quarta-feira, 4 de agosto de 2010

‘Quando fala de judeus, Freyre faz generalizações grosseiras’

Moacyr Scliar lançou seu primeiro livro, “Histórias de um médico em formação”, em 1962, e não parou mais de escrever, nos mais variados gêneros – romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio. Nessa obra vasta e diversificada, duas vertentes se destacam: o namoro com o imaginário fantástico e a pesquisa da tradição judaico-cristã. Autor de “O ciclo das águas”, “A estranha nação de Rafael Mendes”, “O exército de um homem só” e “O centauro no jardim”, este incluído na lista dos cem melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos feita pelo National Yiddish Book Center, nos Estados Unidos, Scliar vai participar da mesa “Ao correr da pena”, em homenagem a Gilberto Freyre, ao lado de Ricardo Benzaquen e Edson Nery da Fonseca, marcada para às 10h desta quinta-feira (5). Nesta entrevista, ele fala sobre o suposto anti-semitismo do sociólogo pernambucano.

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- Como ê quando você estabeleceu contato com a obra de Gilberto Freyre, e que impacto ela teve? Que leituras foram mais marcantes?

MOACYR SCLIAR: Comecei a ler Gilberto Freyre muito cedo, movido pela curiosidade em relação à sua obra. Conheci assim Casa grande & senzala, Sobrados e mucambos. Depois, jovem médico, li Sociologia da medicina, aí com interesse profissional.

- Sendo essencialmente um ficcionista, como você avalia o estilo literário dos ensaios de Freyre?

SCLIAR: Gilberto Freyre se considerava antes de tudo um escritor, e de fato, seus textos pouco se parecem com a literatura científica à qual a Sociologia e a Antropologia se vinculam. É um estilo informal, e isso atrai os leitores, mas não creio que se trate de obra-prima. Quando se trata de sua literatura propriamente dita – poesia, por exemplo – temos umas coisas bem fraquinhas. Em suma, acho que sua contribuição é a abordagem original da sociedade brasileira.

- Parece difícil imaginar o surgimento hoje no Brasil de um intelectual do porte de Gilberto Freyre nas nossas ciências sociais, ou mesmo de projetos abrangentes como o de “Casa Grande & Sensala”. A que atribuir isso?

SCLIAR: Acho que nossos pesquisadores estão mais focados, mais objetivos. Perde-se em abrangência, mas ganha-se em precisão. É verdade que o estilo acadêmico às vezes é obscuro, e que se beneficiaria um pouco dessa liberdade de linguagem que o Freyre tanto prezava.

- Há quem acuse Gilberto Freyre de anti-semitismo. Como pesquisador da tradição judaica, como você analisa o tratamento (”caricaturesco e impiedoso”, segundo Darcy Ribeiro) que Freyre dá aos judeus em alguns trechos de Casa grande & Sensala. Por exemplo: “…Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um excesso de especialização quase biológica (sic), que lhes aguçando o perfil de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de posse, as mãos incapazes de semear e de criar. Capazes só de amealhar”.

SCLIAR: Quando fala de judeus, Freyre volta e meia faz generalizações grosseiras, incompatíveis com quem trabalha numa área humanística. Mas eu não diria que se trata de anti-semitismo – a propósito, ele foi membro da Academia de Artes e Ciências de Tel Aviv, que dificilmente aceitaria um anti-semita assumido – mesmo porque ele também fala com admiração de certos caracteres que (de novo, equivocadamente) considera judaicos. É um caso de generalização selvagem, apressada. Sim, judeus praticaram a usura na Idade Média, mas fizeram isso porque o regime feudal praticamente os obrigou a administrar dinheiro para empréstimo, ou porque estava “no sangue”, como diziam os nazistas? Um intelectual como Gilberto Freyre deveria deixar essas coisas bem claras, mas ele não o fez.

- Fale sobre seus próximos projetos, como escritor. Após mais de 70 livros publicados, qual é o desafio que a escrita ainda impõe?

SCLIAR: Em setembro deve sair, pela Companhia sãs Letras, “Eu vos abraço, milhões”, a história de um jovem gaúcho que, em 1929, viaja ao Rio para entrar no Partido Comunista. Isto não acontece, mas ele vive várias aventuras de caráter político, trabalha na construção do Cristo Redentor, presencia a Revolução de 30 e tem vários casos com mulheres. É a história do sonho revolucionário que minha geração ainda viveu…

http://colunas.g1.com.br/maquinadeescrever/2010/08/04/%E2%80%98quando-fala-de-judeus-freyre-faz-generalizacoes-grosseiras%E2%80%99/

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