em) informada(s) no site da COLAT (Coordenadoria de Pós-
Graduação Lato Sensu), http://dippg. cefetrj.
br/index.php? option=com_ content&view=article&id=68&Itemid=70〈=br, após o
dia 01/03/2010 ou na Secretaria da DIPPG, exclusivamente no dia do exame.
1.4 O exame terá duração máxima de 2h (duas horas).
1.5 O candidato deverá apresentar-se no local da prova às 18h, munido do seu Cartão de
Inscrição e documento de identidade.
1.6 Após o início do exame de seleção não será permitida a entrada de nenhum candidato ao
local em que o mesmo será realizado.
1.7 O candidato só terá acesso ao(s) tema(s) a ser(em) desenvolvido( s) no momento da
produção do texto.
1.8 Não será permitido consultar nenhum tipo de material no momento do exame.
1.9 A seleção dos candidatos será realizada por uma Banca Examinadora, especialmente
designada para tal fim e constituída de servidores pertencentes ao quadro permanente de
docentes do CEFET/RJ e/ou profissionais que atuarão no curso proposto.
1.10 A análise do Curriculum Vitae e do texto argumentativo será realizada,
respectivamente, com base nos documentos apresentados, comprovados, e na capacidade de
produção de texto expressa pelo candidato. A avaliação dos candidatos obedecerá a critérios
que constam no Anexo 1 deste edital.
1.11 Não será permitida a permanência de crianças no espaço em que a prova escrita será
aplicada. A candidata que tiver necessidade de amamentar durante a realização das provas
deverá levar acompanhante que ficará em sala reservada para essa finalidade e será
responsável pela guarda da criança. A candidata que não levar acompanhante não realizará
as provas.




TÍTULO 2 - DAS VAGAS OFERECIDAS

2.1 Serão oferecidas 35(trinta e cinco) vagas.
2.2 O preenchimento das vagas do curso obedecerá rigorosamente à classificação final, até se
completar o número total das vagas oferecidas.
2.3 O CEFET/RJ se reserva o direito de não preencher todas as vagas previstas neste edital.

TÍTULO 3 - DAS INSCRIÇÕES

3.1 As inscrições serão realizadas na secretaria da DIPPG/CEFET/ RJ, no período de 01/02/2010
a 11/02/2010, de segunda-feira a sexta-feira, na primeira semana, e de segunda-feira a quintafeira,
na segunda semana, entre 8h e 16h. Avenida Maracanã, 229 - Bloco E-506 - Telefones
(021) 2566-3179 (Secretaria da Pós-Graduação).
3.2 No ato da inscrição, o candidato (ou seu representante legal) deverá apresentar:
o Ficha de inscrição devidamente preenchida, a ser obtida no endereço eletrônico
http://www.cefet- rj.br;
o Original e cópia da carteira de identidade;
o Original e cópia do CPF;
o Original e cópia do título de eleitor e comprovantes de votação na última eleição;
o Duas fotos de tamanho 3x4, recentes, em bom estado, não digitalizadas;
o Original e cópia do diploma de graduação (frente e verso) ou, em caráter provisório, da
declaração de conclusão do curso, se o diploma ainda estiver em processo de expedição
(no caso de apresentação de declaração, a cópia deverá, obrigatoriamente, ser
autenticada em cartório);
o Original e cópia do histórico escolar do curso de graduação;
o Curriculum Vitae, com cópias de documentos comprobatórios da formação e/ou
experiência anexados, elaborado de acordo com o modelo a ser obtido no endereço
eletrônico http://www.cefet- rj.br; (documentos comprobatórios de Títulos, Atividades
de Magistério, Atividades Profissionais não Docentes e Produção acadêmica
relacionada à área do Concurso deverão ser entregues em envelope separado em que
conste claramente o nome do candidato. Os documentos comprobatórios devem ser
dispostos na mesma ordem em que aparecem no Curriculum Vitae).

TÍTULO 4 - DAS INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES

4.1 Os candidatos não selecionados deverão retirar seus documentos no mesmo lugar onde
efetuaram a inscrição, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da divulgação
dos resultados. Após este prazo, o CEFET/RJ não mais se responsabiliza pelos documentos
entregues.
4.2 A lista de classificados será divulgada pela internet, em http://www.cefet- rj.br, no dia 08 de
março de 2010. Nesta mesma data, iniciam-se as matrículas para o curso. As matrículas serão
realizadas na secretaria da DIPPG, entre os dias 08/03/2010 e 12/03/2010, entre 8h e 16h.
4.3 Caso haja algum tipo de problema técnico ou imprevisto, o resultado será afixado na
secretaria de pós-graduação do CEFET/RJ.
4.4 Resultados e informações NÃO serão fornecidos por telefone. Todas as informações
inerentes à matrícula serão oferecidas no dia 08/03/2010 no sítio do CEFET/RJ ou na Secretaria
da DIPPG.
4.5 Serão considerados desistentes os candidatos classificados que não efetivarem a matrícula
no prazo estabelecido e, para ocuparem suas vagas, serão convocados os candidatos
imediatamente subsequentes da lista de classificados.

TÍTULO 5 - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

5.1 A inscrição do candidato implica conhecimento e aceitação das normas e condições
estabelecidas neste Edital e em seus anexos, não sendo aceita alegação de
desconhecimento.
5.2 O exame de seleção só terá validade para o curso que será iniciado em 2010.
5.3 Os casos omissos neste Edital serão resolvidos pelo Diretor-Geral do CEFET/RJ,
ouvida a Comissão de Seleção.

Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2010

Miguel Badenes Prades Filho
Diretor-Geral do CEFET/RJ

ANEXO 1

O julgamento do Curriculum Vitae não terá caráter eliminatório, consistindo na
avaliação de:
Grupo I - Títulos:

2,0 pontos para conclusão de curso de pós-graduação lato sensu (360h)
1,0 ponto para conclusão de curso de atualização (180h)

Grupo II - Atividades de Magistério:

0,5 ponto por ano de experiência profissional em Educação Básica (Pontuação
máxima: 8 anos): 4,0 pontos.
Grupo III - Atividades Profissionais não Docentes:

Trabalhos ligados a movimentos sociais, ONGs, OSCIPs e/ou desenvolvidos em
projetos voltados para as populações negras (0,5 ponto por ano - Pontuação máxima: 6
anos) 3,0 pontos.

Grupo IV - Produção acadêmica dos últimos cinco anos relacionada à área do
curso.

0,2 ponto para cada artigo publicado em Anais de Congressos, Seminários e/ou
eventos similares. (Pontuação Máxima: 5 artigos) Total: 1,0 ponto
0,5 ponto para capítulo de livro ( Pontuação Máxima: 4 capítulos) Total: 2,0 pontos
1,0 ponto para organização de livros (Pontuação Máxima: 3 organizações) Total: 3,0
pontos
2,0 pontos para produção de livro acadêmico, científico ou didático (Pontuação
Máxima: 2 livros) Total: 2,0 pontos

OBSERVAÇÃO: A PONTUAÇÃO MÁXIMA ATRIBUÍDA AO CURRÍCULO SERÁ
10,0 PONTOS, EMBORA O TOTAL DA DISTRIBUIÇÃO DE PONTOS DOS ITENS
ACIMA ULTRAPASSE ESTE VALOR.

Texto Argumentativo - Pontuação Máxima - 10,0

Na produção do texto argumentativo, serão avaliados os seguintes pontos:
Clareza (coesão e coerência)
Capacidade de síntese e correção gramatical
Adequação ao tema proposto

TOTAL GERAL - 20,0 pontos

Para a contagem de pontos classificatórios, os pontos do Curriculum Vitae e da produção do
texto argumentativo serão somados e divididos por dois. [(Pontuação do Curriculum Vitae +
Pontuação do Texto Argumentativo) ÷ 2 = Resultado Final]
Em caso de ocorrer igualdade de pontuação entre candidatos, o desempate se dará atribuindo-se
melhor colocação ao candidato que tenha obtido a maior pontuação no texto argumentativo.
Se persistir o empate, serão considerados como critérios de desempate:
a) o maior tempo de atuação do Ensino Básico,
b) o candidato de mais idade.

ANEXO 2
1. DAS AVALIAÇÕES DO CURSO
o Cada uma das disciplinas do curso será avaliada por critérios estabelecidos pelo docente
que a ministrará. Em caso de trabalhos de final de disciplina a serem realizados fora do
ambiente da sala de aula, o discente terá 30 dias corridos para prepará-lo e entregá-lo ao
professor. O desrespeito ao prazo estipulado pode ter como conseqüência a reprovação
em todo o curso e a respectiva perda de matrícula.
o Ao ser constatado plágio ou qualquer tipo de cópia em qualquer um dos trabalhos
realizados pelo discente, o mesmo poderá ser reprovado e perder seu direito à matrícula.
o Como determina a Legislação, este curso é monográfico. A monografia deverá ser
entregue à secretaria da pós-graduação do CEFET/RJ até o último dia útil do mês de
março de 2011.
2. DA FREQUÊNCIA
o O curso será composto por 10 (dez) disciplinas.. Nove das disciplinas serão oferecidas
semanalmente, às terças e quintas-feiras. Uma delas, intitulada "Tópicos Especiais",
será oferecida uma vez por mês, preferencialmente às quartas-feiras (das 18h às 22h),
podendo, esporadicamente, caso haja necessidade, ser oferecida aos sábados (das 8h às
12h).
o De acordo com o regimento dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do CEFET/RJ, a
frequência será obrigatória, só fazendo jus ao certificado de conclusão os alunos que
obtiverem 75% de frequência nas atividades programadas. Por atividades programadas
compreendem- se as aulas, debates, visitas técnicas, seminários, conferências e outras
atividades apresentadas como tal.
3. DO APROVEITAMENTO
o O aproveitamento será traduzido em notas de 0 (zero) a 10 (dez). Os estudantes que
obtiverem nota igual ou superior a 06 (seis) em cada disciplina e que tiverem a
monografia aprovada com nota mínima de 07 (sete) terão direito ao certificado de
conclusão do Curso de Especialização.
o O curso será considerado em sua totalidade, não admitindo o aproveitamento de
disciplinas feitas em outros cursos ou em anos anteriores.
4. DA ESTRUTURA
o O curso terá a seguinte composição: 480h (360 horas-aula presenciais e 120 horas-aula
de orientação e produção monográfica).
o O início do curso está previsto para segunda quinzena de março de 2010 e término
previsto para dezembro de 2010.


Roberto Borge
Coordenador do NEAB CEFET/RJ


http://br.groups.yahoo.com/group/discriminacaoracial/message/56376

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Estado não tem o direito de ostentar símbolos religiosos

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=14252

Átila Da Rold Roesler
Procurador federal da Advocacia-Geral da União, especialista em Direito Processual Civil


Reminiscências históricas e a questão do Preâmbulo constitucional

A análise da relação entre Estado e Igreja remonta à Antigüidade, onde muitas vezes se confundiam as figuras do Chefe de Estado e do líder religioso da época. Na Idade Média houve enorme influência religiosa nos Governos num período que ficou conhecido como "Era das Trevas" [01], onde as decisões políticas jamais eram tomadas sem a aprovação da Santa Igreja. Em terras brasileiras, tal relação foi bastante acentuada desde o início já que em seus primórdios o Brasil foi chamado de "Terra de Santa Cruz" e teve como primeiro ato solene a celebração de uma missa realizada em 26 de abril de 1500 pelo Frei Henrique de Coimbra.

A Constituição brasileira outorgada de 1824 estabelecia a religião católica como sendo a religião oficial do Império. As demais religiões só eram toleradas em seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo (art. 5.º). Além disso, só se permitia a elegibilidade para o Congresso àquelas pessoas que professassem o catolicismo. No Brasil, a separação entre Estado e Igreja só ocorreu oficialmente após a proclamação da República por meio do Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890.

Conforme consagrado atualmente pela Constituição Federal de 1988, o Brasil é o Estado laico, isto é, não tem religião oficial. Com isso, se reafirma a separação total entre Estado e Igreja. Para afastar qualquer dúvida nesse sentido, a Constituição determina expressamente ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (art. 19, inc. I).

Ora, por definição, Estado laico é Estado leigo, secular, neutro, imparcial, indiferente, não-confessional. Assim, há nitidamente um erro de interpretação quando se diz levianamente que o Estado brasileiro acredita em Deus pelo que foi estabelecido no Preâmbulo da atual Constituição:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL" (grifei).

O Direito Constitucional ensina que o texto preambular não possui força cogente e só tem alguma utilidade quando é confirmado pelo texto normativo que integra a própria Constituição. Ocorre que o único ponto do Preâmbulo não reforçado pelo texto constitucional foi justamente a referência a Deus. Além de não reafirmado, o artigo 19, inciso I, como já visto, aponta justamente para o contrário. Na verdade, a única interpretação possível que se pode extrair do Preâmbulo é a de que a "proteção de Deus" invocada é pertencente somente à pessoa dos constituintes originários e seu caráter é meramente subjetivo.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Partido Social Liberal – PSL contra o preâmbulo da Constituição do Estado do Acre, em que se alegava a inconstitucionalidade por omissão da expressão "sob a proteção de Deus", constante do preâmbulo da CF/88. Considerou-se que as invocações da proteção de Deus no preâmbulo da Constituição não tem força normativa, afastando-se a alegação de que a expressão em causa seria norma de reprodução obrigatória pelos Estados-membros. In verbis:

"[...] tomado em seu conjunto, esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariane, em 1946, na observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória aos Estados-membros". [02]

O trecho reproduzido acima não deixa quaisquer dúvidas de que, em virtude da ausência de caráter normativo do preâmbulo constitucional, a cláusula "sob a proteção de Deus" ali contida não pode servir a qualquer propósito interpretativo. E dessa forma consagra-se a plena liberdade de religião ou de crença do Estado brasileiro estabelecida em vários outros dispositivos constitucionais: art. 5.º, inc. VI, art. 19, inc. I, art. 150, inc. IV, b.

A consagração da liberdade religiosa plena

A liberdade religiosa se inclui entres as liberdades espirituais e sua exteriorização é forma de livre manifestação do pensamento. A Constituição previu essa liberdade de modo explícito (art. 5.º, inc. VI) e vedou qualquer relação que possa haver entre Igreja e Estado (art. 19, inc. I) consagrando o Estado laico como modelo a ser adotado de forma definitiva.

Não restam dúvidas de que "a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo" [03], como diz Alexandre de Moraes. O autor continua a ressaltar a importância do tema: "A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois, sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e à própria diversidade espiritual" [04].

Aliás, é preciso dizer que o Brasil é reconhecido como o maior país católico do mundo, conforme estudo publicado pela CNBB [05]. Entretanto, existem diversas outras religiões professadas pela população brasileira que, mesmo em sua minoria, merecem a proteção constitucional adequada. Afinal, a principal razão de um Estado não-confessional é garantir às pessoas que possam viver sua fé, seja ela qual for.

Além disso, o estado laico deve garantir o respeito e a tolerância à própria descrença, como anota Alexandre de Moraes: "a liberdade de convicção religiosa abrange inclusive o direito de não acreditar ou professar nenhuma fé, devendo o Estado respeito ao ateísmo" [06]. No mesmo sentido, Pontes de Miranda já alertava sob a ótica da Constituição anterior que: "o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito" [07], assim como a "liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e de não ter crença" [08].

A questão dos símbolos religiosos nos prédios públicos

Nessa perspectiva, parece claro que o Estado não tem o direito de ostentar símbolos religiosos, sejam eles quais forem. Mas em função da forte influência cristã em nossa sociedade, tornou-se bastante comum a colocação de crucifixos em repartições públicas, especialmente em escolas, no Judiciário e no Legislativo. Isso fez com que muitos não-cristãos se sentissem incomodados em sua fé e postulassem a sua retirada com base nos princípios constitucionais já citados. A questão não é nova e de certa forma já foi enfrentada pelo Judiciário, o que demonstra a polêmica do assunto. Entretanto, parece claro que um Estado neutro não poderia ser identificado com fé alguma.

Quando o assunto é esse, não têm faltado defensores dispostos a mitigar de forma inaceitável o consagrado princípio constitucional da liberdade religiosa em seu favor. Entre seus argumentos mais utilizados, consta que "a retirada de símbolos já instalados, mesmo que em repartições públicas, leva à alteração de uma situação já consolidada em um país composto por uma quase totalidade de adeptos da fé cristã, e agride desnecessariamente os sentimentos de milhões de brasileiros, apenas para contentar a intolerância e a supremacia da vontade de um restrito grupo de pessoas" [09].

Ora, levando-se tal argumento em consideração, parece que a suposta "agressão" é despropositada apenas em relação aos adeptos da fé cristã, sendo plenamente justificada quando envolve o sentimento da minoria da população não-cristã do país. Nesse sentido, não há qualquer fundamento que justifique que a religião majoritária deva merecer do Estado um tratamento especial do Estado. Provavelmente, isso iria instaurar um ciclo vicioso de desigualação entre crenças e que poderia culminar com a total aniquilação dos movimentos religiosos minoritários. Fosse querer reafirmar a laicidade do Estado brasileiro por esse meio, teríamos que ostentar nos prédios públicos uma incontável amostra de símbolos em alusão às diversas religiões que fazem parte da fé da população em geral, inclusive as de origem afro-brasileiras.

O que estabelece a Constituição é que o Estado brasileiro atualmente deve respeito a qualquer forma de crença religiosa e ao ateísmo indiscriminadamente, pouco importando se isso representa a "maioria" da população ou apenas uma minoria reprimida. Por isso, é evidente que o predomínio do Catolicismo no Brasil não justifica a ostentação de símbolos cristãos (crucifixo e Bíblia, p. ex.), em sua maior parte, nos órgãos públicos. A propósito do assunto, Roberto Arriada Lorea afirma que "o Brasil é um país laico e a liberdade de crença da minoria, que não se vê representada por qualquer símbolo religioso, deve ser igualmente respeitada pelo Estado" [10].

No mesmo sentido, Maria Cláudia Bucchianeri [11] escreveu o seguinte:

"A fixação ou manutenção, pelo Estado ou por seus Poderes, de símbolos distintivos de específicas crenças religiosas representa uma inaceitável identificação do ente estatal com determinada convicção de fé, em clara violação à exigência de neutralidade axiológica, em nítida exclusão e diminuição das demais religiões que não foram contempladas com o gesto de apoio estatal e também com patente transgressão à obrigatoriedade imposta aos poderes públicos de adotarem uma conduta de não-ingerência dogmática, esta última a assentar a total incompetência estatal em matéria de fé e a impossibilidade, portanto, do exercício de qualquer juízo de valor (ou de desvalor) a respeito de pensamentos religiosos" (grifei).

Outro argumento utilizado com frequência pelos religiosos favoráveis ao uso de símbolos cristãos em prédios públicos, especialmente nas dependências do Poder Judiciário, diz respeito ao fato de serem utilizados como "fontes de inspiração" [12] para a correta atuação dos agentes estatais. Inspiração para quê?, pergunta-se. Certa vez, Ives Gandra da Silva Martins chegou a escrever: "No caso da magistratura, os valores cristãos se tornam ainda mais fortemente ''fonte de inspiração'' para as decisões, uma vez que ''fazer justiça'' é, de certo modo, exercer um atributo divino. A justiça humana será tanto menos falha quanto mais se inspirar na justiça divina" [13].

Na verdade, essa afirmação do eminente Ministro deveria causar preocupação e estranheza já que a chamada "justiça divina" nem sempre se assemelha ao ideal de justiça consagrado na Constituição Federal e tido como modelo para a sociedade em que vivemos hoje. Pelo contrário, na leitura da Bíblia, um dos símbolos cristãos mais utilizados, é fácil encontrar atrocidades e massacres ordenados por Deus e perpetrados por seus seguidores, conforme relatado no "esquecido" Velho Testamento. De fato, a Bíblia possui modelos de comportamento ideais e não-ideais, mas a verdade é que ela não pode ser utilizada como "inspiração" ou tida como modelo de "justiça" a ser seguido.

Por outro lado, é sabido que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ já decidiu que o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio de laicidade do Estado [14]. Entretanto, é preciso esclarecer que a questão não está resolvida. Isso porque o CNJ deixou a cargo dos juízes a decisão acerca da permanência de crucifixos nas paredes de suas salas de audiência. No Supremo Tribunal Federal, dois ministros já se manifestaram contra a manutenção do crucifixo localizado no plenário: Celso de Mello e Marco Aurélio. Significa dizer que as salas de audiência e Tribunais não são locais de culto, assim como nenhum outro órgão estatal. De fato, a Cruz afigura-se, desde sempre, um símbolo religioso específico da fé cristã, não podendo dissociar-se desse seu significado, o que afronta a opção constitucional pelo Estado laico que já se esperava ver consolidada.

No plano internacional, recentemente a Itália foi condenada pela Corte Européia de Direitos Humanos por ostentar crucifixos em Escolas Públicas no caso Lautsi v. Italy [15]. Já na Alemanha, o Tribunal Constitucional decidiu que a coerção de participar de uma lide sob a cruz, contrariando as convicções religiosas ou ideológicas do litigante, caracteriza uma intervenção na liberdade de crença do mesmo, que acabou por enxergar ali uma identificação do Estado com a fé cristã [16]. E em outra oportunidade, o Tribunal alemão decidiu que "a colocação de cruzes nas salas de aula ultrapassa os limites aceitáveis, pois a cruz não pode ser separada de sua específica referência ao conteúdo religioso da fé cristã" [17].

Considerações finais

O assunto tratado é polêmico justamente porque aborda a convicção religiosa das pessoas e trata de questões de fé. Entretanto, não se pode perder de vista que o Estado brasileiro é laico desde 1891, quando o catolicismo deixou de ser a religião oficial. Assim, a manutenção de ornamentos religiosos em repartições públicas que não sejam museus não faz mais qualquer sentido. É preciso dizer á exaustão que a sociedade brasileira não é composta apenas por cristãos. Representantes de outras religiões, agnósticos e ateus podem sentir-se constrangidos com a exibição ostensiva dos crucifixos. Estes merecem, como qualquer objeto religioso, todo o respeito, mas não precisam ter presença em edifícios oficiais.

Por outro lado, ainda que o número de cristãos supere em muito os adeptos das outras crenças, esse conflito "não deve ser resolvido segundo o princípio majoritário na medida em que o direito fundamental à liberdade de crença visa a proteção, de maneira especial, das minorias", conforme aponta Paulo Roberto Iotti Vecchiatti [18]. Aliás, a própria idéia de democracia é concebida como o regime jurídico de defesa dos direitos fundamentais das minorias.

Portanto, a linha adotada pelo Estado constitucional brasileiro deve ser de neutralidade absoluta frente às questões religiosas conforme estabelecido pela Constituição Federal. Dessa maneira, ostentar símbolos religiosos que fazem referência apenas a uma religião padece de qualquer carga de razoabilidade na medida em que o Estado deve tratar todas as crenças com igualdade, cabendo-lhe assegurar a coexistência pacífica entre as diversas religiões e mesmo diante do ateísmo.

|Notas

1. A idéia de "Idade das Trevas" foi concebida no Renascimento, reforçada pelo Iluminismo. Para o senso comum, uma prática do período, a alquimia - embrião da química -, relacionava-se normalmente à bruxaria. As práticas inquisitoriais da Igreja levaram à perseguição de pessoas e grupos que questionassem a instituição. A própria Igreja era vista equivocadamente como monopolizadora do saber, mas controlava principalmente o saber erudito. Outra instituição feudal era a servidão, lembrada negativamente como a submissão dos camponeses à exploração da nobreza (Cf. Veja Responde. Disponível em: http://veja.abril.com.br/vestibular/fuvest-2-fase-q02-historia.shtml, Acesso em 19/01/2010).
2. STF – Pleno – ADIN nº 2.076/AC – Rel. Min. Carlos Velloso, decisão: 15-8-2002. Informativo STF, nº 27.
3. Cf. Constituição do Brasil Interpretada, 7ª. Ed., São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 150.
4. Ob. cit.
5. Cf. Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. A Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 13.
6. Ob. cit., grifei.
7. Cf. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, t. V, p. 119.
8. Ob. cit.
9. CAPEZ, Fernando. "Laicidade não significa hostilidade contra fé", Consultor Jurídico, publicado em 01-09-2009, Acesso em 18/01/2010, Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-set-01/nao-religiao-oficial-nao-significa-hostil-crencas
10.
11. LOREA, O poder judiciário é laico. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 set. 2005. Tendências/Debates, p.03. A condenação da Itália pela Corte Europeia de Direitos Humanos, por ostentar crucifixos em escolas públicas. Uma lição ao Brasil". Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2326, 13 nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2010.
12. Cf. NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. O uso de crucifixos e bíblias em prédios públicos à luz da Constituição Federal . Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2123, 24 abr. 2009. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2010.
13. O Estado Laico. O GLOBO, Primeiro Caderno, publicado em 14/04/2009.
14. Cf. Pedidos de Providência 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362.
15. Cf. PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A condenação da Itália pela Corte Europeia de Direitos Humanos, por ostentar crucifixos em escolas públicas. Uma lição ao Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2326, 13 nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2010
16. Cf. BverfGE 35, 366[375].
17. Cf. BVERFGE 93,1 de 16/05/1995.
18. (Cf. Laicidade Estatal tomada a sério. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 19 jan 2010.




Sobre o autor
Átila Da Rold Roesler é autor do livro Execução Civil – Aspectos Destacados (Editora Juruá, 2007); ex-Delegado de Polícia Civil do Estado do Paraná.

E-mail: Entre em contato
Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº2401 (27.1.2010)
Elaborado em 01.2010.
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
ROESLER, Átila Da Rold. O Estado não tem o direito de ostentar símbolos religiosos . Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2401, 27 jan. 2010. Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2010.

domingo, 24 de janeiro de 2010

''MundoBraz'': a brasilianização do mundo. Entrevista especial com Giuseppe Cocco

21/1/2010




Pensar o mundo a partir do Brasil. Pensar o mundo e suas complexidades a partir de um "ator fundamental" como o Brasil. Esse foi o desafio que Giuseppe Cocco, cientista político e doutor em história social, assumiu ao escrever seu novo livro "MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo" (Ed. Record, 2009).

"A 'brasilianização' é o devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de radicalização democrática", afirma o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nesta entrevista especial concedida por telefone à IHU On-Line.

Analisando aspectos centrais do papel do Brasil no cenário mundial, Cocco afirma que é preciso "desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas, dos pobres e que não reconhece a urgência da luta ao racismo".

Por outro lado, o Brasil é uma peça chave para a compreensão dos demais problemas e soluções existentes no mundo, no âmbito político-social. "O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa", defende. "Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano – atualizado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro", resume o cientista político.

Giuseppe Cocco possui graduação em ciências políticas pela Universite de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em ciências tecnológicas e sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou com Antonio Negri o livro "GlobAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada" (Ed. Record, 2005).

Cocco estará presente na Unisinos para o XI Simpósio Internacional IHU: "O (des)governo biopolítico da vida humana", nos dias 13 a 16 de setembro deste ano.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que quer dizer o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo?

Giuseppe Cocco – Coloquei esse subtítulo ao meu livro para dar mais força ao título "MundoBraz”. Com efeito, MundoBraz é como que uma brincadeira com relação ao sufixo "bras" que, em geral, é aplicado às empresas “brasileiras”. Aplicado ao mundo, ele se torna um oxímoro, um paradoxo para tentar dizer o que caracteriza a globalização quando a pensamos a partir do Brasil e quando pensamos o Brasil a partir da globalização. Estamos falando, na realidade, de uma nova relação entre o Brasil e o mundo, e entre o mundo e o Brasil. Isso se deve, por um lado, à importância crescente que o Brasil desempenha no âmbito dos esforços de definição dos contextos de governanças democráticas da globalização e ao fato, por outro lado, de que esses esforços passam cada vez mais por reações Sul-Sul, das quais o Brasil é um ator fundamental.


"Devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem"


Portanto, um devir-Brasil do mundo é um devir-Sul do mundo, que não implica em um deslocamento do Norte para o Sul, mas sim uma ultrapassagem da clivagem Norte e Sul. Trata-se da ultrapassagem das relações de dominação típicas da divisão do mundo em blocos imperialistas. Essa clivagem foi deslocada não porque desapareceu, mas porque, hoje em dia, podemos dizer que há algo em comum nos movimentos sociais e de resistência do mundo todo: no devir-mundo do Brasil encontranos a constituição de uma nova subjetividade, de novas lutas, de um novo tipo de sujeito de "classe", que poderíamos chamar de "a multidão dos pobres"..

IHU On-Line – Em que aspectos o mundo está se "brasilianizando"? Neste sentido, porque é importante "desinventar" o Brasil?

Giuseppe Cocco – A brasilianização do mundo foi um tema muito importante na década de 90, em toda uma literatura crítica da globalização neoliberal e suas consequências nos países centrais, que tinham um forte sistema de proteção social, e que a globalização neoliberal vinha destruindo. Seja na teoria social, econômica ou na filosofia política, vários autores usaram a brasilianização como uma metáfora negativa. O Brasil ia se tornando um pesadelo para aquelas sociedades que tinham um pacto social avançado, com altos salários, sindicatos fortes, proteção social abrangente, que passavam por um processo de fragmentação social e por uma crise civil com o aumento da violência e da exclusão social. Tudo isso era chamado de brasilianização. Para o Brasil, a “brasilianização” se tornou um pesadelo ainda maior. A perspectiva de desenvolvimento, o fato de o Brasil ser, segundo o discurso nacional-desenvolvimentista, o país do futuro, que iria se industrializar, passar da periferia para o centro, através do processo de industrialização com a "brasilianização" ia por agua abaixo. A própria modernização trazida pela globalização, ao invés de diminuir a exclusão, distribuir riquezas e sistemas de proteção, vai aumentar a exclusão (fragmentar o emprego, precarizar o trabalho), privatizar os serviços e criar ainda mais problemas em termos de dinâmica e justiça social..

A proposta em termos de devir-Brasil do mundo é dizer que há uma brasilianização (essa metáfora pode ser, sim, utilizada), mas que há outro lado muito potente do Brasil, o devir-Sul do mundo. Deste devir, o Brasil é o protagonista, não como Estado-nação desenvolvimentista, mas como Brasil dos pobres, desinventado: desinventado porque o devir-Brasil do mundo é necessariamente e ao mesmo tempo um devir-mundo do Brasil. Quando falamos dos pobres, falamos de sujeitos atravessados por questões sociais de classe e também por questões culturais, de raça, de luta contra o racismo e a desigualdade, de reservas indígenas e tudo mais.


"É preciso desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não reconhece a problemática do racismo"


Esse outro lado da "brasilianização" é o devir-Brasil do mundo, em que o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de um governo que teve, nos últimos oito anos, uma experiência inovadora, extremamente interessante, de radicalização democrática, como nas políticas culturais, nas políticas de ação afirmativa (no Prouni), na distirbuição de renda e na demarcação das reservas indigenas (como no caso da Raposa Serra do Sol). Esse outro lado implica no fato, como propõe Viveiros de Castro, de desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental e do emprego industrial, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas e que não reconhece a urgência da luta ao racismo.

IHU On-Line – No lugar do desenvolvimento econômico, você enfatiza uma espécie de desenvolvimento antropológico, situando o Brasil no centro do mundo. Como a nossa cultura influencia as outras culturas do mundo?

Giuseppe Cocco – Quando pensamos o desenvolvimento econômico, temos dois elementos, depois pontos de vista para relativizar esse conceito. O Brasil possui esses dois pontos de vista certamente potentes. Em primeiro lugar, porque o Brasil teve uma taxa de desenvolvimento econômico, em termos de desenvolvimento do PIB, entre as mais elevadas do mundo pós-guerra do século passado, mas com isso, ao mesmo tempo, o país se tornou o campeão mundial da desigualdade. Ou seja, o Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa. Ao contrário, pode ser uma máquina monstruosa de amplificação da desigualdade, da injustiça e da violência civil, que diz respeito às populações pobres. Em segundo lugar, porque a "performance" do Brasil diante da crise financeira global vem da pujança de suas políticas sociais e isso permite, na dureza da herança do desenvolvimeto desigual, pensar as alternativas à crise da própria noção de desenvolvimento.

O primeiro elemento enfatiza que a noção de desenvolvimento está em crise, e o segundo elemento afirma que, hoje em dia, a noção de desenvolvimento está em crise no mundo todo, a partir da crise mundial, que se declarou inicialmente nos pontos mais avançados do capitalismo global cognitivo, nos Estados Unidos, por exemplo, com a crise do subprime. Uma crise do próprio conceito de desenvolvimento econômico, seja quando pensamos nesse mecanismo da financeirização, seja quando pensamos nas questões do meio ambiente.

Em termos gerais, o capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados ao conhecimento e que, ao mesmo tempo, produz mais do que objetos formas de vida . Esse capitalismo produz formas de vida por meio de formas de vida, o que quer dizer que é uma produção do homem por meio do homem. Por isso podemos falar de modelo antropogenético. Portanto, se esse capitalismo é produtor do homem por meio do homem, a problemática antropológica se torna, imediatamente, social, econômica e política.


"No devir-mundo do Brasil encontranos a constituição de uma nova subjetividade, de novas lutas, de um novo tipo de sujeito de classe, que poderíamos chamar de 'a multidão dos pobres'"


Nesse sentido, isso possibilita julgar por ecúmeno todos os temas que dizem respeito à monstruosidade, para o bem ou para o mal, que caracterizam a dinâmica brasileira, que são a mistura e a mestiçagem generalizadas e ao mesmo tempo a exclusão, o racismo, a desigualdade e as práticas predatórias do agronegócio contra as Reservas Indigenas e contra Amazônia. No Brasil encontramos tudo, tudo o que há de pior e de melhor. Nesse sentido, o Brasil pode ser um monstro, um monstro bom ou mau, dependendo da capacidade de produção ética que tivermos. E nós acreditamos que essa produção ética, esse devir-Brasil do mundo, eestá do lado de uma política dos pobres.

Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro. Portanto, não é a cultura ou o patrimônio ou a raiz: para os índios, muito pelo contrário, a cultura é uma relação. Temos toda a antropologia de Viveiros de Castro, com aportes importantes para pensarmos isso.

IHU On-Line – Em seu livro, como podemos entender os conceitos de biopoder e biopolítica?

Giuseppe Cocco – Eu uso esses conceitos juntamente com Negri e Judith Revel, a partir de [Michel] Foucault. Grosso modo, Foucault definia a biopolítica e o biopoder (não fazia muita distinção entre eles) como uma nova tecnologia de poder: segundo ele, as tecnologias de poder se diferenciavam e ao mesmo tempo, se sobrepunham entre elas. Ele falava de três grandes formas de poder, A primeira é a tecnologia, arcaica, é aquela do poder soberano, que era um poder de vida e morte. Foucault sintetizava dizendo que era uma tecnologia organizada em torno da possibilidade de fazer morrer e deixar viver. A população se virava, mas tinha que respeitar determinados limites. Caso os desrespeitasse, sofria de punição soberana, vista como divina.

A segunda tecnologia é a disciplinar, que se aplicava ao corpo dos indivíduos domesticados dentro das organizações funcionalistas, modernas e industriais. O paradigma era a prisão e a fábrica. A disciplina é fundamentalmente totalizadora e organiza todo o tempo e todo o espaço. Toda a cidade era assim organizada de maneira funcionalista: bairros dormitórios, industriais, de negócios e de lazer. O tempo de vida era funcionalizado: tempo da escola, de serviço militar, de fábrica e de aposentadoria. E para quem desviasse: prisão e hospitais, inclusive psiquiátricos, concluiam o desenho. Essa é a sociedade disciplinar, que vai moldando o corpo dos indivíduos dentro do maquinismo industrial e de suas instituições concentracionárias, sabendo que, por trás da fábrica e da prisão, temos os campos de concentração, os campos de trabalho, inicialemente experimentado pelso europeus nas colónias.

A terceira forma, que se sobrepõe a essas, é a do biopoder e diz respeito à população entendida como meio ambiente. É preciso, mais do que determinar regras disciplinares ou leis punitivas, estabelecer critérios de probabilidade, de tolerabilidade social e de interação, sobre os quais se deve intervir para modular o que acontece na população. O exemplo mais clássico disso é a evolução das políticas de repressão da criminalidade, em que o problema não é reprimir todo e qualquer crime, mas manter um determinado tipo de crime dentro de um determinado nível aceitável social e estatisticamente.


"O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa"


Outro exemplo é a vacina, que inverte no princípio: não se combate o vírus ou a bactéria dentro do corpo de cada indivíduo para curá-lo. Busca-se inocular a bactéria, com determinados critérios, em toda a população, fazendo um combate preventivo. O biopoder é um poder que investe na vida como um todo, entendendo a vida da população como meio ambiente.

No Brasil, as noções de biopoder e a biopolitica são particularmente adequadas para que possamos fazer a distinção de poder sobre a vida e de potência da vida. Na vacina que foi usada, por exemplo, para fazer uma política de remoção das populações que moram em "cabeças de porco" no centro do Rio de Janeiro em nome dos problemas de higiene, temos o poder, que usa essa sua dimensão "bios" para discriminar os pobres. Mas, como não enxergar também uma biopolítica, ou seja a emergência de uma política que tem como base as lutas e a resistência dos pobres, ou seja a potência da vida dos pobres.

É o que acontece agora no debate sobre as áreas de risco, nas encostas, por causa da chuva. Por um lado há uma política necessária para avaliar o risco com relação à possibilidade de desabamentos e desmoronamentos, e portanto evitar as mortes pela dimensão biopolítica. Por outro lado, há o uso da problemática do risco em termos de biopoder, para reintroduzir a questão da remoção das favelas, para renovar o poder sobre a vida dos pobres.

O Brasil, desse ponto de vista, é um território que fica no centro desse deslocamento, primeiro porque aqui encontramos de maneira nitidas as três tecnologias de poder: arcaíco (quando a polícia soberana entra numa favela com o direito de matar); disciplinar, quando os operários do ABC paulista entram no chão de fábrica; de segurança (biopoder) quando se desenvolvem políticas de regulação do risco. Na regulação dos pobres há o poder arcaico e, ao mesmo tempo, acontece esse deslocamento de um poder que, mais do que se organizar como poder de fazer morrer e deixar viver, se organiza sobre o poder de fazer viver e deixar morrer. Porém, nisso temos uma dinâmica demográfica, de reprodução dos pobres por mestiçagem e por migração (favelização) que é completamente biopolítica, é uma potência da população. Por isso, o Brasil é o contexto no qual as temáticas do biopoder e da biopolítica são fundamentais, e é por isso, aliás, que quando Negri e eu escrevemos o livro "GlobAL", enfatizamos no título a relação entre biopoder e lutas biopolíticas.

IHU On-Line – Quais são as experiências que o senhor aponta de radicalização da democracia em nosso país e também no continente? Como o senhor interpreta o conceito da sociedade de controle?

Giuseppe Cocco – A sociedade de controle, noção proposta por Deleuze, diz respeito ao fato do poder se tornar mais uma gestão dos fluxos do que uma tentativa de dizer o que está fora e o que está dentro. O poder nessa "sociedade" se difunde como um gaz e fica dentro de nossas cabeças. Nós mesmos somos o sujeito do poder. Digamos que a sociedade de controle é um termo muito parecido com o que Foucault chama de sociedade de segurança, sociedade do risco e da probabilidade, que é um dos modos fundamentais da governamentalidade e de como funciona o biopoder.


"O capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados ao conhecimento e que produz mais do que objetos: produz formas de vida"


Quanto à radicalização democrática podemos dizer que, na América do Sul, esse processo diz respeito às experiências dos novos governos, que são todos diferentes. Porém, ao mesmo tempo, todos indicavam, em primeiro lugar, um esgotamento definitivo do projeto neoliberal, antecipando o que a crise do subprime declarou definitivamente, e, em segundo lugar, colocavam em todos os países latino-americanos novas prioridades.

Em conjunto, essas novas prioridades não se definem como a aplicação de um modelo, significando que o que acontece na América do Sul não é a hegemonia de um modelo socialista ou operário. É só pensar na riqueza e na diversidade das dinâmicas indígenas na Bolívia, nos processos constituintes na Bolivia e na Venezuela, nas experiências que dizem respeito as relações entre movimentos e governo no Brasil etc. Em todas essas experiências, às quais podemos juntar também aquelas Argentina, equatoriana e paraguaya, temos uma multiplicidade de sujeitos, linhas de mudanças e – ao mesmo tempo – a ausência de um modelo de referência. No caso do Brasil, apesar das contradições internas ao próprio governo, temos experiências inovadoras e riquissimas, em particular com a política dos pontos de cultura: uma política de radicalização democrática, pois reconhece as dinâmicas de produção cultural que já existem e revela a articulação entre a produção cultural e os movimentos.

Mas, para apreender as dimensões reais da radicalizacão democrática no governo Lula precisamos fazer a conexão com as políticas de distribuição de renda, como o programa bolsa-família. Ele foi se desenvolvendo a partir de uma política social de tipo neoliberal, condicionada e fragmentada, mas o governo foi massificando e valorizando (mesmo que timidamente). O resultado inesperado é que os pobres passaram a ter uma postura política diferente, mais autônoma. Se juntarmos bolsa-família e pontos de cultura, quer dizer o bolsa-família que tem uma dinâmica quantitativa consistente, embora moderada, e os pontos de cultura que tem uma dinâmica qualitativamente adequada aos movimentos de resistência e produção, estamos numa perspectiva só, aquela de um novo tipo de políticas públicas de constituição do comum. Algo que toma ainda mais força se a isso juntamos as políticas de demarcação continua das reservas indigenas.

IHU On-Line – Em um país marcado culturalmente pela antropofagia, como o senhor analisa fenômenos como o racismo e a mestiçagem no nosso Brasil contemporâneo?

Giuseppe Cocco – Esse é um dos debates mais importantes. O debate sobre o racismo no Brasil contém o que há de pior e de melhor no mundo, além de ser o terreno de aplicação mais forte da proposta em termos de "MundoBraz". Diante das propostas de políticas de ação afirmativa, de políticas que reconhecem a dimensão de cor da desigualdade dize-se que o Brasil não é um país racista, porque é o país da mestiçagem.


"Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para devir, alterar-se"


Isso é dito de duas maneiras bastante cínicas. O primeiro discurso, mais simplório, é de que no Brasil existe uma harmonia entre as raças. O segundo discurso, ligado ao primeiro, é só um pouco mais sofisticado e afirma que, mesmo que exista alguma discriminação, não é possível qualificá-la, à medida que ninguém no Brasil sabe quem é índio, negro ou branco. Este discurso faz um uso instrumental da sociologia e antropologia heroica dos anos 30 no Brasil, aquela que “resolveu” o quebra-cabeça das raças no momento da construção de uma ideia de povo para o estado nação moderno. Esse tipo de discurso, que é muito midiatizado, parece obrigar os movimentos que defendem ações afirmativas, que visam uma política antirracista no país, a se transformarem em movimentos que negam a riqueza mestiçagem, a tornar-se movimentos identitários.

Acho que, quando tomamos toda a problemática da antropofagia, seja em termos antropológicos, como faz Viveiros de Castro ao reconstruir o papel cultural e político da antropofagia nas sociedades tupinambás, seja nos termos do modernismo revolucionário e comunista de Oswald de Andrade, a antropofagia aparece como a qualificação de um discurso sobre miscigenação que não deixa nenhuma dúvida com relação ao uso instrumental, que foi feito na ideologia de casa grande e senzala.

Oswald fala de Canudos, por exemplo. Canudos é a referência dessa mestiçagem potente que Euclides da Cunha descobriu acompanhando a guerra que descreveu em "Os Sertões". Ele fala de Canudos como uma capital jagunça, mais precisamente, ele fala da Stalingrado jagunça. Fala da miscigenação não como um terreno de conciliação entre a casa grande e a senzala, onde a sociedade transformaria essa relação de biopoder entre o senhor e a escrava como uma ideologia de harmonia racial, mas ao contrário, em transformar a relação entre casa grande e senzala em uma relação, sim, de miscigenação, mas que depende da luta e da resistência: e nesse sentido biopolítica O verdadeiro desafio é entre aqueles que querem usar a ideologia da mestiçagem e da harmonia racial para afirmar a existência de um povo homogêneo e "cinza" que serve a manter as atuais iniquas relações de racismo e desigualdade, e a discussão da mestiçagem como continuidade do processo de caldeamento, como um arco-íris de cores. As políticas públicas de açnao afirmativa (as cotas nas universidades, por exemplo) levam em conta que esse devir da mestiçagem implica que encontremos todas as cores em todos os lugares.

IHU On-Line – Em que aspectos sua ideia de universalização do Brasil é tributária a Claude Lévi-Strauss, Gilberto Freyre e Eduardo Viveiros de Castro?

Giuseppe Cocco – No que diz respeito a Gilberto Freyre e também a Oswald de Andrade, estamos falando da sociologia, antropologia, literatura e da política do Brasil nos 20 anos da transição da República Velha para a Nova. Falamos também do esforço gigantesco do Brasil para "resolver" o quebra-cabeça construído pela própria herança da escravidão em um país que sempre foi pós-colonial, pois a dinâmica brasileira logo se tornou mais importante do que a da metrópole portuguesa, e por essa razão tinha uma dinâmica de colonização que não era apenas exógena – Portugal sobre o Brasil –, mas também endógena, como uma dinâmica brasileira.


"O lugar da utopia é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori. A nova utopia é uma desutopia: o próprio processo de construção do horizonte aberto dos possíveis"


Freyre e Andrade são como que os "heróis" dessa solução do enigma, cuja dimensão universal vem muito da capacidade que eles tiveram de olhar o Brasil a partir do exterior. Gilberto Freyre a partir dos Estados Unidos – e foi lá que ele teve a intuição de que o Brasil funcionava diferentemente – e Oswald a partir de Paris. Esse fato descoberto por eles – a especificidade brasileira indo para fora do país – é bem interessante se a colocamos em relação ao discurso que fazíamos sobre a necessidade de jogar o Brasil para o centro do mundo e desinventá-lo.

É aí que temos a riqueza da proposta de Viveiros de Castro, que recupera e sistematiza a cosmologia e o animismo dos ameríndios no Brasil. Ele recupera o perspectivismo, essa ideia de que a cultura é uma troca de trocas de pontos de vista. Viveiros de Castro, um dos antropólogos mais importantes do mundo contemporâneo, recupera o perspectivismo ameríndio, trabalhando e aprofundando o trabalho pioneiro de Lévi-Strauss. Ele foi capaz de renovar a experiência de Gilberto Freyre e Oswald, dizendo "sair do Brasil para pensar o Brasil", sendo que a saída do Brasil que ele opera não é geográfica, mas sim cultural. Ele procura o ponto de vista dos índios, e para eles o Brasil é o colonizador.

IHU On-Line – Nesse cenário do "MundoBraz", qual é o lugar da utopia e da política?

Giuseppe Cocco – O lugar da utopia, podemos dizer, é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori, mas pensar o modelo que se produz nas próprias dinâmicas de luta. A nova utopia é uma desutopia. É a afirmação de que precisamos de uma nova grande narrativa, como a ameríndia, por exemplo, antropofágica e que ao mesmo tempo aplique e determine o novo modelo. Já a política está em todo lugar, inclusive na floresta.

IHU On-Line – Em que aspectos sua obra dialoga com os aportes teóricos de Negri e Hardt?

Giuseppe Cocco – Em tudo. O "MundoBraz" é um aprofundamento do que eu tinha desenvolvido junto a Negri no livro "GlobAL". Naquele livro, criticamos completamente a clivagem Norte-Sul e afirmamos que os temas da globalização que atravessam o Norte do mundo são os mesmo que atravessam o Sul. O "MundoBraz" é um aprofundamento dessa questão, mas com essa textura antropológica, que ao meu ver é fundamental. O diálogo interno é total. A tentativa de "MundoBraz" é antropofágica, seja no sentido do que Negri e a escola negriana desenvolvem, seja no sentido de Viveiros de Castro e a antropologia imanentista. É a tentativa de fazer uma mestiçagem entre os dois.


(Reportagem de Moisés Sbardelotto e Márcia Junges)

http://www.geledes.org.br/em-debate/mundobraz-a-brasilianizacao-do-mundo-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco.html

A realidade é crua: a natureza não precisa de nós

Jan242010 Ciência, religião e o Haiti
Em Debate



por: Marcelo Gleiser

É impossível encontrar palavras para descrever a tragédia no Haiti. De longe, lemos depoimentos e jornais. Assistimos às notícias na TV, chocados em ver uma população inteira em profunda agonia, num estado de total fragilidade e de caos. Crianças perdidas de seus pais (ou órfãs) e milhares de pessoas morrendo de fome e sede.


Gangues de jovens -mais de 50% da população tem menos de 18 anos- atacando aqueles que tem algo para comer ou tentando roubar tudo o que podem. Nenhuma água, gasolina ou qualquer forma de comunicação. A vida forçada a parar por completo, um apocalipse real, provocado por forças muito além do nosso controle.


Mesmo que a ciência possa explicar as causas dos terremotos e das erupções vulcânicas, permanece incapaz de prever quando irão ocorrer. Saber a localização das falhas geológicas onde os terremotos ocorrem claramente não é suficiente. Modelos e explicações permanecem especulativos. Por exemplo, existe uma proposta que terremotos tendam a ocorrer quando há um aumento na força das marés, como em torno da época de um eclipse. De fato, um eclipse anular ocorreu três dias após o terremoto do Haiti. Infelizmente, previsões dessa natureza raramente são precisas o suficiente para salvar vidas.


A Terra é um planeta ativo, borbulhando em suas entranhas, com uma crosta formada de placas que tendem a mudar de posição em busca de um maior equilíbrio quando a pressão subterrânea aumenta. Obviamente, fazem isso sem dar a menor importância para a destruição que causam. Cataclismos naturais, como o do Haiti ou o tsunami de 2004 no oceano Índico, que causou em torno de 230 mil mortes, expõe a crua realidade da vida na Terra: precisamos da natureza, mas a natureza não precisa de nós. No nosso desespero, e sem poder prever quando cataclismos dessa natureza irão ocorrer, atribuímos tais eventos a "atos divinos". Nisso, não somos muito diferentes de nossos antepassados, que associavam divindades a quase todos os aspectos e fenômenos do mundo natural.


Talvez a transição do panteísmo ao monoteísmo, sobretudo no ocidente, tenha removido Deus do contato mais direto com os homens, relegando-o a uma presença etérea, distante da realidade do dia-a-dia. Mas muitos continuam atribuindo o que não entendem a "atos divinos", seguindo a receita tradicional do "deus das lacunas": a fé começa onde a ciência termina.


Talvez faça mais sentido associar esses cataclismos a uma indiferença divina. É horripilante testemunhar a crueldade -e até mesmo a estupidez- de certos homens de fé nesses momentos difíceis. Um exemplo é do pastor evangélico americano Pat Robertson, que recentemente atribuiu o terremoto a uma punição divina contra o povo haitiano, que supostamente assinara um pacto com o diabo para conseguir obter sua independência dos franceses. Nossos antepassados nas cavernas teriam concordado.


Dentro do contexto desta coluna, a tragédia provocada pelo tremor no Haiti nos ensina ao menos duas coisas. Primeiro, que a ciência tem limites, e que existe muito sobre o mundo que ainda não sabemos. Porém, não é por isso que devemos atribuir o que não sabemos explicar a atos sobrenaturais. Nossa ignorância deve abrir caminho ao conhecimento e não à superstição. Segundo, aprendemos que a vida -e aqui estamos nos incluindo- é extremamente frágil e deve ser protegida a todo custo. Nosso planeta, apesar de demonstrar fúria ocasionalmente, é nossa única morada viável. Devemos tratá-lo com o respeito que merece.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo".

Fonte: Folha de São Paulo

Lenda do jazz europeu Django Reinhardt faria 100 anos

24.01.2010



Django Reinhardt é apontado como o pai do jazz cigano e um dos
melhores guitarristas do gênero. Na França, shows, edições especiais
de CDs e programas televisivos homenageiam o músico.

Paris está comemorando o centenário de Jean "Django" Reinhardt com uma
série de shows e eventos especiais. Vários clubes estão investindo na
música de Django e até uma praça foi batizada na quinta-feira passada
(20/01) com o nome dele. Reinhardt completaria 100 anos neste sábado,
23 de janeiro.

Nascido na Bélgica, mas criado em Paris, Reinhardt é tido com o pai do
jazz europeu. O músico desenvolveu um estilo único de tocar guitarra
depois de um acidente doméstico ter provocado sérias queimaduras no
seu corpo, incluindo a mão esquerda.

Django foi reverenciado por seu pioneirismo nos anos 1930, e o estilo
próprio da sua guitarra é popular na França até hoje. Entre os seus
seguidores estão muitos músicos não oriundos da etnia sinti, que faz
parte do povo conhecido como cigano. Mas são os sinti franceses,
conhecidos como manouches, que realmente levantam a bandeira de
Django.

Os Maillies são uma das tantas famílias ciganas que se dedicam à
música. Eles vivem num subúrbio de Paris. Sentado no seu trailer perto
de uma fábrica abandonada, o jovem Vincent, de 23 anos, empunha uma
guitarra enquanto espera o padastro afinar a dele.

A mãe e irmãs de Vincent estão à volta e são as ouvintes quando a
dupla começa a tocar uma das favoritas de Django: I can't give
anything but love.

"Essa música é quem nós somos, mesmo que não saibamos tocá-la muito
bem", explica Vincent. "Todos na minha família tocam guitarra. Essa
música é nossa marca registrada – algo inventado pelos ciganos, e foi
Django quem fez isso."

Da tragédia ao triunfo

Reinhardt viveu em acampamentos cigano durante a maior parte da sua
juventude, aprendendo a tocar banjo, guitarra e violino ainda jovem.
Aos 18 anos, um incêndio no seu trailer causou graves ferimentos no
corpo do músico: a perna direita ficou paralisada e os dedos médio e
anular da mão esquerda ficaram seriamente compromotidos.

De forma inesperada, Reinhardt pôde voltar a andar com a ajuda de uma
bengala. Apesar de os médicos terem-lhe dito que ele não teria mais
condições de tocar guitarra, a deficiência na mão esquerda acabou
forçando-o a desenvolver uma técnica musical completamente nova. Ele
usava os dedos sãos da mão esquerda, especialmente o polegar, para
tocar solos, deixando os dedos paralisados apenas para o violão
acústico.

A genialidade de Django também se expressou na sua mistura do jazz de
New Orleans nos anos 1920, valsas francesas (valses musettes) e música
cigana. Dessa mistura de géneros surgiu o que ficou conhecido como
gypsy swing.

Em 1934, Reinhardt, ao lado do violinista parisiense Stéphane
Grappelli, formou o Quintette de Hot Club de France, que incluía ainda
o irmão de Django, Joseph, e Roger Chaput nas guitarras e Louis Vola
no baixo. Em algumas ocasiões, Pierre Ferret substituía Chaput.

O Quintette de Hot Clube de France ajudou a colocar a Europa no mapa
do jazz mundial e o se tornou um dos poucos grupos de jazz composto
apenas por instrumentos de cordas.

Gypsy jazz continua

Enquanto muitos integrantes das etnias sinti e roma foram assassinados
pelos nazistas, Djando conseguiu sobreviver à Segunda Guerra Mundial
vivendo em Paris, aparentemente aproveitando a proteção de um oficial
da Luftwaffe que admirava seu talento musical.

Durante sua carreira, Reinhardt – que preferia a pouco usual guitarra
Selmer-Maccaferri – tocou com lendas do jazz, como Coleman Hawkins,
Louis Armstrong, Duke Ellington e Dizzy Gillespie. Inúmeros músicos
contemporâneos o citam como influência fundamental.

E ainda hoje, mais de 50 anos após a prematura morte de Django, aos 43
anos, a música criada por ele permanece em evidência. Alguns dos
artistas mais famosos do jazz francês são guitarristas ciganos, como
Christian Escoude e Bireli Lagrene.

O gypsy jazz toca com frequência nas rádios francesas, e palcos para o
jazz cigano surgem por toda a parte em Paris. O mais antigo deles é o
Chope aux Puces, de propriedade de Marcel Campion, que também abriu
uma escola para o género no andar superior do clube.

"O que caracteriza essa música é um ritmo de acompanhamento que nós
chamamos de the pump", diz Campion. "É muito difícil dominá-lo. É algo
típico do ritmo. Mas se você consegue fazê-lo, você pode fazer
qualquer coisa."

Django não foi o único a inventar esse efeito, diz Campion, mas muitas
dos acordes usados pelos guitarristas de jazz atuais foram inventados
por Django, que reinterpretou com três dedos os acordes de cinco
dedos. "Isso os tornou mais simples, o que, para o jazz, foi melhor.
Ele deu a essa música uma atitude."

Nova geração

Frangy Delporte, uma das estrelas em ascensão do jazz cigano,
claramente tem algo dessa atitude, e já se apresentou em algumas das
melhores casas de jazz de Paris, como a Duc dês Lombards. O astro de
28 anos usa seu cabelo engomado para trás, assim como Django trazia.

"Ouço Django desde criança por causa do meu tio. Era a única coisa que
ele ouvia", lembra Delporte. "Depois eu comecei a ouvir tecno, dance,
esse tipo de coisa; e então, de repente, eu peguei uma guitarra e
comecei a tocar canções de Django. Comecei a ouvir a música dele o
tempo todo. Ela me tocou e me fez querer tocá-la."

Talvez a habilidade de revelar sensibilidades musicais seja outro dos
legados de Django, palavra que, em romani, significa "acordei".

Autores: John Laurenson/Louisa Schaefer/Alexandre Schossler

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