quinta-feira, 16 de julho de 2009

DISCRIMINAÇÃO RACIAL & DESIGUALDADE SOCIAL NA ORDEM DO DIA: algumas considerações sócio-jurídicas sobre a criação de políticas de ação afirmativa


O intenso debate em curso no espaço público em torno do binômio: raça & classe - principalmente depois que a mídia expôs a guerra de posições travada entre os lados contra e a favor da criação de políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos (como as cotas) para afro-descendentes na educação pública superior e pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial - coloca na centralidade do debate a questão “Discriminação Racial & desigualdade social”.
A discriminação racial existente em nosso país exclui os membros da comunidade negra da sociedade geral e “relegando-os a uma cidadania amedrontada" (ABREU, 1999, p.151), conforme evidenciam as diversas análises de natureza sociológica e antropológica, bem como os indicadores sociais produzidos por pesquisas realizadas pelas diversas instituições que têm se debruçado sobre o problema, entre outras: o IPEA, o IBGE, e o PNUD (ONU) que apontam a grande marginalização desse grupo social na educação, no mercado de trabalho, na expectativa de vida etc., demonstrando o abismo quanto à qualidade de vida e poder econômico que separam a população branca da negra.
Assim, o tratamento mais favorável dado pelo Estado a esse grupo social vulnerável, justifica e autoriza a criação de políticas públicas particularistas de redistribuição de renda e equalização de posições excessivamente desvantajosas, dentre as quais as políticas de ação afirmativa (também conhecida pelos termos: discriminação positiva, ação positiva, ou discriminação inversa), objetivando alcançar a igualdade real, pois é dever de um Estado de Democrático de Direito Social promover o equilíbrio das clivagens sociais, propondo estímulos regulativos e materiais a favor da Justiça Social, reajustando as condições reais prévias à aquisição de bens materiais e imateriais indispensáveis ao próprio exercício de direitos, liberdades e garantias pessoais.
Ressalte-se que o princípio da igualdade e a noção de acesso igualitário aos procedimentos
[2] estão para além da proposta de integração igualitária no sistema, devendo ser lidos como “neutralização de desigualdades fáticas na consideração jurídico-política de pessoas e grupos”, bem como o desenvolvimento numa esfera pública pluralista da “idéia que as diferenças sejam recíproca e simetricamente respeitadas” (NEVES, 2006, p. 170).
Nesse sentido, é que Marcelo Neves enfatiza que, em virtude da presença da discriminação social negativa - implicando obstáculos reais ao exercício de direitos –, a discriminação jurídica afirmativa em favor de determinados grupos e indivíduos se justifica, havendo, nesse caso, perfeita correlação lógica entre o fator de discrímen e a desiquiparação a ser, porventura, procedida.
No campo jurídico, o debate entre operadores do Direito, professores e pesquisadores é centrado na oportunidade, conveniência e constitucionalidade das políticas editadas pelo Estado brasileiro sob diversos argumentos, dentre os quais: violação do princípio da igualdade formal, do mérito, da proporcionalidade e da razoabilidade, da Federação, da autonomia universitária, e até mesmo a inexistência de critérios seguros ou científicos para se identificar os beneficiários das medidas destinadas aos pardos e às pessoas com deficiência. Outras críticas são dirigidas aos critérios adotados por algumas universidades para selecionar e identificar os beneficiários das políticas afirmativas, como ocorre no processo de seleção da Universidade de Brasília e na Universidade Federal do Paraná.
Mas, a questão sobre a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa também passa, especialmente, pelo paradigma jurídico com o qual o intérprete opera, como, por exemplo, como quando do ponto de vista do positivismo jurídico, a ausência do termo “ação afirmativa” no Texto Constitucional vedaria a criação dessa política pelo Estado, porque essa perspectiva do pensamento jurídico opera exclusivamente com o método lógico-dedutivo, a qual assumindo os princípios da coerência e da completude do ordenamento jurídico, procura a melhor norma jurídica dentre as normas positivas válidas, descartando assim considerações interpretativas sobre as demandas e necessidades humanas em uma sociedade (FERES JÚNIOR e SILVA, LUIZ FERNANDO, 2006, p. 24).
Contudo, esse debate não evidencia a ampla base normativa e principiológica da legislação internacional e nacional em vigor, que lastreia a implantação das medidas afirmativas pelo Estado, a saber:
a) na ordem jurídica internacional, as diversas convenções, tratados, pactos e programas, que além de proibirem toda forma de discriminação, também prevêem a adoção de políticas de promoção da igualdade, apesar de não utilizarem a expressão “ação afirmativa” e sim “medidas especiais”. Destacamos, dentre outras: A Convenção sobre a Discriminação em Emprego e Profissão nº 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, artigo 5o, item 1; a convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo 1o, item 4; a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), artigo 4o, item 1; e A Declaração e o Plano de Ação de Durban, de 2001, artigos 99 e 100;
b) Na ordem jurídica doméstica: b.1) NO ÂMBITO CONSTITUCIONAL, na Carta da República em vigor, destacamos: artigo 1o, inciso III; artigo 3º, incisos I, III e IV; artigo 4º, incisos II e VIII; artigo 5o,, incisos XLI e XLII e parágrafo 2o; artigo 7o,, caput, e inciso XXX; artigo 23, inciso X; artigo 37, inciso VIII; artigo 145, § 1º; artigo 170, incisos VII; artigo 179; e artigo 227, inciso II; b.2) NO ÂMBITO DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL, destacamos: o decreto-lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas; decreto-lei 5.452/43 (CLT), que estabelece em seu art. 373-a, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres; Lei no 8.112/90, que determina, em art. 5o, § 2º, reserva de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da união; Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, reserva para as pessoas portadoras de deficiência no setor privado; lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de pessoas portadoras de deficiência; lei nº 9.029, de 13/04/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais, ou de permanência da relação jurídica de trabalho; lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 3º, cria “reserva de vagas” para mulheres nas candidaturas partidárias, e Lei 10.639/93, que altera a lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
Por fim, pode-se dizer que hoje em dia foi criado um alto grau de consenso no Brasil em torno das ações afirmativas, não obstantes ocorrência de divergências como as acima expostas, notadamente as alegações sobre a inconstitucionalidade das mesmas. Contudo, não podemos olvidar que a política de ação afirmativa – em que pese sua relevância – é apenas um dos meios que pode ser utilizado como instrumento capaz de propiciar mobilidade social à comunidade negra, sem olvidar outras formas mais fecundas de obter justiça social.
VI – Referëncias Bibliograficas
ABREU, Sergio. Os descaminhos da tolerância: o afro-brasileiro e o princípio da isonomia e da igualdade no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.
FERES JÚNIOR e SILVA, Luiz Fernando Martins da. 2006. Ação Afirmativa. In: Dicionário De Filosofia Do Direito, Vicente de Paulo Barretto (Coord). São Leopoldo e Rio de Janeiro: Editora Unisinos e Editora Renovar, 2006.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil – o Estado democrático de direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[1] Luiz Fernando Martins da Silva. Membro Efetivo do IAB, Advogado e professor de Direito da UCAM/IPANEMA (licenciado) no Rio de Janeiro. E-MAIL:Luiz.fernandoadv@ig.com.br.
[2] A concepção dworkiana “do direito de igual respeito e consideração”: direito a “ser tratado como um igual” distinguindo-se do direito a “igual tratamento”, que Marcelo Neves corretamente diz que é caso de “falta de reconhecimento”.

0 comentários: