terça-feira, 6 de julho de 2010

Ex-ministra Matilde diz não vê sentido em Estatuto sem cotas

Ex-ministra Matilde diz não vê sentido em Estatuto sem cotas
Por: Redação - Fonte: Afropress - 5/7/2010

S. Paulo - Dois anos, quatro meses e dez dias depois de deixar o cargo, na primeira entrevista em que falou abertamente de sua exoneração da SEPPIR e da gestão do seu sucessor, o deputado Edson Santos, a ex-ministra Matilde Ribeiro manifestou desaprovação ao acordo que resultou na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Senado.

“Todo projeto tem uma alma. O centro do Estatuto são as ações afirmativas para a população negra. Da forma como foi agora, esse centro foi comprometido. O esqueleto se mantém, mas não faz sentido a aprovação do Estatuto sem as cotas, assim como não faz sentido o Estatuto sem uma visão que fortaleça essa construção da política da igualdade racial, que ainda não é vista pela sociedade brasileira como importante”, afirmou.

Para a ex-ministra, que faz questão de ressalvar que não está alinhada com os movimentos que pregam o veto e evita críticas direta a direção da SEPPIR, que conduziu o processo de negociação com o senador Demóstenes Torres, do DEM, de Goiás “faltou análise estratégica, faltou análise política”.

“Olhando de fora, a impressão é de que o momento estratégico era até novembro do ano passado. Em não tendo sido votado até novembro, devia ter sido feita uma avaliação de deixar as coisas e retomar lá na frente em outra conjuntura”, acrescenta.

Segundo a ex-ministra que, no final deste mês completa 50 anos, “o conteúdo do Estatuto tinha de ser mais contundente”. “Se tivesse nesse papel de negociação não forçaria para que ele fosse votado nesse momento”, insiste.

Na entrevista, que concedeu ao editor de Afropress, jornalista Dojival Vieira, Matilde conversou por quase duas horas na sede da Viração (ONG que publica a revista "Viração", feita por jovens da periferia e da Febem e apoiada pela Unesco e pelo Unicef, na Rua Augusta), sobre a sua exoneração do cargo acusada de gastos excessivos no cartão corporativo, o que ela chama de uma “chapoletada”; da SEPPIR, do Governo Lula e do papel político que acabou de assumir.

Ela foi convidada na semana passada pela direção do PT paulista a assumir uma das suplências – a 2ª – do empresário e apresentador Netinho de Paula, candidato ao Senado pelo PC do B na coligação com o Partido. Observou ter recebido o convite com surpresa “porque não estava esperando esse tipo de retorno”. “Embora não estivesse pleiteando é hora de voltar”, acrescentou.

Leia, na íntegra, a entrevista da ex-ministra a Afropress.

Afropress - Ministra qual é a sua avaliação sobre o acordo feito pela SEPPIR para aprovar o Estatuto da Igualdade Racial, no Senado?

Matilde Ribeiro - Todo projeto tem uma alma. O centro do Estatuto são as ações afirmativas para a população negra. Da forma como foi agora, esse centro foi comprometido. O esqueleto se mantém, mas não faz sentido a aprovação do Estatuto sem as cotas, assim como não faz sentido o Estatuto sem uma visão que fortaleça essa construção da política da igualdade racial, que ainda não é vista pela sociedade brasileira como importante.

O momento em que foi votado não foi dos melhores. O presidente Lula não precisava de nenhum marco legal. Foi esse Governo que criou a SEPPIR, a política para os quilombolas, ou seja: apresentou proposição de mudanças fundamentais na política da igualdade racial. Era melhor aguardar um pouco mais e garantir negociações que não tirassem a essência do Estatuto.

O conteúdo do Estatuto tinha de ser mais contundente. Se tivesse nesse papel de negociação não forçaria para que ele fosse votado nesse momento.

Faltou análise estratégica, faltou análise política. Olhando de fora, a impressão é de que o momento estratégico era até novembro do ano passado. Em não tendo sido votado até novembro, devia ter sido feita uma avaliação de deixar as coisas e retomar lá na frente em outra conjuntura.

Afropress - Mas, a SEPPIR alega ter promovido reuniões em que ouviu entidades negras a respeito do acordo e da aprovação?

Matilde - Não adianta fazer uma avaliação chamando para uma reunião com 20, 30 pessoas. Talvez fosse o caso de se fazer uma audiência pública no formato que o STF promoveu para as cotase, no caso do Estatuto. Todo o debate feito acabou desgastando, agora tudo foi apressado demais.

Afropress - Faltou visão, então, de quem negociou?

Matilde - Tenho dificuldade de dizer isso. O próprio senador Paim teria dito que não tinha mais como manter os mesmos interesses naquele momento. Em relação ao ex-ministro Edson , todo o político quer deixar uma grande marca. A minha dúvida é se essa é uma grande marca. O contexto para o Brasil não era favorável.

Não existem leis completas. Dialogar e ter como principal interlocutor o DEM.. Não faz parte das minhas opções políticas. O que vejo é o seguinte: está feito, será sancionado e temos de tomar como lição e procurar construir anteparos a isso.

Por isso temos de estar atentos a política de quilombos, ampliar o diálogo com quem toma decisões na política. Outra coisa: não é hora de mexer com esse negócio [a votação da ADI dos quilombos] no Supremo Tribunal Federal.

Duas coisas considero fundamentais na agenda política: a manutenção do alerta em relação as cotas e a questão quilombola. A política de quilombos tem de ter respaldo na sociedade. As condições exigem respostas contundentes por parte do Governo.

O Estatuto está em baixa, mas é só uma peça do jogo. Isso não começou aqui, mas também não termina aqui.


Afropress - Se convidada, a senhora estará na cerimônia que deve acontecer no Planalto para a sanção do Estatuto pelo Presidente Lula?

Matilde - Não faço questão de estar lá. Faço questão de continuar discutindo o rumo da política da igualdade racial no Brasil. É um evento na história que pode ser revertido com uma avaliação do processo. Uma vez que chegou a esse ponto e não tem uma movimentação de peso para mudar o rumo, o sancionamento vai acontecer. Cabe a quem tem visão crítica, entender que isso aconteceu e não entregar o jogo.

Não me neguei a participar de nenhum momento estratégico, de dialogar com o PT, com o Movimento Negro. Mantive uma relação muito próxima em relação a CONAQ. Me coloco como colaboradora. Eu tomei a decisão de não fazer enfrentamentos. Mas, não faço questão de estar lá.

Afropress - Como é que foi e é a sua relação política com o seu sucessor, o ministro Edson Santos?

Matilde - Em relação ao ministro Edson, ele nunca foi meu concorrente, meu rival. Fiquei muito na torcida de tudo dar certo, embora sofrendo o impacto da "chapoletada".

Afropress - A senhora não esteve na II Conferência de Promoção da igualdade Racial, realizada em Brasília, em junho do ano passado...

Matilde - Não fui convidada.

Afropress - Passados mais de dois anos, a senhora pode explicar melhor sua saída do Governo?

Matilde - Não tenho dúvida nenhuma de que minha saída do Governo foi o resultado de uma afronta ao Governo Lula e a construção da política de igualdade racial. Não foi um recado, foi uma “chapoletada”. A questão mais concreta foi a com a BBC [a entrevista em que ela disse que quem foi açoitado a vida inteira não tinha obrigação de gostar de quem o açoitou].

Uma resposta talvez infeliz da minha parte levantou uma onda de questionamentos. Tudo porque eu disse que quem tinha a lembrança do açoite, não tinha porque ter boas lembranças de quem o escravizou.

A situação no Brasil não está resolvida. Existem escravizados e escravocratas.

O Alexandre Garcia [jornalista da Rede Globo] chegou a dizer que eu não tinha condições de ser ministra. Essa situação me custou uma situação muito difícil, fui alvo de questionamento na Procuradoria da República, por parte da senadora Kátia Abreu, questionando se a afirmação não configurava prática de racismo. Ou seja: estava se criando a possibilidade de uso contra mim, de uma Lei criada para definir que racismo é crime.

Estou citando esse fato para dizer que já era alvo do interesse midiático, não por mim, mas por quanto a questão racial incomoda. Não era a mim, era ao presidente Lula, o destinatário desse tipo de questionamento.

Afropress - A senhora já se queixou em público de não ter tido apoio do Movimento Negro...

Matilde - Pelas minhas escolhas políticas acabei ficando sem apoio. O Movimento Negro não agiu a contento. A defesa foi pequena. Eu saí em acordo com o Presidente Lula.

Afropress - A senhora guardou alguma mágoa, do presidente por tê-la exonerado?

Matilde - Tenho uma admiração muito grande pelo Presidente Lula, pela condução que está sendo dada, com todas as contradições, tem um investimento em mudança. Meu acordo com o Presidente Lula foi de ser colaboradora, tendo por alvo a SEPPIR. Sou uma pessoa extremamente comprometida com a condução dessa política.

Afropress - Como a senhora enfrentou, de repente, o furacão da sua exoneração do Governo acusada de extrapolar gastos com dinheiro público?

Matilde - Minha vida pessoal foi virada de cabeça prá baixo. Não nasci em berço de ouro. Ainda machuca muito o fato de ter saído do governo com um ataque público de uma coisa que não fiz. Minha família, minhas irmãs [ela tem seis irmãs, duas do casamento do seu pai, Manoel, já falecido, com dona Cida, a quem considera sua segunda mãe] sofreram muito, até mais do que eu. A Cida, que todas temos como nossa segunda mãe, me ligava dizendo que a vizinha tinha vindo na casa dela dizendo que eu estava sendo acusada de roubar dinheiro do governo. Essa mágoa ficou e vai ficar pelo resto da vida. Então adotei uma postura recuada,não quer dizer deixar de agir politicamente.

Afropress - Qual o balanço que a senhora faz da política de igualdade racial nos dois Governos Lula?

Matilde - São oito anos de governo. Toda a construção da política de igualdade racial trouxe avanços sem precedentes no Brasil. As mudanças são favoráveis, mas é muito difícil construir. O Estatuto é um exemplo.

Afropress - Como recebeu a indicação para ocupar uma suplência na chapa com Netinho para o Senado?

Matilde - Me surpreendeu porque não estava esperando esse tipo de retorno. Mas, embora não estivesse pleiteando é hora de voltar para um papel mais visível na campanha. Tive convites explícitos para ir para outros partidos. O PC do B, por exemplo, me convidou de maneira muito enfática. Mas, meu DNA é petista. É uma chamada que vale a pena responder. Buscar condições mais visíveis. A disputa não será fácil. O jogo é prá valer e não é um amistoso.

O Netinho não se tornou candidato a senador com toda essa inserção à toa. Acompanho a vida do Netinho, desde a época do Negritude. Ele está num momento de maturidade política importante. O histórico do Netinho é muito próximo do meu. Temos de apostar.

Afropress - Qual na sua opinião deve ser o papel do Movimento Negro no atual momento do país?

Matilde - Fazer política concreta, dar significado à política da igualdade racial. Não são só leis, não são só propostas. Mas ter um pensamento estratégico de colocar propostas em desenvolvimento, sem guetizá-las. É preciso que tenhamos uma estrutura institucional que nos favoreça, respeitando processos organizativos para tomada de decisões, mas tendo um lugar decisório.

Afropress - A senhor deixou amigos na SEPPIR

Matilde - Sim, deixei sim. Sempre mantive diálogo como Martvs [Chagas, Secretário de Ações Afirmativas], com o Flavio Jorge [liderança negra de S. Paulo, atualmente na Fundação Perseu Abramo, do PT].

Afropress - A senhora nunca fala da sua vida pessoal

Matilde - Já fui casada duas vezes. Estou separada há mais de 10 anos. Não sei se casarei de novo. Filhos, agora só adotando. Sou muito dedicada a minha família. Vou ao supermercado de chinelo havaiana.

http://www.afropress.com/noticiasLer.asp?id=2273

domingo, 4 de julho de 2010

A Produção Intelectual das Mulheres Negras e o Epistemicídio: Uma breve contribuição

quarta-feira, 9 de junho de 2010
A Produção Intelectual das Mulheres Negras e o Epistemicídio: Uma breve contribuição

Jaqueline Lima Santos (1)

A primeira vez que escutei esta palavra estranha, epistemicídio, levantei várias hipóteses sobre o seu significado. "Episteme" estaria ligada ao conhecimento, e "cídio" me lembrou a palavra homicídio, que significa "crime que mata outrem", logo cheguei à conclusão que o epistemicídio seria o assassinato do conhecimento de alguém. E quem seria este alguém que está sujeito ao epistemicídio? Nesse texto pretendo trazer uma breve apresentação do conceito, e posteriormente tratar da produção intelectual das mulheres negras.
Em busca de referências para entender melhor o epistemicídio, encontrei trabalhos da filósofa Sueli Carneiro(2), que citavam o sociólogo Boaventura de Souza Santos(3), idealizador do conceito. Segundo Sueli Carneiro, epistemicídio é um conceito que se refere às formas de conhecimento que não estão estabelecidas.
Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da auto-estima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio (Carneiro, 2005). (4)
Em seu livro "Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social"(5), Boaventura de Souza Santos defende que a produção de conhecimento ocidental, colocada como hegemônica, precisa ser deslocada do lugar de ciência única e legítima, pois "a compreensão de mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental de mundo".
Segundo Boaventura, essa ciência ocidental, o saber no Norte (dos países denominados "desenvolvidos"), acabou se tornando predominante nas relações do Sul (países periféricos), o que teve como conseqüência a produção de teorias fora do lugar, que não se ajustam as realidades sociais locais, e, apesar de diversas experiências estarem sendo desenvolvidas no Sul, elas continuam sendo pensadas através da perspectiva do Norte. As universidades do Sul ainda seguem o modelo do Norte, e ao olhar para o Sul a partir do saber do Norte as teorias acabam por reproduzir as desigualdades entre Sul e Norte.
Para o conhecimento do Norte, ao longo da história, foram construídos mecanismos para sua legitimação e negação dos conhecimentos alternativos e científicos das comunidades não ocidentais, tornando-os objetos de pesquisa. Para mudar este quadro, Santos propõe que reinventemos a emancipação social a partir do Sul, o que permitiria um pensar organizado fora dos centros hegemônicos, através daquilo que ele propõe como "Sociologia das Ausências", uma maneira de enfrentar o desperdício de experiências sociais que é o mundo.
(...) uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como não-existente, como uma alternativa não crível, como uma alternativa descartável, invisível a realidade hegemônica do mundo. (BOAVENTURA, 2007, P. 28-29).
A lógica positivista ocidental impôs que a ciência é independente da cultura. Boaventura contraria esta idéia propondo que nós devemos ser objetivos e não neutros:
Objetividade, porque possuímos metodologias próprias de ciências sociais para ter um conhecimento que queremos que seja rigoroso e que nos defenda de dogmatismos. E, ao mesmo tempo, vivemos em sociedades muito injustas, em relação as quais não podemos ser neutros. (BOAVENTURA, 2007, P. 32).
Segundo Boaventura há cinco formas de produzir ausência em nossa racionalidade ocidental que as ciências sociais compartem. A primeira seria a monocultura do saber e do rigor – aquela para a qual existe um único saber científico, os outros não têm validade, eliminam as realidades fora dos padrões ocidentais, os saberes populares. "(...) Essa monocultura do rigor baseia-se, desde a expansão européia, em uma realidade: a da ciência ocidental". Essa monocultura do saber e do rigor ao negar as outras formas de se produzir conhecimento, produz o que Boaventura chama de "epistemicídio": "a morte de conhecimentos alternativos". A segunda seria a monocultura do tempo linear: "(...) a idéia de que a cultura tem um sentido, uma direção, e de que os países desenvolvidos estão na dianteira". Parte do pressuposto que tudo que existe nesses países desenvolvidos estão à frente dos outros países, eles se colocam na condução da história. A terceira monocultura da naturalização das diferenças: Naturaliza as condições das diferenças, como se as hierarquias fossem frutos de classificações naturais, "(...) não se pensa diferenças com igualdade; as diferenças são sempre desiguais". A quarta seria a monocultura da escala dominante: Coloca a Hegemonia do global, universal, invisibiliza o local, o particular. A quinta e última forma de produzir ausências seria a monocultura do produtivismo capitalista: a idéia de que o ciclo de produção determina a produtividade humana, tudo que não é produtivo na lógica ocidental é considerado improdutivo e estéril. Ser improdutivo é a maneira de produzir ausência.
A sociologia das ausências seria o mecanismo pelo qual o que esta ausente passe a estar presente. "Há cinco formas de ausência que criam esta razão metonímica, preguiçosa e indolente: o ignorante, o residual, o inferior, o local ou particular e o improdutivo" (BOAVENTURA, 2007).
Se queremos inverter essa situação – por meio da sociologia das ausências- temos de fazer com que o que está ausente esteja presente, que as experiências que já existem, mas são invisíveis e não-críveis estejam disponíveis; ou seja, transformar objetos ausentes em objetos presentes". (BOAVENTURA, 2007, P. 32).
O fato de não sabermos trabalhar com os objetos ausentes é uma herança do positivismo. Boaventura afirma que a falta da ausência é um desperdício, e propõe a substituição das monoculturas pelas ecologias no procedimento da Sociologia das Ausências, com o objetivo de tornar as experiências ausentes em experiências presentes.
São cinco as Ecologias para tornar as experiências ausentes em experiências presentes: A primeira é a ecologia dos saberes – Fazer com que o saber científico dialogue com todos os saberes, fazendo um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica. Essa ecologia contraria a idéia de ciência única e valoriza outros saberes, os conhecimentos tradicionais. A segunda é a ecologia das temporalidades – reconhecer a existência de outros tempos além do tempo linear. Se reduzirmos todas as temporalidades a temporalidade linear afastamos todas as outras coisas diferentes das nossas. Ex: O tempo dos antepassados nas comunidades africanas, "os que estão antes estão conosco". Cada um tem o seu tempo. A terceira é a ecologia do reconhecimento – somente aceitar as diferenças depois que as hierarquias forem descartadas. Descolonizar as mentes para entender o que é produto da hierarquia e o que não é. A quarta é a ecologia da transescala – Articulação em nossos projetos das escalas locais, nacionais e globais. O local pode ser embrionário se pode conduzir ao nacional. A quinta e última é a ecologia das produtividades – recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção, das organizações populares, cooperativas, movimentos sociais que a ortodoxia capitalista desacreditou.
O que Boaventura nos propõe é a valorização das diversas possibilidades de pensar a vida, das diversas formas de produzir conhecimento, e que uma não seja mais importante que a outra. Outro mundo é possível dentro das diversas possibilidades.
Não podemos reduzir a heterogeneidade do mundo em homogeneidade, e por isso o autor propõe o "procedimento de tradução" para entender a realidade do outro: "é traduzir saberes em outro saberes, traduzir práticas e sujeitos uns aos outros, é buscar inteligibilidade sem "canibalização", sem homogeneização". É preciso compreender sem destruir a diversidade.
E porque esta discussão é importante aqui? A universidade é um espaço de produção de conhecimento para a sociedade, ela produz a ideologia dominante, logo ela sustenta a existência de uma elite, as relações de poder. Hoje estamos reivindicando a inclusão de grupos historicamente excluídos nesses espaços, mas queremos que eles reproduzam as mesmas relações de dominação e desigualdades que estão postas? Ou queremos que sejam capazes de transformar, a partir das respectivas realidades vivenciadas em suas comunidades, as maneiras conservadoras, pautadas em um modelo de pensar único e universal, que estruturam a sociedade? É preciso que esses grupos possam valorizar as suas diferentes experiências, e não entrem na universidade para se tornarem meros receptores do conhecimento hegemônico, ocidental. Precisamos formar questionadores, que busquem a valorização do saber marginalizado, saberes que estão historicamente ligados com o seu passado e o passado de seus ancestrais, com a situação dos seus semelhantes nos dias de hoje. É preciso valorizar as diferentes experiências sociais, evitando o desperdício tão criticado por Boaventura.
Segundo Sueli Carneiro:
O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia, foi também um epistemicídio. Eliminaram-se povos estranhos porque também tinham formas de conhecimento estranhas. E eliminaram-se formas de conhecimento estranhas porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos". Adequada aos dias correntes, essa idéia permite pensar a incapacidade de diversos grupos sociais conviverem com a diversidade, criando mecanismos desiguais de reprodução social. No caso dos negros, o epistemicídio atua como um conjunto de práticas educacionais desfavorecedoras e constrangimentos sociais quotidianos, visando obstar a trajetória do sujeito negro como sujeito de conhecimento. Impossibilitando esse papel, trava-se um processo social de emancipação do sujeito e de seu grupo.(6)
Em 7 anos de universidade, levando em consideração a graduação e o mestrado, na área de Ciências Humanas, tive pouco contato com intelectuais negras e negros, africanas e africanos, que transgrediram o pensamento tradicional, e posso afirmar que se não fosse o meu interesse em buscar a contribuição que os mesmos trouxeram para a minha área de pesquisa, teria, ao longo desses anos, uma formação totalmente branco-ocidental. Posso dizer também que o pouco contato que tive com produções intelectuais indígenas, partiu do meu próprio interesse. Outro dado relevante é que de todo o referencial teórico apresentado a mim pela universidade, as produções de mulheres não superaram os 10%, e se levar em consideração a produção intelectual das mulheres negras, esta foi nula, nunca nenhum professor me indicou uma referência teórica deste segmento, mesmo sabendo da existência de Lélia Gonzalez, Maria Firmino dos Reis, Maria Nazareth Fonseca, Petronilha Betriz Gonçalvez, Nilma Lino Gomes, Sueli Carneiro, bell hooks (7), Patrícia Hill Collins, Edna Roland, Deise Benedito, Margareth Menezes, Maria Inês Barbosa, Maria Beatriz Nascimento, Vilma Reis, Jurema Werneck, Fernanda Lopes, Luiza Bairros, Ilma Fátima, Conceição Evaristo, Mãe Menininha dos Gantóis, Makota Valdina, Maria Nilza Iracy, Luiza Bairros, Matilde Ribeiro e tantas outras Aqualtunes, Dandaras e Acotirenes que produzem conhecimento em seus diferentes campos: na academia, na música, no terreiro, na comunidade, na política, nas ruas e etc.
Em muitos momentos, ao citar o trabalho dessas autoras, ativistas, artistas, que produzem, de uma forma ou de outra, conhecimento sobre a nossa sociedade e em prol da mesma, fui questionada sobre a objetividade de seus trabalhos, isto porque, a maioria delas não separam sua condição social de mulher negra de suas produções intelectuais. Cansei de ter que intervir, na maioria das vezes, no sentido de provar que as produções intelectuais dessas mulheres trazem grande contribuição para a sociedade, e que na produção intelectual não existe um olhar que não seja comprometido, todo discurso, todo o enunciado, parte de algum lugar, e está comprometido com algo, principalmente nas Ciências Humanas onde o conhecimento não é algo exato, está em constante construção.
Pude perceber que as pessoas que me questionavam, sendo a maioria homens brancos, falavam também de um lugar, do lugar em que legitimavam seu espaço dentro da universidade, como o único produtor e legítimo dono de conhecimento, que continuava subjugando-nos como objetos de pesquisa. Não seria esse também um olhar comprometido? Comprometido com a dualidade ocidental, com o colonialismo, com a dominação?
As mulheres negras, desde a colonização do Brasil, trouxeram diversas contribuições intelectuais que constituem a formação do país. Hoje continuam inseridas nos diversos espaços, sejam eles políticos, acadêmicos, comunitários, em movimentos sociais, culturais, comunidades tradicionais e etc. Ignorar essas contribuições e trajetórias de vida é o mesmo que cometer o epistemicídio. Segundo Sueli Carneiro, anular e tornar invisíveis seus conhecimentos faz parte de um "conjunto de estratégias que terminam por abalar a capacidade cognitiva das pessoas negras, que conspiram sobre a nossa possibilidade de nos afirmarmos como sujeito de conhecimento, ou seja, todos os processos que reiteram que nós somos, por natureza, seres não muito humanos, e portanto, não suficientemente dotados de racionalidade, capazes de produzir conhecimento e, sobretudo, ciência".
Para finalizar, reafirmo as colocações de Sueli Carneiro em sua palestra realizada no evento "Resposta ao Racismo: Um Seminário na UNICAMP", em que a autora afirma que a experiência das (os) estudantes negras (os) nos espaços de orientação educacional é uma experiência de obstáculos:
"Desde os primeiros estágios, ele tem de se defrontar com, pelo menos, uma tríade de desafios: "A branquitude do saber, a profecia auto-realizadora e a autoridade da fala [brancas]", que articulam intrincadamente as idéias de racialidade, saber e poder, gerando submissão, abandono escolar, desprezo pela atividade intelectual e a franca percepção do não-lugar. "O processo de discriminação contra crianças negras constitui uma prática pedagógica", nos diz a autora. O sujeito negro é forçado a perceber desde cedo os fantasmas com os quais terá de lutar, hostilizado por eles continuamente. A confrontação final desse embate pedagógico, segundo a filósofa, se dá na Universidade. Apoiando-se nos intelectuais negros e ativistas estadunidenses bell hooks e Cornel West(4) – ambos interessados em discutir a situação do intelectual negro como sujeito de conhecimento e os mecanismos sociais que obstam essa realidade – afirma que o enfrentamento nesse espaço ocorre sem mediações. O dilema do intelectual negro, para usar uma expressão de West, se constitui, entre outras ações, em superar a visão de ser um herói solitário. Ele deve agregar à sua produção de conhecimento uma ação comunitária, capaz de diferenciar seu produto intelectual, com uma perspectiva negra. Isso, em grande medida, significa correr o risco de sair do padrão esperado e controlado pelo ambiente universitário, provocando, portanto, uma insubordinação às expectativas acadêmicas em relação a esse intelectual negro.(8)
Espero que possamos desconstruir a lógica cartesiana de um único lugar, uma única possibilidade, uma única resposta, uma única verdade, e que os conhecimentos ditos "periféricos" e "subalternos" também sejam deslocados para o centro de nossas formações.
__________
(1) Jaqueline Lima Santos é estudante de mestrado em Ciências Sociais – Antropologia pela UNESP, pesquisadora do NUPE – Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão, militante do Movimento Negro Unificado (MNU), do Fórum de HIP HOP do interior e da AMO.
(2) Sueli Carneiro possui doutorado em Educação pela FE - Universidade de São Paulo (2005). Atualmente é coordenadora executiva do Geledes Instituto da Mulher Negra. Tem experiência em pesquisa e atuação nas áreas de raça, gênero e direitos humanos.
(3) Boaventura de Souza Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de Coimbra, Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
(4) Em Legítima Defesa – Sueli Carneiro. Fonte: http://www.geledes.org.br/.
(5) SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. São Paulo: Boitempo, 2007.
(6) Trecho da apresentação de Sueli Carneiro no evento "Respostas ao Racismo: Um seminário na Unicamp", retirado da matéria elaborada por Mário Augusto Medeiros da Silva e publicada no Portal Irohin: www.irohin.org.br.
(7) Escreve seu nome com letras minúsculas como forma de protesto a condição social que lhe é colocada como mulher negra.
(8) Mário Augusto Medeiros da Silva (2009), "Respostas ao Racismo: Um seminário na Unicamp", publicada no Portal Irohin: http://www.irohin.org.br/.


http://jaquelinecontraoepistemicidio.blogspot.com/2010/06/producao-intelectual-das-mulheres_09.html

sábado, 3 de julho de 2010

Capitães que estão nas quartas da Copa lerão manifesto contra racismo Lúcio representará o Brasil antes de o jogo começar contra a Holanda

02/07/2010 07h57 - Atualizado em 02/07/2010 07h58

Capitães que estão nas quartas da Copa lerão manifesto contra racismo
Lúcio representará o Brasil antes de o jogo começar contra a Holanda
Por Agências de notícias
Joanesburgo, África do Sul

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Lúcio, capitão da seleção (Foto: Getty Images)Os capitães das seleções que disputam as partidas de quartas de final da Copa do Mundo da África do Sul lerão um manifesto contra a discriminação e o racismo, informou a Fifa.

O capitão da equipe mandante de cada confronto - no caso, Van Bronckhorst (Holanda), Lugano (Uruguai), Mascherano (Argentina) e Villar (Paraguai) - lerá a seguinte mensagem:

"Em nome da seleção (nome do país), declaro que rejeitamos de todo o coração o racismo e todo tipo de discriminação dentro ou fora do campo. Confiamos no poder do futebol para unir homens e mulheres de todas as raças, religiões e nacionalidades. Nos comprometemos a perseguir este objetivo e pedimos a todos para que se juntem a nós na luta contra o racismo, onde quer que seja".

Já Lúcio (Brasil), Mensah (Gana), Lahm (Alemanha) e Casillas (Espanha) dirão:

"Em nome da seleção (nome do país), declaro que nos negamos a tolerar qualquer forma de discriminação no futebol e apelamos a todos os que nos estão vendo hoje, onde quer que estejam no mundo, para que nos ajudem a erradicar a discriminação em nossa sociedade. Se todos nos unirmos, poderemos conseguir. Diga não ao racismo".

http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2010/07/capitaes-que-estao-nas-quartas-da-copa-lerao-manifesto-contra-racismo.html

Ficha Limpa: ministro Dias Toffoli suspende efeitos de condenação para deputada estadual de Goiás

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Sexta-feira, 02 de julho de 2010
Ficha Limpa: ministro Dias Toffoli suspende efeitos de condenação para deputada estadual de Goiás
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli suspendeu os efeitos da condenação imposta pela 1ª Vara da Fazenda Pública de Goiânia a Isaura Lemos (PDT), deputada estadual de Goiás. A liminar foi dada no Agravo de Instrumento (AI) 709634, que determinou a remessa de recurso extraordinário para que a Suprema Corte analise se a condenação - que foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás - é válida ou não.
Para Dias Toffoli, a deputada estadual não foi condenada por órgão colegiado, mas por juízo de primeiro grau, quando já era titular de foro específico - o Tribunal de Justiça -, em razão do mandato parlamentar. "Em sendo assim, não há de ser falar em apreciação específica da inelegibilidade, mas da suspensão dos efeitos da decisão sobre a qual incide o recurso extraordinário [decisão do TJ-GO]", ponderou o ministro.
O relator ressaltou que a liminar deferida apenas reconhece, indiretamente, que a decisão do TJ-GO, que validou a sentença do juiz de primeiro grau (decisão monocrática),"não poderá ser utilizada para os fins da declaração de incompatibilidade da situação jurídica da requerente com o exercício do ius honorum (direito de postular e ser eleito) " .
Dias Toffoli também salientou a necessidade de avaliar a "adequação da Lei Complementar nº 135/2010 [Lei da Ficha Limpa] com o texto constitucional", na medida em que "é matéria que exige reflexão, porquanto essa norma apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano hierárquico e axiológico".
Pedido
O advogado da parlamentar estadual, ao pleitear a suspensão dos efeitos de sua condenação, alegou que com a Lei Complementar nº 135/2010, que dispõe sobre a inelegibilidade de candidatos às eleições de 2010 (art. 26-C), por efeito de condenações, haveria a possibilidade de impedimento de registro de sua candidatura ao cargo de deputada federal pelas autoridades eleitorais goianas. Assim, pede a liminar para suspender a inelegibilidade e que não haja qualquer ofensa ao direito de registro da candidatura.
A Lei Complementar nº 135/2010 estabelece que:
“Art. 26-C. O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1º poderá, em caráter cautelar,suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso.
§ 1º Conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus.
§ 2º Mantida a condenação de que derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente.
§ 3º A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo.”
CG/AL,EH
A íntegra da decisão está disponível no site do STF:
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=12361


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AGRAVO DE INSTRUMENTO 709.634 GOIÁS
RELATOR : MIN. MENEZES DIREITO
AGTE.(S) :MARIA ISAURA LEMOS
ADV.(A/S) : DALMY ALVES DE FARIA
AGDO.(A/S) :MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
DECISÃO:
Cuida-se de petição avulsa em agravo de instrumento de MARIA ISAURA
LEMOS em face do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, que apresenta
as seguintes razões:
a) a requerente é deputada estadual à Assembleia Legislativa do
Estado de Goiás, atualmente “pré-candidata a deputada federal nas próximas eleições de
03/10/2010”;
b) seu pedido de registro eleitoral será apresentado até o dia 5.7.2010;
c) a requerente foi julgada em ação civil pública, tendo sido condenada,
mas já aviou o competente recurso extraordinário, cuja subida foi determinada por decisão
de minha lavra no AgRg n° 709.634, pela qual dei provimento ao agravo para admitir o RE;
d) a requerente foi submetida a juízo incompetente, pois deveria ter sido
julgada pelo Tribunal de Justiça e não pelo órgão singular de primeiro grau;
e) a necessidade de tutela cautelar justifica-se agora pelo advento da Lei
Complementar nº 135/2010, em cujo artigo 26-C dispõe sobre a inelegibilidade de
postulantes às Eleições de 2010, por efeito de condenações em processos de natureza
similar;
f) há perigo de dano iminente, porquanto a peticionante será impedida de
registrar sua candidatura ao cargo de deputado federal, o que poderá ser obstado pelas
autoridades eleitorais.
Pede-se a concessão de liminar para que se suspenda a inelegibilidade e
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não haja qualquer ofensa a seu direito de registro de candidatura.
É o relatório.
De imediato, determino que a petição avulsa seja convertida em medida
cautelar incidental ao recurso extraordinário, cuja admissibilidade foi objeto de decisão no
AgRg 709.634/GO.
A nova Lei Complementar nº 135/2010 estabelece que:
“Art. 26-C. O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a
apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as
alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1º poderá, em caráter cautelar,
suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão
recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob
pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso.
§ 1º Conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá
prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e
de habeas corpus.
§ 2º Mantida a condenação de que derivou a inelegibilidade ou
revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o
registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente.”
§ 3º A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da
defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito
suspensivo.”
A situação dos autos comporta o regime geral da apreciação de cautelares
incidentais, mormente quando a admissibilidade do recurso foi previamente examinada e
deliberada em favor da parte.
Em sendo assim, não há de ser falar em apreciação específica da
inelegibilidade, mas da suspensão dos efeitos da decisão sobre a qual incide o recurso
extraordinário, o que é possível de se fazer em hipóteses gerais.
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Ademais, a requerente não foi condenada por órgão colegiado em termos
próprios, mas por juízo de primeiro grau, quando já era titular de foro específico, o
Tribunal de Justiça, dada sua qualidade de deputada estadual.
Nesse aspecto, tem sido uniforme a jurisprudência da Corte:
“EMENTA: RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. CRIME DE RESPONSABILIDADE. AGENTES
POLÍTICOS. I. PRELIMINARES. QUESTÕES DE ORDEM. I.1.
Questão de ordem quanto à manutenção da competência da Corte que
justificou, no primeiro momento do julgamento, o conhecimento da
reclamação, diante do fato novo da cessação do exercício da função pública
pelo interessado. Ministro de Estado que posteriormente assumiu cargo de
Chefe de Missão Diplomática Permanente do Brasil perante a Organização
das Nações Unidas. Manutenção da prerrogativa de foro perante o STF,
conforme o art. 102, I, "c", da Constituição. Questão de ordem rejeitada. I.2.
Questão de ordem quanto ao sobrestamento do julgamento até que seja
possível realizá-lo em conjunto com outros processos sobre o mesmo tema,
com participação de todos os Ministros que integram o Tribunal, tendo em
vista a possibilidade de que o pronunciamento da Corte não reflita o
entendimento de seus atuais membros, dentre os quais quatro não têm
direito a voto, pois seus antecessores já se pronunciaram. Julgamento que já
se estende por cinco anos. Celeridade processual. Existência de outro
processo com matéria idêntica na seqüência da pauta de julgamentos do dia.
Inutilidade do sobrestamento. Questão de ordem rejeitada. II. MÉRITO.
II.1.Improbidade administrativa. Crimes de responsabilidade. Os atos de
improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade
na Lei n° 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo.
II.2.Distinção entre os regimes de responsabilização político-administrativa.
O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade
dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não
admite a concorrência entre dois regimes de responsabili dade políticoadministrativa
para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado
pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado
pela Lei n° 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de
improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados
pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial,
ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da
Constituição. II.3.Regime especial. Ministros de Estado. Os Ministros de
Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF,
art. 102, I, "c"; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de
competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade
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Administrativa (Lei n° 8.429/1992). II.4.Crimes de responsabilidade.
Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao
Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos políticoadministrativos,
na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição. Somente o
STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de
responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a
suspensão de direitos políticos. II.5.Ação de improbidade administrativa.
Ministro de Estado que teve decretada a suspensão de seus direitos políticos
pelo prazo de 8 anos e a perda da função pública por sentença do Juízo da
14ª Vara da Justiça Federal - Seção Judiciária do Distrito Federal.
Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação
civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que
possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime
de responsabilidade, conforme o art. 102, I, "c", da Constituição. III.
RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE.”
(Rcl 2138, Relator Min. NELSON JOBIM, Relator(a) p/ Acórdão:
Min. GILMAR MENDES (ART.38,IV,b, DO RISTF), Tribunal Pleno,
julgado em 13/06/2007, DJe-070 18-04-2008)
“DECISÃO: Trata-se de recurso extraordinário em que se discute a
competência para julgamento de ação de improbidade proposta pelo
Ministério Público Federal contra membro de Tribunal Regional Federal. 2.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que “compete ao juiz de primeiro
grau o processamento e julgamento de ação civil pública de improbidade
administrativa, ainda que no pólo passivo da ação figure autoridade que
detenha foro especial por prerrogativa de função” [fl. 1432]. 3. Alega-se, no
recurso extraordinário, violação do disposto nos artigos 5º, XLVI, LIII, LIV
e LV; 85, V, e 105, I, “a”, da Constituição do Brasil. 4. Deixo de apreciar a
existência da repercussão geral, vez que o artigo 323, § 1º, do RISTF dispõe
que "[t]al procedimento não terá lugar, quando o recurso versar questão cuja
repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal, ou quando impugnar
decisão contrária a súmula ou a jurisprudência dominante, casos em que se
presume a existência de repercussão geral”. 5. Este Tribunal, em Sessão
Plenária realizada no dia 15.9.05, concluiu o julgamento da ADI n. 2.797,
declarando a inconstitucionalidade da Lei n. 10.628/02. Assentou que: “a) o
agente político, mesmo afastado da função que atrai o foro por prerrogativa
de função, deve ser processado e julgado perante esse foro, se acusado
criminalmente por fato ligado ao exercício das funções inerentes ao cargo;
b) o agente político não responde a ação de improbidade administrativa se
sujeito a crime de responsabilidade pelo mesmo fato; c) os demais agentes
públicos, em relação aos quais a improbidade não consubstancie crime de
responsabilidade, respondem à ação de improbidade no foro definido por
prerrogativa de função, desde que a ação de improbidade tenha por objeto
ato funcional.” 6. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos da
RCL n. 2.138, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, DJ de
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20.6.07, ao julgar caso análogo ao presente, fixou o seguinte entendimento:
“Quanto ao mérito, o Tribunal, por maioria, julgou procedente a reclamação
para assentar a competência do STF para julgar o feito e declarar extinto o
processo em curso no juízo reclamado. Após fazer distinção entre os
regimes de responsabilidade político-administrativa previstos na CF, quais
sejam, o do art. 37, § 4º, regulado pela Lei 8.429/92, e o regime de crime de
responsabilidade fixado no art. 102, I, c, da CF e disciplinado pela Lei
1.079/50, entendeu-se que os agentes políticos, por estarem regidos por
normas especiais de responsabilidade, não respondem por improbidade
administrativa com base na Lei 8.429/92, mas apenas por crime de
responsabilidade em ação que somente pode ser proposta perante o STF
nos termos do art. 102, I, c, da CF. Vencidos, quanto ao mérito, por
julgarem improcedente a reclamação, os Ministros Carlos Velloso, Marco
Aurélio, Celso de Mello, estes acompanhando o primeiro, Sepúlveda
Pertence, que se reportava ao voto que proferira na ADI 2797/DF (DJU de
19.12.2006), e Joaquim Barbosa. O Min. Carlos Velloso, tecendo
considerações sobre a necessidade de preservar-se a observância do
princípio da moralidade, e afirmando que os agentes políticos respondem
pelos crimes de responsabilidade tipificados nas respectivas leis especiais
(CF, art. 85, parágrafo único), mas, em relação ao que não estivesse
tipificado como crime de responsabilidade, e estivesse definido como ato de
improbidade, deveriam responder na forma da lei própria, isto é, a Lei
8.429/92, aplicável a qualquer agente público, concluía que, na hipótese dos
autos, as tipificações da Lei 8.429/92, invocadas na ação civil pública, não se
enquadravam como crime de responsabilidade definido na Lei 1.079/50 e
que a competência para julgar a ação seria do juízo federal de 1º grau. Rcl
2138/DF, rel. orig. Min. Nelson Jobim, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar
Mendes, 13.6.2007.” [Informativo n. 471] Dou provimento ao recurso com
fundamento no disposto no artigo 557, § 1º-A, do CPC. Publique-se.
Brasília, 13 de abril de 2010. Ministro Eros Grau - Relator”
(RE 607987, Relator Min. EROS GRAU, DJe-078 04/05/2010)
É notório o periculum in mora, tal como demonstrado na petição inicial. A
proximidade da data final para o registro de candidaturas poderá inviabilizar o exercício de
direito constitucional da requerente, caso não seja emprestada eficácia suspensiva ao
recurso extraordinário.
Ressalte-se que o deferimento desta liminar não implica juízo direito sobre
a inelegibilidade, mas o reconhecimento indireto de que a decisão atacada pelo RE não
poderá ser utilizada para os fins da declaração de incompatibilidade da situação jurídica da
requerente com o exercício do ius honorum.
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Como obter dictum, aponto que a própria adequação da Lei Complementar
nº 135/2010 com o texto constitucional é matéria que exige reflexão, porquanto essa
norma apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente
relevantes no plano hierárquico e axiológico.
Ante o exposto, recebo a petição como medida cautelar, impondo-se as
anotações de estilo, e defiro a liminar para que se dê eficácia suspensiva ao recurso
extraordinário destrancado por força do AgRg 709.634.
Cite-se o requerido para, querendo, contestar a ação, no prazo de lei.
Após, remetam-se os autos à douta Procuradoria-Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 30 de junho de 2010.
Ministro DIAS TOFFOLI
Relator
Documento assinado digitalmente
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quinta-feira, 1 de julho de 2010

O negro no topo intimida

Nº. 25
EDITORIAL
O negro no topo intimida
Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br
Comentando o filme “Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei”, Marcelo Coelho, articulista da “Folha de S. Paulo”, disse que, nos anos 60, a imagem de um negro no topo da pirâmide social intimidava os brasileiros ( edição de 03.06.2009).

Por que se assustavam os brasileiros, o que temiam ou receavam? Parece natural supor que os brasileiros que estavam no topo da pirâmide receassem simplesmente ficar fora dele. Deixar o topo da pirâmide social deve ser mesmo uma coisa assustadora.

Isso foi há cinqüenta anos, mas há evidências de que o referido temor não tenha ficado restrito ou localizado na década de 60 do século passado. “É esse debate alarmado e alarmista, pautado pelo racismo científico do século XIX, que acompanhamos ao longo desse livro”. Estas são palavras de Célia Maria Marinho de Azevedo, no Posfácio à 2ª edição do indispensável “Onda Negra, Medo Branco” (Annablume, 2004). Onda negra que se forma, na visão de senhores de escravos no século XIX, a partir das “ações anárquicas da ‘gente de cor’, as quais pretendem nivelar a sociedade com seu desrespeito à hierarquia social, à família, à propriedade” (p. 246).

O deputado federal Ìndio da Costa (DEM-RJ) participou do grupo de trabalho que discutiu reforma eleitoral na Câmara dos Deputados. Sua reação enfática à sugestão de inclusão do quesito cor/raça no projeto de lei então em elaboração baseou-se no argumento de que, se houvesse identificação da cor/ raça dos candidatos, os negros em seguida reivindicariam cotas na representação partidária. Uma reivindicação, como se sabe, que é expressão de desrespeito à hierarquização social e política. Com exceção de dois votos femininos, seu conselho de prudência foi acatado pelos demais parlamentares.

No dia 16 de junho, o deputado Carlos Santana (PT-RJ) encaminhou, por sugestão do Ìrohìn, uma indicação (INC 4349/2009) ao Tribunal Superior Eleitoral, propondo a introdução do quesito cor/raça, nos termos adotados pelo IBGE, nos formulários de registros de candidaturas eleitorais, e a ampla divulgação de informações sobre candidatos e eleitos, segundo cor/raça, a toda a sociedade brasileira.

É um caminho possível e o ministro Carlos Ayres Britto, presidente do TSE, expressou ao deputado Carlos Santana, a Regina Adami, Graça Santos e ao representante do Ìrohìn seu interesse em discutir o processo de afirmação identitária no campo da política. Quantos negros, quantos índios se candidatam? Quantos se elegem?

A omissão, no registro das candidaturas, da cor dos candidatos é reveladora dos limites da democracia no Brasil. É expressão da dominação racial no campo da política e os partidos não parecem dispostos a negociar nada que possa alterar os desequilíbrios de poder entre brancos e não-brancos.

Em março, comentei no site do Ìrohìn (www. irohin.org.br) resultado de pesquisa do Ibope, segundo a qual “77% dos entrevistados afirmaram que votariam em um homem negro e 75% elegeriam uma mulher negra para qualquer cargo público, número maior dos que votariam em mulheres de qualquer raça”.

A pesquisa ilustrava a existência de pessoas dispostas a votar em candidatos que, a rigor, não existem. Semelhante concepção da identidade política poderia parecer estranha, mas o fato é que a mobilização política do negro passa mesmo ao largo dos partidos.

Se existe um critério objetivo para avaliar a abertura partidária para o tema da luta contra o racismo e a superação das desigualdades raciais, a partir do início dos anos 80, esse critério é a composição étnico-racial das bancadas federais, estaduais, municipais.

Pesquisa realizada pela revista Época e o Instituto FSB com 247 congressistas incluiu uma questão sobre a representatividade do negro no Congresso Nacional: Muito alta - 0,4%; Alta - 3,3%; Mediana - 16,7%; Baixa - 47,3%; Muito baixa - 32,2% (Época, edição de 6 de julho de 2009, nº 581, p.44). Embora cerca de 80% dos parlamentares considerem que o negro está mal representado no Congresso Nacional, isto não significa que estejam dispostos a alterar o grave quadro de exclusão. A argumentação do deputado Ìndio da Costa, como vimos, só encontrou a resistência de dois votos femininos e as mulheres são apenas 7% dos parlamentares.

Na noite da quinta-feira 29.05.2009, em intervalo do “Jornal Nacional”, da Rede Globo de Televisão, foi ao ar mais um programa do Partido dos Trabalhadores. Eram claros todos os personagens que tinham expressão partidária, institucional ou sindical. Eram escuros os representantes do povo agradecido e o apresentador do programa.

No “governo de todos”, a parte que representa o todo é clara. Os escuros, emocionados e dramáticos, agradecem as benfeitorias. O programa do partido mais “popular e democrático” tem a força da evidência que nenhuma manipulação verbal pode ocultar. Os negros não são visíveis nas propagandas partidárias, nem o são também no Congresso Nacional, em Assembléias e Câmaras. Menos ainda nos cargos executivos.

A pesquisa do Ibope revela uma dinâmica acentuada de parte da sociedade brasileira, que coexiste com persistentes limitações no seio dos partidos e nas estruturas do Estado quanto às formas de representação da diversidade étnicoracial. O negro é dimensão do eleitorado a ser levada em consideração ( na TV os apresentadores - modelos e atores - e o povo agradecido ou indignado expressam os limites da preocupação com o voto), mas deve ser excluído da participação política que lhe permitiria acesso ao poder. Como dizia Lima Barreto, em seu “Diário Ìntimo” (p. 82), “É singular essa República”.

http://www.irohin.org.br/imp/template.php?edition=25&id=212