Luiz Orlando Carneiro, Jornal do Brasil
BRASÍLIA - A constitucionalidade ou não do sistema de reserva de cotas para ingresso nas universidades, com base em critérios raciais, deve ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal, neste primeiro semestre, depois de uma audiência pública a ser realizada nos dias 3, 4 e 5 de março, para a qual foram selecionados, pelo ministro Ricardo Lewandowski, 38 dos 252 debatedores inscritos – entre os quais o próprio ministro de Promoção da Igualdade Racial, Edson Santos, professores universitários, antropólogos e diversos representantes de entidades e movimentos da sociedade civil.
Quatro dos 10 ministros habilitados a votar já se manifestaram em ocasiões diversas, de uma forma ou de outra, favoráveis à polêmica “ação afirmativa”: Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. O mais novo integrante do tribunal, Dias Toffoli, está impedido de participar do julgamento por que, na condição de advogado-geral da União, teve de se pronunciar oficialmente sobre a matéria – e o fez, na linha de que o acesso ao ensino “não deve basear-se, exclusivamente, no critério do mérito”.
O ministro Lewandowski é o relator de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186) proposta pelo DEM, tendo como alvo o sistema da Universidade de Brasília, em vigor há mais de quatro anos, e de um recurso extraordinário contra acórdão da Justiça gaúcha que garantiu o mesmo tipo de ação afirmativa adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As duas petições serão julgadas em conjunto, e o relator garante que os critérios que usou para a seleção dos habilitados à audiência pública levaram em conta “a participação dos diversos segmentos da sociedade, assim como a mais ampla variação de abordagens sobre a temática das políticas de ação afirmativa de acesso ao ensino superior”.
Em 31 de julho do ano passado, o presidente do STF, Gilmar Mendes, negou o pedido de liminar na ADPF do DEM, por entender que a questão deveria ser examinada diretamente no mérito, “em apreciação célere nesta Corte”. Mas chegou a adiantar uma posição flexível com relação ao assunto: “Na qualidade de medidas de emergência ante a premência e urgência de solução dos problemas de discriminação racial, as ações afirmativas não constituem subterfúgio e, portanto, não excluem a adoção de medidas a longo prazo, como a necessária melhora das condições do ensino fundamental”. Para Mendes, “a questão da constitucionalidade de ações afirmativas com o objetivo de remediar desigualdades históricas entre grupos étnicos e sociais, com o intuito de promover a justiça social, representa um ponto de inflexão do próprio valor da igualdade”. Mas deixou no ar a indagação, por ele mesmo feita, de se “em relação ao ensino superior, o sistema de cotas raciais se apresenta como o mais adequado ao fim pretendido”.
Pró cotas
Quando era presidente do STF, em novembro de 2001, o ministro Marco Aurélio defendeu, num seminário sobre “Discriminação e sistema legal brasileiro”, cotas para a população negra no acesso a empregos públicos e à educação superior como “legislação imperativa ante a necessidade de o estado intervir para corrigir desigualdades”. Além disso, adotou a reserva de 20% das vagas nos serviços terceirizados do Supremo para afrodescendentes.
Em abril de 2008, no início do julgamento de ações de inconstitucionalidade do DEM e da Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (Confenen) contra dispositivos da lei que criou o Programa Universidade para Todos (Prouni), o ministro-relator Ayres Britto votou a favor do tratamento diferenciado que o programa dá a negros, indígenas, deficientes físicos e egressos de escolas públicas na concessão de bolsas de estudo. Deu ênfase ao inciso 3º da Constituição, que inclui entre os “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” a “erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais”, e citou uma frase de Ruy Barbosa: “A verdadeira igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”.
Joaquim Barbosa – que pediu vista das duas ações contra o Prouni – é citado nos pareceres da AGU e da Procuradoria-Geral da República. Em artigo publicado na “Revista de Informação Legislativa” (1999) ele preconizou a “obrigatoriedade de inclusão, em percentuais compatíveis com a respectiva presença de cada grupo em uma dada comunidade, de representantes de grupos sociais historicamente marginalizados”. Na mesma revista, antes de ser nomeada para o STF, Cármen Lúcia escreveu que “sem oportunidades sociais, econômicas e políticas iguais, a competição – pedra de toque da sociedade industrial capitalista – e, principalmente, a convivência são sempre realizadas em bases e com resultados desiguais”.
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no parecer enviado ao STF, qualificou a política de cotas de “justiça distributiva”, já que “a exclusão do negro na sociedade justifica medidas que favoreçam e que ensejem uma distribuição mais igualitária de bens escassos, como são as vagas em uma universidade”.
Advogada alega que negros não são única minoria
A advogada do DEM na ADPF 186 – também convidada para a audiência pública marcada para março – é a procuradora federal Roberta Fragoso Kauffman, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, com tese sobre o tema. Para ela, “a adoção de políticas afirmativas racialistas – nos moldes em que adotados pela UnB – decorre mais de certo deslumbramento precipitado em relação ao modelo dos Estados Unidos, país criador de tal política para negros, aliado à análise superficial dos dados estatísticos relacionados aos negros, do que, efetivamente, da necessidade de tal modelo no Brasil”.
Ainda segundo Roberta Kauffman, “a constitucionalidade, ou não, das medidas afirmativas vai depender, sobretudo, da análise do contexto histórico-econômico-social-cultural em que foram implementadas”. E exemplifica: “Se considerarmos que todo modelo de Estado Social tem por pressuposto a integração de todas as minorias por meio de ações afirmativas, deveríamos então conviver com a necessidade de implementação, em nossos sistema jurídico, de medidas de inclusão para ciganos, homossexuais, nordestinos, nortistas, transexuais, imigrantes, dentre outras inúmeras minorias reconhecidas no Brasil. Apesar de todas as minorias precisarem da proteção estatal contra o preconceito e a discriminação, nem todo projeto de inclusão forçada, via ação afirmativa, poderá ser considerado válido e constitucional, por ofensa à razoabilidade”.
21:15 - 10/01/2010
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2010/01/10/e100113313.asp
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