terça-feira, 7 de abril de 2009

CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL - RJ.

As Organizações multiculturais da cidade do Rio de Janeiro, especialmente as Organizações da sociedade civil negra organizada estão convidadas a participar de plenária inicial, para a construção da "IIª Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial", a realizar-se no próximo dia 09 de abril às 10.00 horas, no 'Centro Cultural José Bonifácio' - Rua Pedro Ernesto, 80 - Gamboa.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Matéria Azul profundo publicada no Cadeno Mais da Folha de São Paulo: Resposta, sem edição, enviada por Andreas Hofbauer ao autor da matéria

A pedido do sr. Andreas Hofbauer, a respeito da entrevista concedida no último domingo ao Caderno Mais, da Folha de São Paulo, intutulada: Azul profundo, postamos o seguinte:


Texto enviado pelo jornalista:
- Durante a visita oficial do premiê britânico Gordon Brown ao Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva responsabilizou (no dia 26/3) "gente branca de olhos azuis" pela crise econômica mundial: "É uma crise causada por comportamentos irracionais de gente branca de olhos azuis que antes da crise parecia que sabia tudo e agora demonstra não saber nada". O presidente disse ainda que os pobres, negros e índios, que são "vítimas da crise", não podem pagar a conta da especulação financeira. Quando o presidente se refere a "gente branca de olhos azuis", está aí embutida uma ideia discriminatória. O sr. acredita, no entanto, que a fala do presidente Lula teve conotação racista e improcedente?
Pergunta: Por que Lula retoma essa polarização histórica brasileira?
Resposta: Bom, em primeiro lugar eu diria que não se trata somente de uma polarização brasileira: a oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo" (a referência aqui são os autores pós-coloniais). A afirmação do presidente provoca. Causa um certo mal-estar exatamente porque remete a concepções raciais que nós julgamos hoje ultrapassadas. Ao mesmo tempo, sabemos que o fato de a ciência ter proclamado a "morte" das raças humanas, não significa que a cor/raça não continue funcionando como um fator de diferenciação e de discriminação na vida real. Basta darmos uma olhada nos dados do IGBE, que revelam que a população não-branca continua discriminada em todos os quesitos socioeconômicos.
Quero crer que o presidente quis, em primeiro lugar, chamar a atenção da população brasileira e dizer-lhe que a crise atual que o país enfrenta não foi produzida aqui. E entendo também que esta provocação tem ainda um outro endereço: dirigiu-se também às elites dos países ricos, que sempre pregaram medidas universalistas para o mundo inteiro e, no entanto, sempre acharam e/ou construíram meios de particularizar tais universalismos. Isto vale tanto para os missionários da época da colonização, que discursavam sobre a igualdade entre todos os seres humanos e ao mesmo tempo justificavam a escravização de povos negros, quanto para os pensadores iluministas que recorreram à idéia de raça com objetivos semelhantes. Num certo sentido, vale até para discursos economicistas atuais, que
pressionam outros países a abrirem os seus mercados enquanto justificam políticas protecionistas internamente. Incentivam a idéia de um mundo globalizado, mas apóiam, de fato, somente o fluxo de capitais, enquanto recomendam que se fechem as fronteiras para os imigrantes que vêm do "sul" do globo ou autorizam a taxação de produtos estrangeiros que competem com suas produções nacionais.
Pergunta: É possível encontrar tal polarização, com a mesma intensidade, também em outras culturas?
Resposta: Sim, existem estudos antropológicos que mostram que a estatura e as cores de pele são percebidas e usadas como marcadores de diferença nas mais diversas sociedades. Aliás, a estatura parece ser o critério corporal de diferenciação mais disseminado: estatura alta é vista em muitas sociedades como sinal de força e é relacionada a status social elevado. Em várias sociedades podemos perceber também uma valoração da cor de pele mais clara em oposição a tonalidades mais escuras. O que me parece sem precedentes na história da humanidade é a enorme importância política e econômica que o marcador da cor de pele negra assumiu no Ocidente. Vários estudiosos têm argumentado que na raiz da construção do "self" europeu, da identidade européia, isto é, na raiz da construção da idéia do sujeito auto-determinado está a criação de uma oposição entre um mundo civilizado e um mundo tido como primitivo, selvagem. Sabemos também que, no projeto da colonização do Novo Mundo, a cor negra seria usada como marcador da escravidão. Em conseqüência disso, milhões de africanos foram arrancados das suas terras, das suas sociedades para serem subjugados ao regime escravista.
Pergunta: A questão suscitada pelo comentário do presidente Lula é bem complexa, levando-se em consideração a história das sociedades humanas, em especial as ocidentais. De onde vem a metáfora do "olho azul"? Que processos históricos, sociais e culturais podem ser desencavados de tal metáfora?
Resposta: Desde os primórdios do cristianismo, a cor negra vinha sendo associada ao inferno, ao diabólico, e, devido a uma reinterpretação de um trecho do Velho Testamento
(Genesis cap. IX), também ao pecado, à culpa, à imoralidade e à escravidão, enquanto o "branco" expressava o divino e a pureza da verdadeira fé. Começava-se a projetar a cor negra nos descendentes de Cam (filho de Noé) cujo filho Canaã foi condenado à eterna escravidão entre os seus irmãos. Esta estória – e não, como se afirma ainda recorrentemente, um discurso racial – serviria durante séculos como justificativa para escravizar pessoas tidas como "negras". Ou seja, percebe-se que, aos poucos, uma percepção mais naturalizada das cores vai ganhando força mesmo dentro do discurso religioso. Assim, não é de se estranhar que as pinturas e afrescos nas igrejas vão retratar Jesus com cabelo loiro e com olhos azuis , embora esta representação dificilmente se aproxime da fisionomia real que poderia ter tido a figura histórica. Agora, foi na época do nazismo, quando os cientistas procuravam fundamentar a existência de uma "raça ariana", que os olhos azuis juntamente com o cabelo loiro seriam destacados como características essenciais de uma raça humana pura.
Pergunta: Na formação do Brasil moderno, o ideal de branqueamento esteve, e ainda está, fortemente ligado à noção de superioridade racial e social. Até que ponto valores como este formam o etos e a noção de "identidade brasileira"? Como se formou e qual é o papel da ideologia do branqueamento na história do racismo no Brasil?
Resposta: Prefiro não falar de um etos brasileiro, já que o uso clássico deste conceito nos remete a uma idéia de um corpo homogêneo de pessoas e idéias que, desta forma, provavelmente nunca existiu. Sobretudo hoje, podemos perceber que parcelas cada vez maiores da população brasileira, impulsionadas, inclusive, pelas atividades dos movimentos negros, não concordariam em ver no branqueamento um valor que une a população brasileira. Parece-me, portanto, mais razoável falar de uma pluralidade de discursos e de identidades, não somente no plano das coletividades, mas também no plano individual. Agora, dito isto, penso, sim, que o branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcou profundamente a história deste país.
Se entendermos o branqueamento numa perspectiva antropológica, ou seja, como uma construção simbólica, a idéia de transformar corpos negros em corpos brancos é apenas um aspecto de um ideário muito mais profundo e abrangente. Podemos perceber que a idéia de
transformar "negro" em "branco" já fazia parte de uma atitude moral-religiosa associada à conversão. No contexto colonial brasileiro, os jesuítas incentivariam durante muito tempo o tráfico negreiro como uma empresa de "resgate" de "almas pagãs perdidas". Estabeleceu-se no Brasil um ideário – que se tornaria hegemônico – que fundia, de um lado, "negro" com a condição de escravo, e, de outro lado, associava "branco" aos ideais morais-religiosos elevados, ao status de livre e, – sobretudo – a partir da segunda metade do século XIX, à idéia do progresso. Posteriormente, no final do século XIX, parte da elite brasileira, que estava preocupada com o progresso econômico do país, (re)adaptou este ideário à nova situação para propagar e implementar projetos imigracionistas que trariam milhares de europeus brancos ao Brasil. Este ideário seria (re)articulado uma última vez por meio de uma adaptação local de teses culturalistas (cf. a obra de Freyre) que buscava transpor, de certo modo, o discurso sobre a "mistura feliz" entre raças inferiores e raças superiores para o plano das culturas. Na análise de G. Freire, a "mestiçagem" aparece como uma espécie de "ponte" que aplaina e supera os "desajustes" raciais e culturais entre negros, brancos e índios e, dessa forma, teria viabilizado a formação da "nação/cultura brasileira". Mas, por baixo do enaltecimento da miscigenição, o autor reproduziu recorrentemente o velho ideal branqueador; o que fica claro, por exemplo, quando ele comenta com satisfação e orgulho que, no Brasil, uma mestiça clara, bem vestida e que se comporta como gente fina "pode tornar-se branca para todos os efeitos".
Podemos afirmar que o branqueamento é, certamente, ainda, uma visão bastante disseminada no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, podemos perceber outros discursos ganhando força: discursos que se opõem a este ideário discriminatório, que conseguiu apresentar-se durante muito tempo como um discurso integrativo e anti-racista, e que tem dificultado às populações não-brancas serem respeitadas e tratadas, de fato, como iguais.

domingo, 5 de abril de 2009

Azul profundo

Metáfora usada pelo presidente Lula repõe questão do branqueamento nas sociedades
EUCLIDES SANTOS MENDES. COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo'", argumenta o antropólogo e professor da Universidade Estadual Paulista, em Marília, Andreas Hofbauer em entrevista à Folha.Tais oposições estão na base da formação das identidades brasileiras. Por isso, "o branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcaram profundamente a história deste país", diz Hofbauer -autor de "Uma História de Branqueamento ou o Negro em Questão" (ed. Unesp).O tema, que ainda tem espaço expressivo de atuação no Brasil, veio à tona no dia 26/3, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva responsabilizou, durante a visita do premiê britânico Gordon Brown ao país, "gente branca de olhos azuis" pela crise econômica mundial.Mesmo estando embutida na fala presidencial uma ideia discriminatória, a questão mais premente a se considerar, diz Hofbauer na entrevista abaixo, está relacionada a dois fatores.O primeiro é que a crise econômica não foi necessariamente produzida no Brasil. O segundo, que a crítica de Lula se dirige aos países ricos, "que sempre pregaram medidas universalistas para o mundo inteiro, mas sempre acharam ou construíram meios de particularizar tais universalismos".

FOLHA - De onde vem a metáfora do "olho azul"?ANDREAS HOFBAUER - Desde os primórdios do cristianismo, a cor negra vinha sendo associada ao inferno, ao diabólico e, devido a uma reinterpretação de um trecho do Velho Testamento ("Gênesis" 9, 25), também ao pecado, à culpa, à imoralidade e à escravidão -o "branco" expressava o divino e a pureza da verdadeira fé.Começava-se a projetar a cor negra nos descendentes de Cam (filho de Noé), cujo filho Canaã foi condenado à eterna escravidão entre os seus irmãos.Essa história -e não, como se afirma ainda recorrentemente, um discurso racial- serviria, durante séculos, como justificativa para escravizar pessoas tidas como "negras". Ou seja, compreende-se que, aos poucos, uma percepção mais naturalizada das cores vai ganhando força mesmo dentro do discurso religioso.Assim, não é de estranhar que as pinturas e afrescos nas igrejas retratem Jesus com cabelos loiros e olhos azuis, embora essa representação dificilmente se aproxime da fisionomia real que poderia ter tido a figura histórica.Foi na época do nazismo, quando os cientistas procuravam fundamentar a existência de uma "raça ariana", que os olhos azuis, juntamente com os cabelos loiros, seriam destacados como características essenciais de uma raça humana pura.
FOLHA - Na formação do Brasil moderno, o ideal de branqueamento sempre esteve fortemente ligado à noção de superioridade racial e social. Como se formou e qual é o papel da ideologia do branqueamento na história do racismo no Brasil?HOFBAUER - O branqueamento foi um dos ideários hegemônicos que marcaram profundamente a história deste país.Se entendermos o branqueamento numa perspectiva antropológica, ou seja, como uma construção simbólica, a ideia de transformar corpos negros em corpos brancos é apenas um aspecto de um ideário muito mais profundo e abrangente.Estabeleceu-se, no Brasil, um ideário que se tornaria hegemônico e que fundia, de um lado, o "negro" e a condição de escravo e, de outro, associava o "branco" aos ideais morais-religiosos elevados, ao status de livre e -sobretudo a partir da segunda metade do século 19- à ideia do progresso.Posteriormente, no final do século 19, parte da elite brasileira, que estava preocupada com o progresso econômico do país, (re)adaptou este ideário à nova situação para propagar e implementar projetos imigracionistas que trariam milhares de europeus brancos ao Brasil.Esse ideário seria (re)articulado uma última vez por meio de uma adaptação local de teses culturalistas, que buscavam transpor o discurso sobre a "mistura feliz" entre raças inferiores e raças superiores para o plano das culturas.Na análise de Gilberto Freyre [1900-87], a "mestiçagem" aparece como uma espécie de "ponte" que aplaina e supera os "desajustes" raciais e culturais entre negros, brancos e índios e, dessa forma, teria viabilizado a formação da "nação/cultura brasileira".Mas, por baixo do enaltecimento da miscigenação, o autor reproduziu recorrentemente o velho ideal branqueador.
FOLHA - O sr. acredita que a fala do presidente Lula teve conotação racista e improcedente? Por que Lula retomou essa polarização histórica brasileira?HOFBAUER - Em primeiro lugar eu diria que não se trata somente de uma polarização brasileira: a oposição "branco" versus "negro", civilizado versus primitivo faz parte de um ideário que tem marcado profundamente a relação entre o "Ocidente" e o "resto do mundo".A afirmação do presidente causa um certo mal-estar exatamente porque remete a concepções raciais que julgamos, hoje, ultrapassadas.Ao mesmo tempo, sabemos que o fato de a ciência ter proclamado a "morte" das raças humanas não significa que a cor/raça não continue funcionando como um fator de diferenciação e de discriminação na vida real.Basta darmos uma olhada nos dados do IBGE, que revelam que a população não-branca continua discriminada em todos os quesitos socioeconômicos. Quero crer que o presidente quis, em primeiro lugar, chamar a atenção da população brasileira e dizer-lhe que a crise atual que o país enfrenta não foi produzida aqui.
São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009. Mais.

Olhos azuis, negros e cegos


Não defendo nem as quotas para negros nem o fim das quotas para portadores de deficiência
Nesta semana voltou à tona o debate sobre quotas raciais, ora na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
Pela enésima vez brandiu-se o argumento "científico" de que a discriminação no Brasil é social, e não racial, e de que uma discriminação positiva dividiria a nação em negros e não-negros, fomentando um ódio que aqui nunca teria existido.Quanto há de objetividade nessas afirmações? E quanto de ideologia?É forçoso reconhecer que há certa base empírica na primeira parte do argumento (a discriminação é mais social que racial). Mas seria igualmente anticientífico desconhecer que ser negro ou pardo representa desvantagem adicional à de ser pobre, em matéria de desigualdade de oportunidades.Caso contrário, como explicar que, sendo 48% da população, negros e pardos representem só 26,4% dos empregados nas 500 maiores empresas do país? Ou então que, da terça parte pobre da população brasileira, 65,8% sejam pardos (58,7%) e negros (7,1%)? Não se trata de concluir que os 34,2% de brancos entre os pobres sejam privilegiados, nem que os brancos mais ricos sejam preconceituosos ou malvados. E sim de reconhecer uma desigualdade patente.O busílis está em saber se é necessário e legítimo fazer algo a respeito. O projeto de lei que pode ser aprovado com a reserva de 50% das vagas em universidades públicas para alunos de escolas idem, e não para minorias raciais, compra assim o argumento antirracialista por seu valor de face. Aí é que o debate deixa de ser inteiramente objetivo, como será assinalado a seguir com base num contraexemplo. Já se pratica no país outro tipo de discriminação positiva, a favor dos portadores de deficiência física, sem que se observe contra ela o zelo, a estridência e até a virulência da reação contra as quotas. Pela lei 8.213, em vigor há quase 18 anos, 2% a 5% dos postos de trabalho em empresas com mais de cem funcionários ficam reservados para esses desfavorecidos. A lógica compensatória por trás da provisão legal é a mesma. Identifica-se um grupo social que, por suas características físicas, enfrenta dificuldades para se educar e se empregar.Admitida a discriminação contra essas pessoas, adota-se a regra de contratação compulsória que a reverte na prática -só em parte, porque no Brasil 14,5% portam alguma deficiência.Metade da população com mais de dez anos encontrava-se ocupada no censo de 2000, quando o IBGE levantou também a quantidade de portadores de deficiência. Mas tinham trabalho só 40,8% dos que têm dificuldade para enxergar ou são cegos, 34% dos que têm deficiência auditiva ou são surdos e 24,1% dos portadores de incapacidade física ou motora.Antes que me acusem de desalmado ou racista, esclareço: não defendo nem as quotas para negros, por suas dificuldades insolúveis, nem o fim das quotas para portadores de deficiência.Aponto, tão-somente, o uso de dois pesos e duas medidas, e a obrigação moral de reequilibrar a balança.O Brasil encara de frente o drama dos portadores de deficiência, mas não quer enxergar o dos negros. E, já que se trata de objetividade e de ciência, fique aqui o testemunho de Charles Darwin sobre brasileiros brancos civilizados, como o proprietário e anfitrião da Fazenda Socêgo, incapazes de repulsa diante dos sofrimentos impostos aos negros: "Pode-se dizer que não há limites para a cegueira do interesse e do hábito egoísta".
MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009. Folha de São Paulo. Ciência.

Censo étnico divide opiniões na França

Governo Sarkozy propõe mudar lei que impede classificação por etnia; para críticos, medida fere preceito da igualdadePresidente argumenta que alteração permitirá medir diversidade social e efeito do preconceito; opositores temem passado europeuRAFAEL CARIELLODA REPORTAGEM LOCAL Embora não tenha ainda uma proposta exata sobre como fazê-lo, o governo Nicolas Sarkozy pretende introduzir modificações em uma lei francesa que proíbe perguntas sobre origem étnica, cor da pele e religião em censos e pesquisas públicas nacionais.O objetivo da legislação a ser modificada, cuja versão atual data do final dos anos 70, é garantir o princípio republicano de igualdade perante o Estado e a lei, além de evitar qualquer possibilidade de classificação de grupos minoritários a partir de estatísticas oficiais.Sarkozy afirma, no entanto, que a mudança é necessária para que a França seja capaz de "medir a diversidade da sociedade" e os efeitos sociais do preconceito étnico no país, e que só pode fazer isso permitindo que os entrevistados declarem, de algum modo, sua origem -e os efeitos que experimentam, na procura de trabalho ou na relação com a polícia, por exemplo, por causa disso.Uma equipe comandada por Yazid Sabeg, "comissário da diversidade" no governo, estuda há 15 dias modelos para coletar estatísticas oficiais sobre o tema. Sabeg anunciou, no início de março, que pretende apresentar uma lei, baseada nos resultados da comissão, que permita ao governo fazer as perguntas necessárias sobre origem e preconceito no país.A França é um país com grandes levas recentes de imigrantes, além de outras, ao longo do século 20, de moradores de ex-colônias, e portanto crescentemente multicultural.Os que se opõem às medidas dizem que elas ferem o princípio fundamental da sociedade e do Estado francês, de igualdade perante a lei independente de origem, credo ou cor. O grupo SOS Racisme, de apoio a imigrantes, reunia até a noite de sexta 109 mil pessoas num abaixo-assinado na internet contra a "estatística étnica".PrecedenteGrupos como esse argumentam também que exemplos passados da história europeia, como censos que serviram para a discriminação e perseguição de judeus, evocam os riscos que tais pesquisas trazem. Há ainda ideias identitárias que opõem o republicanismo francês ao "comunitarismo" multicultural anglo-americano. "A França não deve se converter num mosaico de comunidades", declarou uma integrante do governo Sarkozy, Fadela Amara, ministra de Assuntos Urbanos."De fato, historicamente, os europeus temem que pesquisas desse tipo possam reforçar o estigma sobre alguns grupos", diz o historiador Manolo Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Ele, no entanto, vê nesse tipo de enquete um instrumento de pesquisa social necessário -como no caso brasileiro, em que a autodeclaração de cor em levantamentos do IBGE permite medir diferenças de renda média entre negros e brancos."Esse é um debate típico de uma situação multicultural recente", explica, argumentando que outros países europeus já fizeram o caminho que levou de uma ideia mais ou menos homogênea de nacionalidade, em que perguntas desse tipo fariam menos sentido, para um multiculturalismo de fato.Para Florentino, o argumento de que a existência das pesquisas pode ferir um igualitarismo ideal da sociedade francesa é "uma posição que parece divorciada da realidade". "Não é assim que se enfrenta o multiculturalismo, que é real", diz.O também historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor na Universidade de Paris, afirma que é possível traçar uma relação entre o debate francês e as discussões no Brasil sobre cotas no ensino público para afrodescendentes, cujos opositores também levantam a bandeira dos perigos de se criar divisões artificiais numa sociedade relativamente integrada.Ele lembra que é preciso fazer uma distinção: a sociedade brasileira nunca se aproximou de um modelo de fato meritocrático e republicano.Obviamente sensível aos traumas europeus com classificações étnicas, o comissário da diversidade francês declara que uma coisa é certa: ninguém será obrigado a se classificar. As pesquisas serão baseadas, diz Sabeg, em princípios de autodeclaração, liberdade de participação e anonimato.Para a antropóloga Lilia Schwarcz, professora da USP, "o grande problema" é a forma que essa pesquisa pode vir a ter. "Como se mede o grau de etnicidade e raça sem introduzir a ideia de que os homens são diferentes?", pergunta. "Em princípio, não sou contra pesquisas, até porque isso seria uma forma de obscurantismo, mas fico preocupada com a sua forma de aplicação e de análise. Não digo que não funcionem, mas também não são mágicas."

São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009. Folha de São Paulo.Mundo