quinta-feira, 4 de março de 2010

Muito além da igualdade formal

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Rodrigo Martins

Muito além da igualdade formal

03/03/2010 11:19:26

Rodrigo Martins


Fundador e presidente da ONG Educafro, que oferece cursos preparatórios para a população negra ingressar na universidade, o frei franciscano David Santos é um dos principais defensores da reserva de vagas para grupos étnicos marginalizados em instituições de ensino superior. Entre os dias 3 e 5 março, ele acompanhará de perto as audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a validade do sistema de cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB), alvo de uma ação de inconstitucionalidade movida pelo partido Democratas (ex-PFL).

“As cotas são medidas temporárias que deverão ser adotadas por 10 ou 15 anos. Seu objetivo é o de despertar a sociedade para que se abra e execute a igualdade material, saindo da igualdade formal, que é mentirosa e beneficiou sempre um só segmento da nação”, afirma Santos. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista concedida à CartaCapital. Neste link, o leitor também pode acessar a íntegra da reportagem “A última instância das cotas raciais”, sobre o julgamento que pode redefinir o futuro dos programas de inclusão nas universidades públicas brasileiras.

CartaCapital: No Brasil, é realmente necessário instituir cotas para o ingresso de negros nas universidades?
David Santos: As cotas são medidas temporárias que deverão ser adotadas por 10 ou 15 anos. Seu objetivo é o de despertar a sociedade para que se abra e execute a igualdade material, saindo da igualdade formal, que é mentirosa e beneficiou sempre um só segmento da nação. Pela primeira vez, podemos ter a alegria de ver o Brasil fazendo as pazes com o seu passado mais longínquo e cruel, os descendentes das vítimas da escravidão. Um dos preconceitos mais danosos para o tecido social brasileiro é o preconceito gerado pelo medo de que a grande massa negra tome consciência plena das injustiças que seu povo sofreu ao longo destes 510 anos de Brasil. Este medo só pode nascer no coração dos que não querem mudança e igualdade de direitos para todos.

CC: Os críticos das cotas argumentam que, ao legislar sobre o conceito de raças, o Estado estaria legitimando a diferenciação e a segregação do cidadão por critérios racistas. O senhor concorda com esse tipo de avaliação?
DS: Qualquer pessoa, minimamente esclarecida, verá que o Brasil colonial sempre legislou a partir das etnias, dando privilégios aos eurodescendentes. Quem está acompanhando com o coração desarmado a discussão das cotas, está testemunhando o contrário do que dizem os críticos: Está diminuindo a separação e aumentando a integração entre negros e brancos. Em dezenas de universidades que têm um plano de inclusão há mais de 10 anos vemos muitos casamentos entre brancos e negros. Eles jamais teriam se conhecido se não existissem as cotas e outros planos de inclusão. O povo brasileiro quer integração. Somente quem vive com a cabeça fora do Brasil e não se liga no coração deste querido povo é que fala estas besteiras, dizendo que está acontecendo ou vai acontecer o "aumento de ódio", sem comprovação. As experiências das cotas na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) ou na UnB (Universidade de Brasília) já têm alguns anos. Por que os contrários não fazem uma pesquisa nestas unidades?

CC: Há quem sustente que o Estado, ao estabelecer cotas sociais (pela renda ou para alunos oriundos de escolas públicas), já estaria beneficiando a população negra...
DS: Ficamos radiantes de alegria ao perceber que a verdadeira preocupação com a inclusão de brancos pobres nas universidades só aconteceu no Brasil de maneira concreta depois que a comunidade negra arregaçou as mangas e saiu para a luta por inclusão nas universidades. Em cada instituição de ensino, ao se conquistarem as cotas para negros, colocávamos também as cotas para indígenas e alunos brancos pobres da rede pública. Deu certo! Dificilmente se vêem grupos de brancos pobres lutando pelo direito à inclusão nas universidades. Portanto, em nossa convicção é justamente o contrario: só na medida em que o Brasil passou a se preocupar com a inclusão dos negros é que as instituições começaram a se preocupar com seriedade com a exclusão dos brancos pobres. Os brancos pobres estão tendo consciência e estão retribuindo, entrando na luta.

CC: Mas não há outras formas de inclusão além da reserva de vagas a estudantes de uma determinada etnia?
DS: Não se vê como gesto responsável atacar um problema longamente enraizado na sociedade brasileira, como a exclusão dos negros, com um só tipo de política. Para quem acompanha com seriedade este movimento por cidadania inclusiva, sabe que as cotas nas universidades particulares já foram implantadas, e com um sucesso esplêndido, dentro do ProUni (Programa Universidade para Todos, do governo federal). Trabalhamos com sabedoria e introduzimos cotas para negros, indígenas e professores da rede pública. O resultado, em apenas cinco anos, é extraordinário: entraram mais negros nas universidades brasileiras do que nos 505 anos anteriores de Brasil. Houve aumento do conflito ou ódio racial? Onde? Por que os contrários nunca provam esta afirmação, apesar dos oito anos de implantação da experiência nas primeiras instituições públicas do Brasil? Elas hoje já são imitadas por quase 100 instituições de ensino.

CC: Alguns defensores do sistema de cotas raciais argumentam que, ao questionar a validade desta forma de política de inclusão, a maioria dos críticos procura preservar antigos privilégios. O senhor compartilha dessa avaliação?
DS: Infelizmente tem uma grande dose de verdade nisso. Sei que eles se ofendem quando falamos, dando ênfase a este aspecto, mas pessoas boas também se equivocam temporariamente. Por que, nas centenas de mandados de segurança contra as cotas na UERJ em 2003, todos os autores estavam exigindo suas vagas perdidas para cotistas nas faculdades de medicina, direito, etc., onde o governo investe por aluno mais de 5 mil reais ao mês? Por que nem um dos mandados de segurança exigia vaga em faculdade de pedagogia? Em serviço social? O bonito é que este assunto está gerando debates profundos e as pessoas que são contra as cotas, mas são éticas, quando confrontam e aprofundam estes assuntos, logo percebem o equívoco.

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